Todo-poderoso

Eurico Miranda assistiu à glória e à queda do Vasco, e se manteve no controle até sua morte

Diego Salgado, Pedro Ivo Almeida e Rodrigo Mattos Do UOL, em São Paulo e no Rio de Janeiro Daniel Marenco/Fohapress

O cartola que brigou com Pablo Escobar

Eurico Miranda morreu ontem e deixou uma vasta história de ligação com o Vasco, com o futebol brasileiro e até mundial. Se alguém acompanhava o esporte, tinha uma opinião sobre esse personagem de personalidade marcante. Uns amavam, outros adoravam odiá-lo. Sempre polêmico, o todo-poderoso colecionou brigas e desafetos. Sempre apoiado na missão de defender seu clube, não tinha limites - brigou com CBF, Conmebol, rivais e imprensa.

O cartola cruzmaltino mediu forças até mesmo com Pablo Escobar. A figura do homem de charuto na mão com um olhar de desdém não temia nem o poderoso traficante colombiano.

Em 1990, o Atlético Nacional (COL) era o atual campeão da Copa Libertadores e encarava o Vasco em Medellín. Era o jogo de volta das quartas de final do torneio continental. "Já no aquecimento em campo deu para sentir a pressão, com policiais com cachorros ao nosso lado", lembra o ex-lateral Luiz Carlos Winck, que jogou naquela noite. "Não houve um lance capital com influência do árbitro, mas ele estava alterado, vinha para cima da gente sempre. Dava para perceber a pressão pelo resultado favorável ao Nacional", completou, recordando a derrota por 2 a 0.

O lateral pode ter sido intimidado. Eurico, não. Já polêmico, o cartola pressionou a Conmebol e disse que Escobar teria comprado a partida. A entidade, então, foi ouvir o árbitro uruguaio Daniel Cordelino. O juiz admitiu ter sofrido as já conhecidas ameaças do clube de Pablo Escobar antes de a bola rolar. A partida foi remarcada.

O dirigente brasileiro com ar mafioso começava a mostrar seu poder de confronto fora do país. O Vasco não venceu. Acabou eliminado em nova derrota, agora por 1 a 0. Mas o episódio mostrava o tamanho das brigas que o cartola estava disposto a comprar. E era prova pesada de que não seria fácil superá-lo nos bastidores.

Daniel Marenco/Fohapress
Daniel Marenco/Fohapress

"Eu sou o Vasco"

Brigar com o narcotraficante mais famoso da história não era suficiente para Eurico Miranda. Ele queria mandar. No futebol brasileiro e no mundial. A ideia era ter a mesma influência que tinha dentro de seu clube. "Eu sou o Vasco", respondia quando questionado por que raramente era visto com uma camisa cruzmaltina. Sua imagem se confundia com a do clube. Foi assim durante muitos anos.

Após um início tímido no final da década de 1960, e uma caminhada dividida entre basquete e futebol nos anos 70, Eurico se estabeleceu como o principal cartola de São Januário na segunda metade dos anos 80. Forte politicamente no cenário carioca, chegou ainda à CBF e foi diretor de seleções no início da gestão Ricardo Teixeira.

Ainda que tivesse voz importante no cenário nacional a partir de então, era dentro do Vasco que mostrava poder. Fosse como presidente, vice-presidente de futebol ou presidente do Conselho de Beneméritos, nada era decidido em São Januário sem a benção do cartola. Entre 1997 e 2001, durante as grandes conquistas, até mesmo a figura do presidente Antônio Soares Calçada ficava em segundo plano. Eurico Miranda era praticamente o Vasco.

Mesmo sem os resultados de outrora no novo século, a influência não diminuía. Com eleições indiretas, a pressão de Eurico no Conselho Deliberativo praticamente definia os rumos do clube. Foi assim na última eleição, quando o vice eleito Alexandre Campello rompeu com o então cabeça da chapa vencedora, Júlio Brant, e, apoiado pelo "Doutor", como sempre foi chamado, tomou o poder no início de 2018.

O modelo centralizador era considerado ultrapassado pelos críticos que pediam modernidade ao futebol, mas encontrava eco em gestões de personalidades fortes como a dele. Fábio Koff no Grêmio, Andrés Sanchez no Corinthians ou Mario Celso Petraglia no Athletico eram assim. Na cadeira de mandatário ou não, todos exercem (ou exerciam) influência semelhantes em seus clubes.

O que dava poder a Eurico?

Para entender essa aura de poder que envolvia Eurico é preciso voltar à década de 80, quando ele começou a ampliar sua atuação. Cartola ascendente, tornou-se mais poderoso ao assumir cargo de diretor na CBF na gestão do presidente Ricardo Teixeira, que foi eleito em 1989. A partir daí, estando dentro ou fora da confederação, foi decisivo em viradas de mesa para salvar clubes grandes de rebaixamento.

Sua influência no cenário nacional começa a crescer já em 1987, quando ele trai um acordo feito pelo Clube dos 13 de rejeitar imposições da CBF à Copa União. Em reunião na confederação, Eurico faz um acordo para aceitar o cruzamento de módulos (Verde e Amarelo) que era pedido pela entidade, mas recusado pelos outros clubes.

Quando se torna dirigente da CBF, ele protagoniza outra virada de mesa para salvar o Grêmio da Segunda Divisão. O dirigente gremista Fábio Koff foi à CBF para pedir a Eurico o aumento do número de times que ascenderia à Primeira Divisão no ano seguinte, em 1992. Assim, o time gaúcho voltou à elite.

Mais à frente, no início da década passada, Eurico foi um dos articuladores da Copa João Havelange, feita para tentar excluir o Gama e incluir o Fluminense na Série A. "Trouxe o Fluminense direito da 3ª divisão para a 1ª ", afirmou o dirigente vascaíno.

Também houve peso do poder de Eurico para que a final do torneio fosse realizada novamente após a queda de uma grade no jogo com o São Caetano. Ele era o principal aliado de Mustafá Contursi, que presidia interinamente o Clube dos 13 na ocasião. Apesar disso, o cartola não conseguiu evitar os dois rebaixamentos posteriores do Vasco pois já não gozava de prestígio na CBF, nem havia mais clima para viradas de mesa.

Folhapress Folhapress

O rei da bancada da bola

Em Brasília, na virada do século, mais ascensão e protagonismo. Durante seus oito anos no Congresso, Eurico Miranda atuou como o maior articulador dos interesses de clubes de futebol, do Vasco e de si mesmo. Em uma frase emblemática, afirmou que não era deputado para tratar de interesses da população, e sim questões do seu clube, alegando que era para isso que tinha sido eleito.

Foi ele o principal responsável por melar a CPI da CBF/Nike, cujo relatório poderia apontar indiciamentos contra dirigentes da confederação brasileira e de clubes. Na reunião final, o presidente da CPI, Aldo Rebelo, teve que extinguir a comissão sem votar uma conclusão final por conta da pressão da bancada.

Revoltado, Eurico, que queria a votação de um relatório que absolvesse todos os cartolas, assumiu a presidência na marra e executou uma aprovação simbólica do documento defendido por ele por seus colegas de bancada da bola. "Isso é guerrilha, eu conheço a esquerda há muito tempo", afirmou na ocasião.

Além disso, o ex-presidente vascaíno teve também atuação decisiva na Lei Pelé, legislação que acabou com o passe. Contrário ao final de tal vínculo, Eurico acabou aceitando a medida, mas conseguiu artigos na lei que beneficiavam os clubes e reduziam os direitos dos jogadores.

Patrícia Santos/Folhapress

Mudança de patamar

Em campo, claro, a trajetória do Vasco da Gama pode ser dividida entre antes e depois de Eurico. E esse antes vem dos anos 60, com direito a manchete no jornal. Aos 25 anos, o dirigente deu um jeito de adiar uma reunião de cassação do presidente apoiado por ele. A votação foi cancelada por uma queda de luz na sede náutica do Vasco. O jornal O Globo do dia seguinte mostrou que o próprio Eurico desligara o quadro de energia.

Onze anos depois do episódio conhecido como "A mão de Eurico", a habilidade do dirigente começou a ficar evidente na contratação de Roberto Dinamite. Após uma passagem relâmpago pelo Barcelona, o craque esteve perto do Flamengo, mas retornou ao Vasco. Eurico, então assessor do presidente Antônio Calçada, foi o responsável pela negociação. Nos anos seguintes, Eurico perdeu duas eleições para o próprio Calçada, mas foi convidado para ocupar o cargo de vice de futebol a partir de 1985.

A força política de Eurico, então, tornou-se a marca de uma época vitoriosa, com direito a dois títulos estaduais (1987 e 1988) em decisões contra o Flamengo, além de um brasileiro, em 1989, encerrando um jejum de 15 anos. O craque da conquista nacional, Bebeto, foi contratado meses antes, em novo nó orquestrado por Eurico, que o tirou do Flamengo após semanas de trabalho. À época, convidado por Ricardo Teixeira, recém-empossado na presidência da CBF, Eurico pediu licença do posto de diretor de futebol da entidade para se dedicar ao Vasco, a fim de evitar prejuízos ao clube,

De volta ao protagonismo nacional, o Vasco de Eurico mudou de patamar. Ainda com dirigente na vice-presidência de Calçada, o time conseguiu um inédito tricampeonato do Carioca (1992, 1993 e 1994). A década de 1990 ainda reservaria as taças do Brasileirão de 1997, a Libertadores e mais um Estadual no ano do centenário, além da Copa Mercosul, em 2000, cujo supertime fora montado novamente sob a atuação do vice-presidente, líder nas contratações de Juninho Paulista, Romário e Euller.

Era o ápice de um projeto imenso pensado pelo cartola para o clube que amava.

Daniel Marenco/Fohapress Daniel Marenco/Fohapress

Um projeto megalomaníaco

Mike Masotti/Reuters

Parceria com NationsBank

No começo de 1998, ano do centenário, a diretoria comandada por Eurico fechou o "maior contrato do futebol brasileiro" (nas palavras do clube) com o Nations Bank. Estimava-se que o faturamento saltaria de R$ 15 milhões para R$ 150 milhões. O clube ainda recebeu 30 milhões de dólares na assinatura - mas o cartola nunca especificou onde aplicou tal investimento. Em troca, o grupo exploraria a marca vascaína por dez anos e ficaria com até 50% das receitas. Três anos depois, o Vasco rompeu o contrato por falta de repasse.

Carlos Gregório Jr/Vasco.com.br

Reforma de São Januário

Em 2007, já na reta final do segundo mandato, Eurico prometeu ampliar São Januário: de 25 mil para 40 mil pessoas - sonho antigo alimentado desde o fim da década de 90. Até um contrato foi assinado, mas a saída do mandatário e a chegada de Roberto Dinamite esfriou o plano. De volta à presidência em 2014, Eurico voltou a prometer ampliações. "Isto, sem dúvida, vai acontecer", afirmou em campanha. A casa vascaína nunca chegou a ter obras, apenas instalações menores receberam melhorias, como o ginásio.

Divulgação/CBB

Projeto Olímpico de 2000

No Pan-Americano de 1999, em Winnipeg, Eurico Miranda celebrou o bom desempenho dos atletas vascaínos nas competições. Seu clube, se fosse um país, estaria à frente da Venezuela. Naquele ano, o Vasco investiu pesado no esporte olímpico. Nas Olimpíadas de Sydney-2000, os vascaínos eram maioria na delegação brasileira, com mais de 80 representantes - 19 ganharam medalhas. Depois dos Jogos, o projeto ruiu, atletas ficaram sem receber e alguns, até hoje, processam o clube.

Paulo Sergio/Agif/Folha Imagem

Time cheio de estrelas

Campeão da Libertadores no ano do centenário e derrotado pelo Real Madrid em uma final bastante disputada em Tóquio, no fim de 1998, o Vasco conseguiu tirar Romário do Flamengo em novembro de 1999 - Eurico prometeu privilégios com horários e treinos. Foi a primeira grande contratação da equipe que brilhou em 2000, que ainda contou com Juninho Paulista e Euller. O meia foi emprestado pelo Atlético de Madri. O atacante deixou o Palmeiras após acordo de Eurico com Mustafá Contursi.

Sérgio Lima/Folhapress Sérgio Lima/Folhapress

A conta chegou

Como nenhum gasto impensado fica impune no futebol, o dinheiro acabou. E com direito a escândalos. As gestões de Eurico Miranda foram marcadas por denúncias de desvio de recursos do clube para vantagem pessoal. Finalizada em 2001, a CPI do Futebol apontou em seu relatório final que ele realizou "verdadeira pilhagem dos cofres do Vasco da Gama em benefício pessoal".

Para chegar a essa conclusão, a investigação da comissão parlamentar quebrou sigilo bancário do clube e do ex-funcionário vascaíno Aremithas Lima. Ao final, constatou que recursos alvinegros eram desviados para uma conta desse ex-empregado, que pagava não só despesas do clube, mas também pessoais de Eurico Miranda.

Segundo o relatório, as transferências bancárias na década de 1990 mostraram que foram pagas com dinheiro do Vasco:

  • R$ 800 mil da campanha do dirigente a deputado em 1998;
  • um carro para uso de Eurico;
  • contas como televisão a cabo e cartão de crédito do dirigente e de seus familiares.

Há ainda supostas irregularidades em depósitos de dinheiro do vascaíno em contas no Caribe sem a devida explicação.

No começo dos anos 2000, o Vasco passou a conviver com dívidas e problemas de caixa, impulsionados também pelas apostas no esporte olímpico, a montagem de times caros e a parceria desfeita com o Nations Bank.

Eurico também chegou a ser condenado por crimes tributários na Justiça Federal, mas conseguiu reverter as punições em tribunais superiores. Mais recentemente, o grupo de Eurico foi acusado de executar manobras para fraudar as eleições presidenciais no Vasco, com a inscrição de eleitores que não pagaram pelo título do clube.

Ricardo Borges/Folhapress Ricardo Borges/Folhapress

Herança maldita: os rebaixamentos

A conquista da Copa João Havelange, ocorrida já em janeiro de 2001 devido à queda do alambrado de São Januário, deu início a uma era de vacas magras no Vasco. Nos últimos 18 anos, o time vascaíno conquistou apenas três títulos estaduais (2003, 2015 e 2016), além da Copa do Brasil 2011. A taça do Brasileirão, por sua vez, nunca mais foi erguida.

Coincidentemente, Eurico Miranda foi eleito presidente do Vasco pela primeira vez dois dias antes da vitória sobre o São Caetano na final da Copa João Havelange. Endividado, o clube viu a crise respingar no time de futebol, cada vez mais enfraquecido. Para se ter uma ideia, a melhor campanha vascaína no Brasileirão dos anos seguintes foi um sexto lugar, em 2006, ano em que a equipe também chegou à decisão da Copa do Brasil.

Em 2008, porém, a conta chegou, já sob o comando de Roberto Dinamite, que assumiu o Vasco em junho daquele ano, no meio da campanha do rebaixamento. A primeira queda da história vascaína foi o primeiro capítulo de uma fase instável jamais vista. Em 2013, a equipe voltou a ser rebaixada. Depois de voltar à elite, outro rebaixamento veio à tona, o primeiro com Eurico à frente do clube.

Daniel Marenco/Folhapress

O respeito voltou?

O segundo rebaixamento do Vasco no Campeonato Brasileiro, em 2014, serviu de escada para o retorno de Eurico Miranda à presidência. Quase um ano depois, Eurico derrotou Julio Brant com sobras e prometeu que dias melhores viriam. "A partir do momento em que eu assumir, o Vasco voltará a ser respeitado", disse à época.

O ex-técnico Antônio Lopes, por exemplo, acredita que o Vasco sentirá muito a ausência. "Eu acho que não tem ninguém como Eurico nem no Vasco e nem fora. Vai ser muito difícil encontrar um dirigente e surgir alguém como o Eurico, principalmente no Vasco", afirmou.

O discurso de "respeito ao Vasco" ganhou ainda mais força após a conquista do Campeonato Carioca de 2015, diante do Botafogo. Meses depois, porém, o time amargou o terceiro rebaixamento no Brasileirão, em campanha marcada por uma declaração de Eurico, que prometera "mudar para a Sibéria" no caso de nova queda. O Vasco não evitou o novo vexame e, nem mesmo com mais um título estadual em 2016, evitou a mancha no vasto currículo do mandatário.

A promessa de devolver o respeito ao Vasco, assim, não se realizou.

O "todo-poderoso" morreu choroso e emotivo

Provocações, brigas públicas, frases de efeito e um olhar de desdém para intimidar quem tentasse o questionar. A figura do ex-presidente do Vasco na memória daqueles que o acompanhavam pelas lentes de TV e microfones dificilmente irá remeter a algo simpático. Mas o Eurico Miranda dos últimos meses parecia ter se descolado da imagem de mais de sete décadas.

O cartola polêmico e turrão de outros tempos deu lugar a um personagem abatido e emocionado. Chorava a cada conversa. Por conta do tratamento de radiocirurgia - opção que evita cortes, anestesias e internações - para combater os tumores no cérebro, Eurico estava sensível. "O tratamento pega muito esse lado emocional mesmo", admitiu o próprio em um de seus últimos contatos com o UOL.

Eurico deixava a lágrima escorrer a cada pequena limitação do dia a dia, física ou intelectual. Se dividir entre a cadeira de rodas e uma cama abalava o sempre dinâmico dirigente. A dificuldade no raciocínio durante as partidas de tranca também entristecia o sempre rápido e esperto jogador em uma de suas últimas distrações.

Nas últimas semanas, a tristeza era por não conseguir mais ir a São Januário, atividade que teve que abrir mão no início de janeiro. Já não era mais possível sair de casa. Desanimado, chegou até a dispensar os enfermeiros que o acompanhavam - o último gesto de poder de quem sempre todo-poderoso. Como quem parecia sentir o fim próximo, restou ao agora sensível Eurico Miranda a família e as lágrimas.

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