No lado rival

Campeão com a seleção em 58, Moacyr mora há décadas no Equador, mas mantém carinho pela camisa que defendeu

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Reprodução

Sete meses depois, com intervalo estendido em razão dos desafios na pandemia do coronavírus, a seleção enfim volta a disputar uma partida das eliminatórias da Copa de 2022 nesta sexta-feira (4), às 21h30, em Porto Alegre. O adversário é o Equador, país que abriga há décadas um dos poucos campeões mundiais de 1958 ainda vivos. Moacyr Claudino Pinto certamente viverá uma noite de coração dividido.

Moacyr é um dos seis remanescentes ainda vivos da histórica primeira conquista da seleção em Mundiais, na Suécia - ao lado de Pelé, Zagallo, Pepe, Dino Sani e Mazzola. Mas os caminhos da vida fizeram o ex-jogador do Flamengo fixar base em terras equatorianas, onde talvez seja mais ilustre do que no país de origem.

Depois do campeonato mundial e de várias vitórias com o seu Flamengo, Moacyr jogou no Boca Juniors, no Peru e no Equador, encerrando a carreira no Barcelona de Guayaquil - cidade onde vive até hoje. O sotaque quase não aparece, apesar dos 60 anos fora do Brasil. Atualmente o ídolo está feliz por ultrapassar a marca dos 85, completados no último dia 18 de maio, em data festejada com a esposa Martha, os filhos Jordan, Júnior e Claudet, e os três netinhos.

Mesmo de Guayaquil, faz questão de seguir acompanhando o Fla de Gabigol e Arrascaeta. Um time tão poderoso como aquele de 1958, que deu à seleção de Vicente Feola em 1958 uma linha de ataque inteira: Joel, Moacyr, Dida e Zagallo. "São dois Flamengos de duas épocas boas. Eu acho que o meu time ganharia de 3 a 2", diz o campeão mundial.

Esse é o nosso personagem, dividido entre dois países, mas com a "amarelinha" da seleção ainda no coração, apesar da vida estabelecida no Equador. A partir de agora, em depoimento em primeira pessoa, Moacyr conta sobre este sentimento e narra histórias saborosas de um tempo romântico do futebol brasileiro.

Reprodução
Reprodução

De Osasco para a Gávea

Eu fui criado no Educandário Dom Duarte, na região de Osasco. Tinha uns 14 anos e jogava bem. Então, o diretor da escola escreveu uma carta e me encaminhou para um treino no Corinthians. Fui para lá, mostrei a carta e me mandaram sentar. Mas o treino dos meninos começou e ninguém me chamou. Resolvi ir embora.

No Educandário o diretor resolveu escrever outra carta. Diretamente para o Vicente Feola, que na época era o diretor de base do São Paulo. Cheguei lá, entreguei a carta para o seu Feola. Ele me mandou sentar. E fiquei esperando. O treino rolando. E ninguém me chamou. Eu levantei, peguei minha malinha e voltei para a escola.

Foi aí que o diretor, que era do Rio e conhecia o presidente do Flamengo, me levou para a casa dele. No dia seguinte, parou uma caminhonete na porta da casa e gritaram se tinha um Moacyr ali. Era eu mesmo. O veículo tinha o símbolo do clube.

Cheguei no campo, e o técnico Nilton Canegal me mandou entrar. Quando acabou o treino, ele, o Bria e o Jaime, que eram os responsáveis pela base, me chamaram: "ô garoto, vem cá!". Eu fui. Disseram: "Você volta para o treino de amanhã". Mas eu falei que não morava no Rio, que ia voltar para São Paulo no dia seguinte e eles falaram: "Tá certo, então, já sobe para o seu quarto na concentração aqui da Gávea".

E não saí mais de lá.

Joguei nas equipes da base, no aspirantes, até que seu Fleitas Solich resolveu me chamar de surpresa para um Fla-Flu, com 100 mil pessoas no Maracanã. Ganhamos de 1 a 0, gol de Evaristo de Macedo de cabeça (de fora da área), no Castilho. Mas eu entrei tremendo em campo. Os mais velhos como o Dequinha e o Rubens gritavam comigo: "Não fica olhando para a torcida, não, se concentra!"

HorstmÃ?ller/ullstein bild via Getty Images

Copiando Didi nos treinos da seleção

E logo eu, o menino do Educandário Dom Duarte, era chamado para a fase de preparação da seleção que ia para a Copa. E eu vou contar aqui um segredo: quando saiu a lista, não me apresentei. Não podia ser eu o convocado. Devia ser o Moacir Bueno, que jogava no Bangu e batia um bolão.

Por isso, eu estava treinando normalmente na Gávea, quando chegaram uns diretores da CBD (Confederação Brasileira de Desportos) e foram falar com o treinador Fleitas Solich. Queriam saber por que eu não tinha me apresentado. Foram lá me buscar, e eu cheguei tremendo no Hotel das Paineiras. Foi uma surpresa incrível ver todos aqueles craques reunidos. A sorte é que no grupo estava o ataque do Flamengo: Joel, Dida e Zagallo, e então fui me enturmando.

Eu era o mais garotinho na disputa da posição. Didi era o dono do time e ninguém pensava que ele ficaria fora da lista que iria viajar. Eu sabia que jogava bem, mas pensava apenas que deveria fazer de tudo para ficar no grupo. E um belo dia eu, o Joel, o Dida e o Zagallo fechamos um pacto: vamos fazer barulho nessa seleção!

Nos treinos em Araxá e Poços de Caldas eu ficava vendo o Didi. Eu disfarçava o olhar, mas ficava vendo como ele baita na bola. E por várias vezes tentei imitar a batida da 'Folha Seca'. Lembro como se fosse hoje: ele metia o dedo gordo do pé direito por baixo da bola, que subia e caía atrás da barreira. Ele não batia forte, não. E a barreira naquele tempo não pulava, às vezes ficava até de costas para a bola.

Eu comecei a bater também. E acho que aprendi, porque depois nos times em que joguei fui batedor de faltas e pênaltis. Mas ali na seleção era treino e mais treino.

E teve um dia que um jornal do Rio deu em manchete: 'Quem é melhor: Didi ou Moacyr?' Foi uma baita sacanagem, não havia comparação possível com o Didi. E eu fui falar com ele, meio sem jeito. Mas ele era muito humilde, muito na dele. E nem deu bola.

Moacyr, sobre o episódio na Copa

Enfim escolhido por Feola

E aos poucos foi chegando a hora da viagem, da lista definitiva. Teve um jogo no Pacaembu e, depois da partida, o Feola falou que a gente estava livre para se divertir, que no dia seguinte seria divulgada a lista definitiva. Seriam cortados sete jogadores. Eu pensava: será que vou ficar?

Nessa noite, o Didi me chamou de lado e, antes que eu saísse com a turma, me falou: "Menino, você é novo, está chegando agora e deve se preservar. Não saía, não. Fique no hotel. Vai para o seu quarto. Vai dormir. Vai descansar", disse. E eu fui dormir, sonhando que ficaria na seleção. Acho que o Didi já sabia que eu ia permanecer no grupo. Mas eu nunca perguntei isso para ele.

Em compensação, teve um dia um pouco antes da viagem que eu fui falar com o seu Vicente Feola.

Eu falei: eu já conhecia o senhor. E ele ficou me olhando: "De onde você me conhece?". E eu disse do treino na equipe de base no São Paulo. Fui lá, levei uma cartinha e fiquei esperando. Mas como o senhor não me chamou para entrar em campo, eu fui embora. E ele, com aquele jeito bonachão dele respondeu: "Ainda bem que você foi embora, se não estaria esperando sentado lá até agora e não estaria aqui na seleção".

Emilio Ronchini/Mondadori via Getty Images Emilio Ronchini/Mondadori via Getty Images

Mané e o rádio sueco: "é verdade!"

E viajamos para a Itália e depois para a Suécia. Nos treinos, um time sempre treinava com o ataque do Flamengo mais o Vavá ou o Mazzola de centroavante. Imagina só a alegria que nós quatro sentíamos por estar naquela turma. E eu, então? Quando olhava para o campo de treino, imaginava o Educandário Dom Duarte, eu jogando sem sapato e agora treinando no meio daqueles craques todos, com chuteira. Tudo isso vinha à minha mente.

Eu sempre estava rindo. Estava sempre olhando as brincadeiras do Mané Garrincha. Ele divertia todo mundo. Aquela história do rádio que falava sueco foi pura verdade. Ele comprou um rádio e ficou bravo quando chegou na concentração e ligou o aparelho. Ficou com raiva porque não falava em português.

E no dia do teste psicológico? Quando chegou a vez do Mané, nós ficamos na sala esperando ele sair. Era preciso fechar os olhos e fazer um risco perpendicular. E nós ouvimos o Mané falando: "Ô, professor, porque eu vou fechar os olhos para fazer o risco, se na hora jogar eu vou driblar com os olhos abertos". Ele falou e saiu da sala.

Ele era incrível. Nunca vi nenhum jogador como ele. E joguei com Pelé, adoro o Pelé. Mas o Mané... era único e inconfundível.

Antes do jogo contra a União Soviética tem uma outra boa história do Garrincha. A nossa seleção tinha um auxiliar que acompanhava nossos adversários e então ele veio fazer uma palestra. Começou falando do goleiro russo, que saía assim e assim do gol. Do lateral direito, dos zagueiros.

Moacyr, sobre o temor antes do jogo na 1ª fase

Quando foi falar do lateral esquerdo, o Mané levantou e disse: 'Pode parar, professor, eu já conheço o cara, deixa comigo'. Todo mundo riu. O Mané levantou. E no jogo foi o que se viu. Em minutos ele tinha desmontado a defesa soviética com seus dribles e uma bola na trave logo a um minuto.

Moacyr, comentando a vitória histórica por 2 a 0

Getty Images Getty Images
Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty Images

Sofrendo do lado de fora na semifinal

No meio dessa gente toda, que se gostava e se respeitava muito, eu tinha a minha esperança de jogar um dia. E esse dia foi quando o Didi sentiu o tornozelo na partida antes da Inglaterra. Acho que se machucou no jogo contra a Áustria. Pensei que, se ele não se recuperasse, eu ia entrar. Mas qual o quê: a seleção tinha o massagista Mário Américo. E ele colocou o Didi em ordem.

Mesmo sem jogar, a gente suava frio assistindo às partidas. A gente ficava em uma tribuna especial, na arquibancada, bem no centro do campo. Naquele tempo entravam só os 11 em campo. Se alguém se machucasse, não tinha substituição, não. Nem cartão amarelo ou vermelho. Outros tempos. E a gente ficava ali na torcida, nervoso.

Eu não tinha superstição, mas tinha jogador que punha santinho na canela, cruz, um monte de coisa. Mas eu torcia na raça. Foi uma campanha brilhante, mas teve um jogo que eu quase tive um treco: a semifinal contra a França, eles tinham um ataque extraordinário. Tinham o Just Fontaine, o artilheiro da Copa. Naquele dia eu sofri, mas logo as coisas voltaram ao normal. Nosso time era muito bom.

Arquivo Pessoal

Pelé por uma noite

E essa questão de superstição não atrapalhou, não. Falam muito da camisa amarela que a Suécia fez questão de usar na final. Mas eu sabia que não era problema. Problema foi no dia da apresentação da Copa, quando trocaram a bandeira do Brasil por uma de Portugal, mas logo corrigiram a falha.

Mas antes da final, eu falei com a turma do Flamengo. E ficamos calmos. Aqueles suecos eram os mesmos que tínhamos enfrentado um ano antes em uma excursão pela Europa. E nós tínhamos enfiado 5 a 0 ou 5 a 1 neles. Eu falei com o Joel, Dida e Zagallo: "Esses loirinhos não podem com a gente". E não puderam mesmo.

Se ganhamos prêmios pela conquista do mundial?

Olha, depois que acabou a Copa, o seu Vicente Feola contou que tinham chegado vários telegramas oferecendo prêmios, mas ele nunca falou disso antes para não atrapalhar o ambiente. Mas depois da conquista sobre a Suécia, ele disse que iríamos ganhar uma casa e um carro quando voltássemos ao Brasil. Mas a única coisa que ganhei foi uma bicicleta sueca, que usei bastante quando ainda permaneci no Flamengo.
Mas, depois que fui para o Boca Juniors, nunca mais soube dela.

Na festa que aconteceu em Estocolmo, depois do jogo, muita gente achava que eu era o Pelé. Dizia que não era eu, apontava para onde ele estava, mas ninguém me entendia. As mulheres passando a mão no meu braço para ver se saía a tinta... gritavam: 'Pelé, Pelé, Pelé', me abraçavam e, então, não resisti... fui Pelé por uma noite.

Moacyr, sobre a noite do título em 29 de junho de 1958

UOL UOL

+ Especiais

Tiago Leme/UOL

Salário baixo, muito calor e quarto com 12 pessoas: a vida dos trabalhadores da Copa de 2022 no Qatar.

Ler mais
Reprodução/Instagram

Cicinho agora como comentarista: clima no Arena SBT e jogadores que "não o atendem mais".

Ler mais
Arquivo pessoal e Ricardo Borges/UOL

Bola Sete perde 150 kg e vê espaço sumir como animador tradicional do esporte brasileiro.

Ler mais
Mathias Renner/City-Press via Getty Images

Destaque na Alemanha, Matheus Cunha fala das dificuldades de ser negro e nordestino no futebol.

Ler mais
Topo