Depois do trabalho

Muricy Ramalho revisita a carreira após decidir se aposentar em um quarto de UTI

Luiza Oliveira e Renata Mendonça Do UOL, em São Paulo Lucas Lima/UOL

"Não sei se você conhece uma UTI. Uma UTI é um quartinho que não tem nem janela. Você está preso num buraquinho assim, cheio de tubo. Você olha só o coraçãozinho atrás fazendo "pi, pi, pi", batendo irregular. Eu tive uma arritmia muito forte porque abusei. Era minha segunda vez na UTI. Isso é perigosíssimo.

Naquele momento, fiquei muito sozinho. E quando você está sozinho, reflete sobre tudo. Repensa a sua vida, ainda mais cheio de tubo: 'Meu, o que eu estou fazendo aqui? Já trabalhei muito no futebol, ganho um puta dinheiro e não posso desfrutar de nada. Não posso ir pra praia e pro sítio, coisas que eu gosto. Não posso ver minha família, não tenho mais amigos'.

Era estresse porque eu sou muito pilhado. É a única maneira de o cara chegar num nível alto como o que eu cheguei. O futebol é uma bolha. Quando você entra nessa bolha, não sai. É uma coisa absurda. É 24 horas por dia. Você sai do jogo e já pega o campinho e vai ver o teipe do jogo. Não conversa com a mulher, com os filhos, não quer saber de nada. Você não tem mais vida, não pensa em mais nada. Isso é coisa de maluco, meu.

As coisas estavam meio complicadas. A arritmia não estava revertendo. Eu prometi para mim mesmo: 'Se sair dessa, não trabalho mais como técnico. Se o homem lá em cima me tirar dessa, não quero mais'. E foi o que aconteceu.

No começo, foi muito duro porque era a coisa que eu mais gostava. Foi muito triste. Cheguei a chorar sozinho porque é a minha vida. Eu sabia que ia sentir falta. Eu estava saindo da bolha: 'Caramba, o que eu estou fazendo aqui fora?'. Eu ia voltar à vida comum no dia a dia, com a família, com os amigos, com fim de semana. Eu achava estranho isso. Me sentia muito raro. Acordava e falava: 'O que é isso, meu? O que eu vou fazer?'. Não pensava em nada.

Lucas Lima/UOL
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O bordão "Aqui é Trabalho" não foi adotado em vão. Muricy Ramalho era tão intenso que respirava, dormia e acordava futebol. Foi assim ele se tornou um dos técnicos mais respeitados e vitoriosos do país, especialmente no comando do São Paulo. Até que um Muricy acordou em uma UTI com arritmia cardíaca. Solitário dentro de um hospital, percebeu que não podia errar de novo.

Muricy interrompeu a carreira a contragosto, mas descobriu uma nova vida. Tão nova que o permite receber a reportagem do UOL Esporte em sua casa na tarde de uma segunda feira e bater um papo tranquilo que se estendeu até a noite. Simpático, chegou com uma bolsa térmica e distribuiu água para todos. Contou histórias sem se preocupar com o tempo e só encerrou a conversa porque iria participar do programa Bem, Amigos mais tarde.

O novo Muricy em quase nada lembra aquele dos tempos de São Paulo que ficou famoso por seu estilo ranzinza e arranca rabos com a imprensa. Mas como a vida dá voltas, só agora, após mudar de lado, ele entendeu de fato o trabalho da imprensa. Muricy virou comentarista do Sportv e se descobriu feliz na nova carreira. É querido na emissora, fez novos amigos e tem tempo até para comer com a família. Neste espaço, Muricy reflete sobre a vida, Neymar, seleção, São Paulo e, claro, trabalho.

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Aprendeu com o pai a respeitar contratos

Muricy teve uma característica marcante como técnico: respeitar à risca seus contratos. Não foram poucas as vezes em que recebeu propostas tentadoras para abandonar um trabalho no meio e seguir para outro mais desafiador. Mas ele diz que ser correto no que faz é uma herança que recebeu do pai. E se orgulha disso.

"Eu me apego a algumas coisas da vida, a alguns valores que o meu pai me deixou. O meu pai era um feirante que trabalhava no Mercado de Pinheiros e chegava à 1 h da manhã para comprar verdura. Era um cara muito sério, de família portuguesa. O que ele mais cobrava, e a única coisa que ele deixou para nós, é que tem que ser correto. Depois vem o Telê na minha vida, também era outro maluco por coisa correta", conta Muricy.

O episódio que mais evidenciou essa obsessão dele por manter lealdade aos clubes onde trabalhou foi o convite para a seleção brasileira quando era técnico do Fluminense. Mas Muricy relata outras situações em que também disse "não" para não interromper trabalhos.

"É coisa de personalidade e de alguns valores. Quando eu estava no Internacional, começando a reformular aquele time cheio de jovens, o São Paulo me convidou. Meus filhos falavam para eu voltar porque estava longe deles. Falei: 'Não posso. Tenho contrato aqui com os caras'. Não tinha multa, nada. Quando eu estava no São Paulo, o Celso Barros, que era do Fluminense, falou: 'Pô, Muricy, a gente tem o sonho de contratar você'. Eu falei: 'Tenho contrato com o São Paulo e eu não vou sair daqui'".

Como foi o "não" de Muricy à seleção

Eu sabia que se aceitasse [o convite da CBF] eu não ia dormir. Ia ficar com um puta peso na minha consciência. Ia ficar mal, doente. E não me arrependi. Todas as pessoas que me perguntam: "Muricy, você se arrependeu?". Nunca. Não me arrependi de nada. Porque eu fiz o que o meu coração mandou

Muricy Ramalho, sobre a recusa à seleção

Lucas Lima/UOL Lucas Lima/UOL

São loucos de me convidarem para comentar

Muricy Ramalho começou uma nova carreira que nunca esteve em seus planos e virou comentarista do Grupo Globo em 2016. O convite foi inesperado, especialmente porque o técnico colecionou polêmicas com jornalistas em seu currículo. "Estou feliz pra caramba".

"Veio esse convite de comentar jogo. Falei: 'Puta, nunca imaginei isso'. Eu tinha cada puta quebra-pau com os caras. E os caras me convidam para trabalhar com eles? Os caras são loucos, meu".

Muricy foi pego de supetão. Logo de cara foi escalado para comentar um Brasil x Argentina. "Eles nunca me ensinaram nada, nunca me puseram num curso. Eu achei muito esquisito isso. A minha estreia foi num Brasil e Argentina, lá no Mineirão, nas Eliminatórias. Só falaram: 'Você vai viajar terça-feira, quarta é o jogo'. Eu cheguei, pus o terno e falei. Fiquei até assim: 'Caramba'. Você se assusta. Você não sabe olhar para a câmera, essas coisas todas".

Muricy Ramalho ainda é um iniciante na profissão, mas já tem o seu estilo próprio de comentar. Desde o início, deixou claro para a emissora que não era jornalista. O negócio dele era analisar como as equipes se portam taticamente na partida e qual é a estratégia dos técnicos em campo. Ele se sente confortável em criticar os colegas de profissão por não ter qualquer cunho pessoal.

"Eu faço uma crítica técnica, não uma crítica que vai fazer o cara ficar doído. Mas eu tenho que falar. Em um jogo entre Santos e Corinthians, por exemplo, o primeiro tempo do Sampaoli foi uma porcaria porque ele não sabe se defender, só sabe atacar. Quando ele pôs o time para atacar, funcionou. Ele já fez isso três vezes e não deu certo. Não ofendi ninguém, comentei o que aconteceu no jogo. E ele escalou mal o time, por melhor que ele seja. Depois ele reparou tudo e melhorou o time".

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O Mundial do Santos, por Muricy

Nós fomos entrar no jogo, no túnel, lá do Japão, com o time dos caras. Só faltou pedir autógrafo. Se tivesse um telefone celular, nossos jogadores iam tirar foto. Só faltou fazer isso. Eles ficaram babando com os caras porque eles ainda eram muito jovens. Principalmente Neymar e Ganso. Então, era meio que impossível

Sobre o mundial de clubes de 2011

Todos os jogadores do Barcelona eram de seleção. E era a maior fase do Barcelona, inclusive, o Guardiola fala no livro dele que foi o maior jogo da vida deles. A expectativa era fazer um bom jogo, ganhar era difícil

Elogiando o rival, Barcelona, de Messi, Xavi e Iniesta

A gente viu o Barcelona jogar e eu, junto com o Tata: " vou espelhar o jogo. A única maneira de equilibrar é jogar igual a eles, marcando lateral com lateral, marcando os dois da frente com três ". Foi o que nós pensamos

Explicando a estratégia que não funcionou nos 4 a 0 para os espanhóis

Falam da escalação, Só que ali a gente podia espelhar, podia fazer qualquer coisa, podia pôr revólver na cabeça dos caras. Não tinha jeito

Admitindo que o rival era muito melhor

Lucas Lima/UOL Lucas Lima/UOL

Estou vendo o lado humano na imprensa

Em sua carreira como técnico, Muricy Ramalho acumulou discussões e alfinetadas em jornalistas nas coletivas de imprensa. Agora do outro lado, ele conta como sua visão sobre o trabalho da imprensa mudou. Ele passou a conhecer uma realidade que não tinha ideia.

"Agora eu estou vendo do outro lado. Primeiro, que os caras trabalham para caramba. Isso é uma coisa que não é mole. E os caras são muito sérios. Eu tive a felicidade de passar 40 dias na Rússia com as pessoas, principalmente com os produtores, os caras que ficam por trás".

"Os caras trabalham demais e são muito profissionais. Uma coisa que a gente, que está dentro do futebol, treinador, jogador, não sabe. Não sabe que a gente chega no estádio duas horas antes para fazer um pré-jogo. Não sabe como a gente se prepara, se a gente anota as coisas. Eu não sabia de nada disso. Hoje, eu vou para um jogo, eu vou muito preparado sobre o adversário, sobre o que eu vou comentar".

Muricy, agora, tem vários amigos no canal, se reúne com eles para tomar cerveja e frequenta até aniversários em casa. "Comecei a pensar nas coletivas, em que havia os arranca-rabos mesmo. Tinha uns caras maldosos, que eu não gosto disso, mas tinha cara também que eu respondia errado e, porra, agora que eu estou vendo, é o trabalho dos caras. Eu estou vendo isso nos caras. Estou vendo um lado humano".

Equipe AE/Agência Estado Equipe AE/Agência Estado

A idolatria no São Paulo

Muricy conquistou títulos em vários clubes, mas tem uma relação especial com o São Paulo. E uma cena ilustra bem esse amor. Em 2011, ele trocou o clube pelo Santos e, depois de dois meses, voltou ao Morumbi na semifinal do Paulistão. Na saída para o intervalo, ouviu os 45 mil torcedores no estádio gritarem em uníssono. "É, Muricy! É, Muricy!".

"É uma coisa muito louca isso. Porra, nós estamos num país em que o técnico de futebol é o 'burro', e eles pedem o meu nome", conta o treinador. "Você vê quase que um estádio todo gritando o seu nome num clube por onde passou o maior treinador de toda a história do futebol brasileiro, que foi o Telê. Quando eu tô sozinho, eu me emociono porque não é fácil", admite.

Muricy havia sido um dos maiores responsáveis pelo inédito tricampeonato brasileiro e o são-paulino não se esquecera disso. Mas o reconhecimento ficaria ainda maior em 2013, quando aceitou o desafio de voltar ao clube que lutava contra o rebaixamento. O treinador conseguiu manter o time na Série A e até hoje encontra torcedores que se emocionam ao agradecê-lo.

Eu ando por tudo que é lugar e você não tem ideia do que é o torcedor. O torcedor é apaixonado. O cara para na minha frente e começa a chorar do nada. E também tem esse lado que eu nasci nesse lugar. A tendência é eu dar um pouco a mais. E cobrar mais. Eu acho que esse é o segredo. Eu sei o que é o torcedor do São Paulo, então passo isso para os jogadores porque eles têm que saber o que é o São Paulo".

Epitácio Pessoa/Agência Estado Epitácio Pessoa/Agência Estado

Volta ao São Paulo? Gostaria, mas não desse jeito

Por tudo o que construiu no São Paulo, Muricy Ramalho admite ter vontade de voltar a trabalhar no clube. "É difícil [falar em voltar]. Agora acho que não voltaria. Mais na frente, tudo bem. Gostaria, inclusive, mas desse jeito aí não volto", afirmou. O "esse jeito" é como técnico, nesse momento e com a atual diretoria.

"Estou feliz agora. Estou no meio do futebol, com a minha família e com a minha netinha. Eu fui muito intenso no que eu fiz e eu fiquei doente por causa disso. Eu me conheço. Se eu voltar em qualquer cargo, eu vou ser intenso de novo. Não dá para falar: 'Ah, Muricy, vai lá mais ou menos'. Eu não sei ser mais ou menos".

Se pudesse realmente voltar, Muricy projeta uma outra função para atuar no clube. Ele fala em ser uma espécie de "coordenador" para ajudar na gestão do futebol. Mas só aceitaria se tivesse total autonomia.

"Se um dia acontecer, eu acho que a única função que eu tenho é ser um coordenador, mas um coordenador que tenha autoridade. Ou seja, na hora de contratar um treinador, pesquisar realmente o que o São Paulo precisa. Na hora de contratar um jogador, discutir com o treinador porque ele é o cara. Se o cara não está jogando bem, chamar o treinador: 'treinador, seguinte, não está jogando bem. Vamos discutir por que não tá jogando bem'. E o treinador com certeza vai me respeitar porque eu tenho história para discutir com treinador."

Lucas Lima/UOL Lucas Lima/UOL

Estão acabando com o São Paulo

Muricy Ramalho continua sendo uma grande referência para falar do clube em que brilhou. Conhecedor das entranhas do Morumbi, ele conviveu de perto com o atual presidente Leco, quando este era o diretor de futebol, e com a maioria dos conselheiros que seguem mandando por lá. Diante da má fase do São Paulo, que há sete anos não conquista títulos, o ex-técnico demonstra preocupação com o futuro.

"A gente vê os caras acabando com o clube. Só porque ganhou muito no passado, ainda estão presos. Isso já acabou. Outros clubes estão passando por cima. [Os dirigentes do São Paulo] Pararam no tempo. O futebol está cada vez mais profissional. Não pode mais ter amadores perto do futebol", pontuou.

"O São Paulo comete um erro atrás do outro. Por quê? Porque o cara fala: 'não sou eu'. Quem é?. 'Ah, tira o técnico'. Faz dez anos que estão tirando o técnico e não acontece nada. Parece que tá tudo certo. Eu não sei se as pessoas [os dirigentes] não saem na rua, não conversam com o torcedor, que está bravo, porra! Tá incomodado, tá sendo gozado. Será que os caras não percebem que tá errado? Eles têm que, primeiro, reconhecer que tá errado, porque senão vai continuar no erro."

O caso Nenê

Um dos episódios que o ex-técnico cita como "símbolo" dos erros da gestão recente do São Paulo foi a insatisfação de Nenê no ano passado com o banco de reservas. Para Muricy, a postura do clube protegeu um jogador que não estava bem em campo e acabou expondo um treinador.

"Nessa época, mesmo, do Aguirre, jogadores que não estavam jogando bem faziam toda hora carinha feia contra o treinador. Tem que tirar esse jogador e falar: 'meu filho, vem aqui, você está fora'. Ficar chutando copinho, ficar fazendo biquinho? 'Você é profissional aqui. Você não é pago para ser titular. Você vai ganhar no campo'. Tinha que dar força para o treinador, não para o jogador. Mas ficaram do lado do jogador, pô. O jogador se sente cômodo. O jogador se sente o dono do time", pontuou. "O jogador fala: 'se eu jogar mal aqui, o cara manda o técnico embora'".

Às vezes, parece que o jogador é maior que o time, que o São Paulo. Pelo amor de Deus. Esse cara aqui não está jogando nada e acha que é melhor que o time, não sabe o que é a história do São Paulo, não tem 'semancol'."

Muricy enfrentou adversários fora e dentro do São Paulo para ser tricampeão

O Raí se perdeu

Muricy também analisa a situação de Raí no clube. Ele aprova o nome do ídolo são-paulino para a diretoria de futebol e a participação de Lugano na gestão do clube, mas admite ter se decepcionado com ele por conta da demissão do técnico Diego Aguirre na reta final do Brasileiro de 2018.

"O que eu acho é que o Raí se perdeu um pouco no final porque ele começou a tomar decisões sozinho. A gente ouve o Ricardo Rocha falar que não foi consultado, por exemplo, no negócio do Aguirre. Para você tomar decisões desse nível, de mandar um técnico embora, tem que ser muito estudado, cara. Faltando cinco jogos.."

"Eu pensava: Raí, um cara jovem, um cara que trabalhou na Europa, com ideias muito boas, família ótima, um irmão sensacional, de ideais fenomenais. Aí o que aconteceu no final do campeonato com o Aguirre? Voltou a ser que nem os outros. A gente esperava mais do Raí", avaliou.

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