Ameaças ao Hexa: Bélgica

Envelhecida, geração Belga que eliminou o Brasil tem "última dança" em busca de título na Copa 2022

Thiago Arantes e Rafael Reis Colaboração para o UOL, em Barcelona e em São Paulo Sylvain Lefevre/Getty Images

A Bélgica passou os últimos anos chegando às grandes competições com o rótulo que marcou seus jogadores por quase uma década: o da "ótima geração". Não era por acaso. Do goleiro aos atacantes, o país produziu uma safra de jogadores de alto nível, com destaque nos maiores clubes do mundo, e que foi coroada com a vitória sobre o Brasil nas quartas de final da Copa de 2018.

Mas o tempo passou e, apesar do resultado contra a seleção brasileira e da liderança do ranking da Fifa durante a maior parte do ciclo de preparação, os belgas jamais conquistaram um título ou chegaram a uma final. Foram as duas Copas e duas Euros desde que a "ótima geração" surgiu. O Mundial do Qatar se apresenta como última grande oportunidade para a equipe de Thibaut Courtois, Kevin De Bruyne, Eden Hazard e Romelu Lukaku finalmente chegar ao topo. O otimismo, entretanto, é contido.

"Hoje em dia, existem oito ou nove seleções que, em um dia bom, podem ganhar de qualquer adversário. Então, não dá para ter um objetivo tão ousado. A margem de erro nunca foi tão pequena quanto agora. Queremos usar os três jogos da primeira fase para ver como a equipe se comporta. Aí, dependendo de como crescermos, podemos ter um objetivo mais claro", diz, o técnico Roberto Martínez, em entrevista ao UOL Esporte.

Stéphane Demol, zagueiro da seleção belga nas Copas de 1986 e 1990 considera que será difícil até chegar novamente às semifinais. "A seleção da Bélgica não está atualmente em seu melhor nível. Acho que será difícil ir mais além das oitavas de final", prevê, citando alguns dos problemas recentes do elenco. "Eden Hazard quase não joga no Real Madrid, Lukaku não está bem fisicamente e a defesa não é mais a mesma".

O maranhense Luis Oliveira, conhecido - no Brasil e na Bélgica - como "Oliverrá", é mais otimista. Atacante da seleção belga na Copa de 1998, ele aponta a seleção comandada por Roberto Martínez como candidata a voos maiores. "Para mim, vai surpreender muito. É um time muito experiente, com jogadores que todos já conhecemos. Tem uma grande possibilidade de fazer uma ótima Copa e chegar de novo entre os quatro primeiros".

Sylvain Lefevre/Getty Images

Como joga a Bélgica?

O técnico Roberto Martínez mantém uma estrutura tática parecida com a que levou os belgas à semifinal na Rússia. A base do time é uma defesa com três zagueiros, usada pelo treinador desde as Eliminatórias para o Mundial de 2018. A partir desta estrutura, o desenho inicial pode ser um 3-4-2-1 ou um 3-4-3, de acordo com o adversário e as características dos jogadores.

"Disputamos 50 partidas internacionais e tivemos a oportunidade de estrear 27 jogadores novos. Com isso, aumentamos nosso leque de opções. O nosso jeito de jogar é o mesmo de quatro anos atrás, mas temos caras novas. E peças novas sempre trazem algumas mudanças, geram impacto individual, no futebol que praticamos. O que importa é que nos mantivemos em alto nível", explica Martínez.

A primeira peça na escalação belga é sem dúvida uma das mais importantes: Thibaut Courtois foi eleito o melhor goleiro da temporada passada e acabou em sétimo na votação da Bola de Ouro, depois de ser peça fundamental na campanha do Real Madrid campeão da Champions League.

A ideia de Roberto Martínez é sair jogando com bolas curtas, usando os três zagueiros e um dos volantes (Witsel ou Tielemans, por exemplo) para levar a bola de defesa para o campo adversário. Outra característica muito usada é ter um ala mais ofensivo e outro com características mais defensivas. Com isso, a equipe também consegue defender em uma linha de quatro, com o ala defensivo na primeira linha, e o ofensivo compondo o meio-campo -foi o que aconteceu na vitória contra o Brasil, em 2018, quando Chadli (o ala-esquerdo) ajudava os volantes a ter superioridade numérica no meio.

No meio-campo, a Bélgica tem testado duas opções: a primeira delas é usar dois volantes: Axel Witsel, do Atlético de Madrid, e Youri Tielemans, do Leicester, são os nomes mais cotados; a segunda é ter apenas um jogador mais defensivo e escalar Kevin De Bruyne no meio, em uma posição mais recuada, para ajudar na construção de jogadas desde o círculo central.

A primeira opção, com dois volantes, é a preferida do treinador. Assim, De Bruyne passa a ser um dos três jogadores do setor ofensivo, com liberdade para aparecer pelo meio, como segundo atacante, ou por uma das pontas. Nesta configuração, o trio ideal de Martínez teria ainda Eden Hazard e Romelu Lukaku, mas a forma física e técnica de ambos tem preocupado. O jovem Charles de Ketelaere, do Milan, e Leandro Trossard, em ótima fase no Brighton, aparecem como opções de mudança.

Ponto forte

Experiência e entrosamento

A seleção belga pode ter envelhecido quatro anos e perdido alguns de seus principais jogadores, como o zagueiro Vincent Kompany, mas o tempo joga a favor em outro aspecto: o entrosamento. A permanência de Roberto Martínez como treinador após a Eurocopa significou também a manutenção da base do time titular que foi à Rússia, há quatro anos.

Um exemplo: sete dos titulares do duelo contra o Brasil em 2018 não apenas continuam na seleção, como têm boas chances de serem titulares. Na seleção brasileira, apenas Alisson, Thiago Silva e Neymar jogaram aquela partida em Kazan e estão garantidos como titulares absolutos no Qatar.

"É um time muito completo, com bons jogadores em todas as posições, especialmente do meio para frente", afirma Luis Oliveira. "Um ponto que me preocupa é o [Eden] Hazard. Eu gostava muito dele no Chelsea, mas no Real Madrid virou outro jogador", acrescenta. Em Madri, Hazard virou reserva e está longe de voltar ao time titular. Nas três primeiras temporadas no clube, ele marcou apenas 6 gols e deu 8 assistências -só em 2018-19, pelo Chelsea, foram 21 gols e 17 assistências.

A situação de Eden Hazard explica bem a estratégia do comando da seleção: ele continua sendo convocado e deve começar a Copa do Mundo como titular porque, além de ser o capitão do time, joga com boa parte dos companheiros há quase uma década. Com pouco tempo para treinar e sem produzir jogadores de alto nível em série, como a França ou o Brasil, entrosamento e experiência fazem a diferença.

Há dado impressionante que mostra como a base belga está consolidada: dos dez jogadores com mais partidas na história da seleção, oito estão em atividade e devem estar no Qatar, incluindo os seis primeiros. O zagueiro Vertonghen, com 141 jogos, puxa a fila, que tem ainda Axel Witsel (126), Toby Alderweireld (123), Eden Hazard (122), Dries Mertens (106) e Romelu Lukaku (102). Thibaut Courtois (96 jogos) é o oitavo, e Kevin de Bruyne (93) fecha o top 10.

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Ponto fraco

O trio de zagueiros

Dizer que a defesa da Bélgica é o ponto fraco da equipe seria cruel com Thibaut Courtois, eleito melhor goleiro do mundo na última temporada e considerado um dos grandes nomes da posição nos últimos anos. Mas a segurança que os belgas têm embaixo das traves não se repete alguns metros à frente.

"O trio de zagueiros é, sem dúvida, o ponto fraco da Bélgica. São três jogadores veteranos e todos eles estão jogando em times da Liga Belga", explica Samindra Kunti, da World Soccer. Os titulares no Qatar devem ser Toby Alderweireld (33, do Royal Antwerp), Jan Verthongen (35, do Anderlecht), e Dedryck Boyata (31, do Club Brugge).

"Com certeza é última Copa do Mundo desses zagueiros", afirma o ex-zagueiro Stéphane Demol, titular da seleção belga em 1986 e 1990. "O problema é que Vincent Kompany se aposentou e não apareceu nenhum jovem de nível parecido com o dele", acrescenta. Além do trio de veteranos, a Bélgica deve levar ao Qatar o jovem Zeno Debast, 19, do Anderlecht, e Arthur Theate, 22, que defende o Rennes na Liga Francesa.

Além de Kompany, outro expoente da defesa belga também aposentou-se recentemente: Thomas Vermaelen, convocado em 2014 e 2018, disse adeus aos gramados pouco depois da Eurocopa de 2021, após sofrer com uma série de lesões na fase final da carreira.

"Se eu tivesse que falar um ponto fraco da Bélgica, seria a defesa. Assisti ao último jogo, contra a Holanda [derrota por 1 a 0], e deu para ver que a defesa precisa trabalhar melhor", acrescenta Luis Oliveira. O fraco desempenho defensivo foi marcante no Grupo A4 da Liga das Nações: a seleção belga ficou em segundo lugar, atrás da Holanda, com 11 gols marcados e oito sofridos em seis partidas.

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O craque

Kevin de Bruyne

"Ele entende o jogo com perfeição". A frase de Pep Guardiola sobre Kevin de Bruyne é um resumo das capacidades do principal jogador da seleção da Bélgica nos últimos. O meio-campista do Manchester City pode executar múltiplas funções em campo, e todas elas em alto nível: seja como segundo volante, terceiro homem do meio, armador ou falso 9, ele dá um ritmo diferente ao time.

"Se ele joga bem, o time joga bem. Isso acontece no Manchester City e na seleção da Bélgica. De Bruyne é um metrônomo e um motor", define Samindra Kunti. Para o jornalista belga, a qualidade do meio-campista se sobressai ainda mais na atual situação do futebol do país. "Antes, falávamos vários nomes de jogadores de alto nível. Agora, são dois: Courtois e De Bruyne."

Stéphane Demol, um dos destaques da seleção quarta colocada em 1986, também se derrete por De Bruyne, mas se preocupa pela falta de qualidade ao lado do astro. "Kevin de Bruyne é o jogo: ele sabe passar, sabe dar ritmo, chuta bem. Com um movimento, ele coloca os companheiros na cara do gol. Só que no Manchester City os companheiros aproveitam esses passes", diz.

O brasileiro Oliveira, que disputou 31 partidas pela Bélgica e marcou seis gols, também se encanta com aquele que diz ser o maior talento produzido pelo país. "É um jogador experiente, com personalidade, que chuta com as duas pernas e é muito inteligente. É sem dúvidas o melhor jogador da seleção da Bélgica".

Terceiro colocado na Bola de Ouro da temporada 2021/22, De Bruyne teve um início de ciclo complicado após o Mundial da Rússia. Na temporada 2018/19, ele teve cinco lesões diferentes que o afastaram dos gramados por cerca de seis meses. Desde então, a carreira decolou: desde a temporada 2019/20, ele já soma três temporadas seguidas com mais de 10 gols e mais de 15 assistências (somadas todas as competições).

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A promessa

Charles de Ketelaere

A geração dourada da Bélgica já ensaia o adeus às grandes competições, mas o país ainda produz jogadores com potencial para serem estrelas de nível mundial. Da nova safra, o principal nome é Charles de Ketelaere, que faz sua primeira temporada no Milan depois de três anos no Clube Brugge.

Destaque das categorias inferiores da seleção belga desde o sub-16, o meia-atacante grandalhão de 1,92m apareceu para os gigantes europeus na edição de 2021/22 da Champions League. Em um grupo com PSG e Manchester City, o Brugge acabou eliminado, mas o jovem destacou-se pela classe e personalidade em campo.

"O Milan assistiu a vários jogos dele antes de comprá-lo. Foram vários relatórios sobre ele na época do Brugge. Ele pode ser um dos destaques do Campeonato Italiano nos próximos anos", afirma Luis Oliveira, que vive na Itália desde 1992 -quando jogou no Cagliari- e acompanha de perto o Calcio.

Embora ainda não tenha se firmado na equipe titular dos rossoneri, de Katelaere já foi comparado a um dos maiores ídolos da história do clube: o brasileiro Kaká. A forma de conduzir a bola, o tipo físico e até a aparência colaboraram para a memória dos torcedores e da imprensa se lembrarem do brasileiro.

"Ele é muito bom. Tem muito talento e muita classe para jogar. Ele vai chegar bem à Copa, mas talvez ainda seja cedo para conquistar uma vaga no time. As comparações com o Kaká mostram o potencial dele. Não sei se será um Kaká, mas tem tudo para ser um grande jogador", afirma Stéphane Demol.

Oliver Hardt - UEFA/UEFA via Getty Images Oliver Hardt - UEFA/UEFA via Getty Images

O que a Bélgica pensa do Brasil

Por Tom Boudeweel, jornalista da VRT

"Aqui na Bélgica, a seleção brasileira tem a mesma imagem que em quase todo o resto do mundo: é uma equipe com grandes nomes. É o time de Pelé, de Ronaldo, de Sócrates. Uma seleção com muita técnica, e também com algo de "samba" no seu futebol. Sei que isso é um pouco clichê, mas é a imagem que o Brasil tem na Bélgica.

O tamanho da seleção brasileira por aqui pode ser medido por uma coisa: a vitória contra o Brasil em 2018 é considerada a mais importante da história da seleção belga.

Nos últimos anos, a Bélgica liderou o ranking da Fifa por muito tempo, mas jamais chegou a uma final, e nem venceu uma seleção europeia de grande porte. Por isso, aquela vitória contra o Brasil é um marco na história do futebol do país. Depois daquele jogo, as pessoas diziam "podemos não ser campeões, mas pelo menos vencemos a melhor seleção do mundo".

A seleção brasileira sempre teve ótimos atacantes. E este ano não é diferente: a força do ataque é enorme. Como era há 10 anos, há 20 anos ou há um século. Vinícius está muito bem, e Neymar continua em alto nível. Hoje o time é melhor que há quatro anos, é mais equilibrado. Contra a Bélgica, em 2018, o meio-campo do Brasil foi facilmente dominado; hoje, seria mais difícil isso acontecer.

Como pontos fracos, eu destacaria dois: o primeiro são os laterais; e o segundo, a falta de jogos contra grandes times europeus. Talvez o Brasil possa sentir falta dessa experiência, de saber muito bem o que fazer quando sair perdendo por 1 a 0 contra uma seleção europeia"

Buda Mendes/Getty Images Buda Mendes/Getty Images

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