Radiados do Olímpico

Estádio da Copa América em Goiânia serviu de campo de refugiados no maior acidente radiológico do mundo

Eder Traskini Do UOL, em Goiânia Pedro Vilela/Getty Images
Eder Traskini/UOL

A casa em que tudo começou fica a duas quadras."

Foi uma das primeiras coisas que ouvi quando cheguei ao estádio Olímpico, em Goiânia — onde a seleção joga no domingo (27). Enviado para cobrir a Copa América, tinha estudado sobre a história: o maior acidente radiológico do mundo acontecera ali, em 1987.

Naquela ocasião, o gramado do Olímpico servira como abrigo. Era um acampamento para as vítimas primárias da abertura da cápsula contendo 19,26 gramas de césio-137, substância radioativa.

A passos apertados, saí do estádio rumo ao (mal)dito terreno. O local fica em um bairro residencial. Pessoas circulam pelas ruas e, muitas vezes, nem sabem que foi ali que tudo ocorreu —constatei isso ao tentar me informar.

Quando cheguei, a primeira coisa que chamou atenção foi o concreto —você pode ver na foto acima. Vazio até hoje, o terreno da rua 57 não tem grama alta ou lixo, como seria comum a terrenos baldios, apenas uma imensidão concretada (até três metros para dentro do solo, como contaram depois). Tudo para evitar que a radiação se propague.

No muro ao fundo, um grafite conta a terrível história daquele lugar: um homem azul, cor do césio-137, eleva em sua mão uma pedra, representada por uma caveira cercada por raios —que você vê na foto abaixo. Naquele momento, há 34 anos, os catadores Roberto dos Santos Alves e Wagner Mota Pereira ainda não sabiam o mal que estavam libertando da pesada peça de chumbo que tinham encontrado.

Eder Traskini/UOL
Grafite na parede do local em que o césio-137 foi liberado em Goiânia

O que é césio-137?

A cápsula encontrada em Goiânia era a fonte radioativa de um aparelho de radioterapia abandonado. o equipamento era usado para bombardear células cancerígenas e destruí-las sem afetar os tecidos próximos. O césio estava dentro do aparelho e de uma blindagem.

Quando essa cápsula blindada foi rompida, o césio-137, um pó azulado que brilha no escuro, foi liberado. O problema é que materiais radiativos como esse emitem radiações ionizantes, feixes de partículas ou de ondas eletromagnéticas capazes de atravessar corpos sólidos, afetando estruturas atômicas. Radiações assim podem provocar lesões nas células e tecidos vivos, causando uma série de efeitos nocivos —esses efeitos caracterizam o envenenamento por radiação.

Divulgação/CNEN
Trabalhadores atuam na contenção da tragédia radioativa, com os tapumes relatados pelos antigos moradores

Tapumes

Roberto e Wagner eram simples catadores que buscavam objetos de valor para vender. "A verdade é que eles invadiram uma propriedade e roubaram a peça", disse um ex-jogador muito conhecido na cidade, mas que pediu para não ter seu nome divulgado na reportagem.

De fato, a dupla invadiu um terreno abandonado para ter acesso a uma enorme, e, para eles, valiosa, peça de chumbo. A culpa, no entanto, não fora dos catadores, mas de quem abandonou o material ali. Os donos do antigo Instituto Goiano de Radioterapia seriam mais tarde responsabilizados.

Coletaram a peça onde hoje fica o Centro de Convenções da cidade. De lá, transportaram até a rua 57 por um trajeto curto, de menos de 1 km.

No quintal da casa de Roberto, a dupla tentava de tudo para separar o chumbo. As marretadas foram ouvidas pela vizinhança. Daniel de Lemes, 42, subiu no muro para ver o que estava acontecendo.

"Eles tentavam quebrar e, lembro, tinham um pastor alemão que latia, latia, latia. Depois que tudo foi descoberto, também por sobre o muro, eu vi darem a injeção para sacrificar o cachorro, que tinha se tornado fonte de radiação", contou Lemes enquanto fritava um pastel no estabelecimento da família, a mais antiga pastelaria de Goiânia.

O que talvez o amigo de quatro patas tentava avisar era que aquela peça representava perigo mortal a todos. Dias depois, quando tudo foi revelado, Daniel acordou com tapumes isolando a rua.

Eder Traskini/UOL

Eles entravam nas casas e levavam tudo. Um amigo tinha acabado de comprar um som, e o exército levou por causa da radiação. Se o Roberto tivesse conseguido abrir na casa dele, teria trazido pro mercado e seria ainda pior."

Daniel de Lemes, dono de uma pastelaria a meia quadra de onde tudo aconteceu, em região movimentada na época.

Eder Traskini/UOL Eder Traskini/UOL

A triagem

Sem conseguir abrir o objeto da forma que gostariam, Roberto e Wagner venderam a peça ao ferro-velho de Devair Alves Ferreira. Foi Daniel quem me explicou o curto caminho de cerca de 700 metros da rua 57 até o antigo estabelecimento.

Já acostumado à ideia do concreto, o terreno da rua 26 não me surpreendeu com isso, mas sim com o tamanho. Era três vezes maior que o primeiro e muito mais "malcuidado". A grama crescia nos espaços entre o concreto e até uma árvore se arriscava a ocupar um lugar ao fundo (o terreno e o detalhe na imagem acima) —me informaram, depois, que medições constantes são feitas no local e que não há perigo na vegetação.

Ali, tudo se intensificou. Se na casa de Roberto as primeiras partículas foram liberadas, foi no ferro-velho de Devair que as primeiras pessoas que morreram no acidente foram contaminadas: sua esposa, Maria Gabriela, e seus funcionários, Israel e Admilson. A quarta e emblemática vítima foi a menina Leide das Neves, de 6 anos, que se alimentou com a mão suja e acabou ingerindo césio-137.

A demora em identificar o acidente fez com que partículas de césio-137 fossem distribuídas por Devair, maravilhado com o brilho azulado do material, para várias pessoas e se espalhassem pela cidade. Isso fez com que, voltando para a nossa sede da Copa América, filas enormes se formassem ao redor do complexo onde se encontra o estádio Olímpico para triagem: uma medição mostrava quem estava ou não infectado.

112 mil pessoas passaram por ali. Quem tinha um nível de radiação "acima do normal" era encaminhado a hospitais. No início, porém, houve quem passou pelos banhos de descontaminação.

Eder Traskini/UOL

Lembranças da tragédia

Eles passam a máquina em torno de seu corpo, como se fosse para detectar metais. Ela tem um barulho constante. Um 'tec-tec-tec'. Quando há radiação acima da média, esse barulho tem o ritmo acelerado. Então, o aparelho identifica até em distâncias maiores. Ela pode não estar com a saúde comprometida, mas naquele momento é uma fonte de radiação. Por isso a necessidade da limpeza especial."

Rogério Borges, jornalista que tinha dez anos na época. Ao lado, a máquina de detecção de radiação.

Monitoraram minha mão e falaram que tinha contaminação. Me deram um banho humilhante, a gente com as mãos na parede, nu, uma mangueira bem forte e com uma vassoura mergulhada em um balde com produtos. Quando me liberaram, mandaram tomar cerveja porque a contaminação interna sairia na cerveja. O banheiro do boteco que frenquentava foi demolido por contaminação."

Odesson Ferreira, uma das principais vítimas, em entrevista ao jornal "O Popular"

Tinha que fazer essa medição a cada semana. Uma vez o aparelho apitou comigo. Aí pediram pra eu tirar a camisa e era só a camisa. Lembro que meus pais me mandaram pro interior, pra morar com um tio por uns dias, mas ninguém queria andar comigo. Tinham medo. As mães diziam que eu era 'lá do césio' e não deixavam os filhos andarem comigo. Não demorou muito e eu voltei pra cá."

Daniel de Lemes, dono de uma pastelaria a meia quadra de onde tudo aconteceu

Eder Traskini/UOL
Sueli Lina, presidente da associação das vítimas do acidente

Drama longe dos filhos

Sentada na mureta que impede que carros invadam o terreno da rua 26, Sueli Lina, presidente da associação das vítimas do césio-137, revela o dia em que levou o filho para tal triagem. Filas quilométricas davam voltas no local e pessoas se aglomeravam para saber se estariam elas próprias emitindo radiação.

Naquele dia, a roupa do filho de Sueli estava contaminada.

"Tiraram a roupa dele todinha, voltou pra casa só de cuequinha. Tinha seis anos na época. Mandaram dar banho de vinagre", lembrou.

Ela não perdeu tempo e levou seus filhos para longe do local onde morava, perto do ferro-velho de Devair. Quem morava por ali ou muito próximo da casa de Roberto tinha sido removido de suas residências e levado ao estádio Olímpico.

"Foi urgência no Olímpico. Tinha que tirar as pessoas das casas que estavam contaminadas e ninguém aceitava recebê-las, com medo. O estádio foi provisório até que encontraram a Febem (antiga sigla de Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor), que abrigou o pessoal por mais tempo."

Quem não pôde ficar ao lado dos filhos foi Luiza Odete. O contato direto do césio com sua pele a fez sofrer duplamente: mãe de quatro filhos, ela logo foi levada ao Rio de Janeiro para tratamento e perdeu qualquer tipo de contato direto com os filhos acampados no estádio. A caçula tinha apenas seis meses de vida.

Eles (os filhos) não gostam nem de lembrar disso, por isso não querem falar do episódio. Pra mim foi muito difícil, porque fiquei sem informação deles. Perguntava aos técnicos da CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear) até que um dia arrumaram um rádio para que eu pudesse falar com eles."

Luiza Odete, uma das vítimas da tragédia em Goiânia

Eder Traskini e Arquivo/CNEN
Marcos Alexandre hoje e o Estádio Olímpico em 1987

Radiados

Marcos Alexandre, 45, era da turma de Daniel. Seu pai era administrador do estádio Olímpico naquela época, e o muro dos fundos de sua casa era o mesmo do complexo que abriga a Copa América hoje.

Então com 11 anos, ele lembra de um telefonema na madrugada que tirou seu pai da cama e alertou para a gravidade da situação.

"Ligaram para ele e pediram para acender as luzes porque o exército estava vindo para Goiânia. O relógio de luz do Olímpico ficava dentro do nosso quintal", conta.

Pelo menos uma vez por semana, Marcos passava pela triagem para medir sua radiação. Ele não se mudou dali. Hoje treinador e professor de basquete, Marcos sofreu bastante com preconceito por causa do acidente. Quando viajava com um time, pessoas evitavam contato por saberem que ele era de Goiânia. "Diziam que eu estava radiado".

E o medo da população não era exclusividade de quem vivia fora de Goiânia. A região do acidente viu os preços de imóveis despencarem. Ninguém queria os "radiados" por perto, chegando a apedrejar o velório das vítimas, enterradas em caixões de chumbo de 700 kg com auxílio de um guindaste. Os túmulos foram revestidos de concreto e colocados no lado mais afastado do Cemitério Parque.

A história conta que só a mãe de Leide das Neves conseguiu se aproximar do caixão da filha sem ser agredida após apelo de Sônia Santillo, primeira-dama do Estado na época, que implorou: "Deixem a mãe enterrar sua filha".

Alexandre Schneider - FIFA/FIFA via Getty Images Alexandre Schneider - FIFA/FIFA via Getty Images

Futebol contra o preconceito

O jornalismo tem desses momentos em que você se vê falando com a própria história. Foi assim que me senti ao ligar para Walter Mendes, físico — e posteriormente técnico da CNEN — que identificou o acidente em 1987. Ele explicou como e por que o estádio Olímpico, hoje reformado, como mostra a foto acima, fez parte disso tudo.

"Me chamaram pra identificar se o material poderia ser radioativo ou não. Eu identifiquei e falei com o governador do estado de Goiás e com a CNEN. Começamos a isolar a área e tirar as pessoas contaminadas. Nisso, foi escolhido o estádio Olímpico. A defesa civil armou barracas e essas pessoas ficaram ali e no outro dia de manhã foram para o hospital para verificar a situação delas", explicou.

As oito barracas e 26 moradores próximos aos locais do acidente que foram removidos para o gramado criaram na população uma aversão ao local. Não foram poucas as declarações que ouvi durante minhas andanças por Goiânia de que o local estava contaminado. Walter, por outro lado, explica que não e conta o que foi feito para provar isso à população: o bom e velho futebol.

"Se criou uma 'psicorradiofobia', e era perfeitamente natural, você não pode culpar a população porque não tinha informação. Estabeleceu-se um pânico. Criou-se uma celeuma desnecessariamente que estádio estava contaminado. E não estava. Toda a monitoração radiométrica mostrava que não estava. Para comprovar, foi feita uma partida de futebol no estádio entre os técnicos da CNEN na época e convocou-se a mídia para mostrar que não tinha nada."

Divulgação/CNEN

O esquecimento

Eu sei, essa história não tem exatamente um final feliz. Mas o que podemos fazer? Nem tudo na vida é um conto de fadas. No entanto, pior que isso é esquecer, sabe? Nos mais de dez lugares que visitei para contar essa história para vocês, em todos eles eu procurei algo que só encontrei na última visita: uma homenagem às vítimas.

O quadro da Leide das Neves (ao lado) é a única menção. Ele fica no Cara (Centro de Assistência aos Radioacidentados) que conta com médico, enfermeiro, psicólogo e assistente social. As vítimas passam ali ao menos uma vez ao ano para monitoramento.

Além de atender mais de 1300 pessoas divididas em grupos de exposição, o local ainda conta com um centro de memória, onde Suely Barreto, 62, não deixa a história morrer.

"Foram 249 pessoas identificadas na triagem no Olímpico. 120 foram para casa e 129 tiveram que ficar em observação: 79 na Febem, casos mais leves, 30 no albergue, casos de contaminação maior, e 20 no hospital, mais graves. Dos 20, 14 foram para o Rio de Janeiro, em uma área da Marinha, para receberem cuidados especiais. E se você errar algum número eu vou puxar sua orelha!", me ameaçou a Suely, em tom de brincadeira.

Sua xará, Sueli Lina, presidente da associação das vítimas, contou que havia um projeto de memorial que seria erguido no terreno da rua 26. Segundo ela, a maquete era "muito bonita", mas a pandemia acabou paralisando tudo. Luiza Odete, tia de Leide das Neves, reconhece a importância da história não cair no esquecimento.

"Foi terrível, muito triste. Eu me emociono em falar no assunto. Eu falo porque sei que não pode cair no esquecimento. Mas eu sofri muito com a ausência dos meus filhos. Na época, eu fiquei lá no Rio e meus filhos aqui em mão de pessoas estranhas. Chegou momento de eu pensar que eu ia morrer, não ver mais meus filhos."

Para lamentar e homenagear sempre é necessário não esquecer jamais.

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