O jóquei

A história de Eurico Rosa, brasileiro que superou abusos do pai para vencer diante da rainha Elizabeth

Bernardo Gentile Do UOL, no Rio de Janeiro Dave Landry

Eurico Rosa faturou cerca de R$ 630 milhões em premiações ao longo da carreira - iniciada no Brasil e consolidada no exterior. Nem todo o sucesso, no entanto, fazia o jóquei se sentir feliz, em paz. Para entender melhor a história é preciso voltar à década de 70 na pequena cidade de Buri, no interior de São Paulo.

A vida na roça tinha tudo para ser um sonho para o jovem Eurico. Criado em uma fazenda, ele podia conviver diariamente com os cavalos, sua maior paixão. No entanto, desde cedo aprendeu na marra que não poderia contar com uma das principais fontes de segurança de qualquer indivíduo: o pai.

Vítima de uma relação abusiva, Eurico passou por traumas impactantes e que só foram plenamente compreendidos anos depois. O pai, José Maria, o levava como testemunha e estuprava mulheres na sua frente. Com apenas três anos, ele não tinha pleno entendimento do que ocorria diante de seus olhos de criança.

Além da barbaridade, Eurico sofreu tortura por vários anos. O poder de influência do pai era tão grande que Eurico chegou a questionar sua sexualidade por décadas.

Eurico conviveu com seus demônios internos por muito tempo. A angústia era tão forte que o suicídio surgiu como solução. Foram algumas as tentativas de tirar a própria vida - em todas as vezes o livramento aconteceu no último segundo.

Montar em um cavalo e disputar com adversários para ver quem era o mais veloz mudou a vida do jóquei. O que Eurico demorou ainda mais para entender é que havia uma outra disputa paralela e que não envolvia ninguém mais além de si próprio: a cavalgada pela liberdade.

Dave Landry

Roça, cavalos e superação

Criado por uma família de evangélicos rigorosos, Eurico Rosa sequer teve contato com televisão, acessório proibido. Uma visita a um tio, no entanto, apresentou sua primeira grande paixão: a corrida de cavalos. "Me apaixonei na mesma hora. Tinha cinco anos e sabia que era aquilo que queria fazer da minha vida."

A primeira oportunidade de realizar o sonho veio anos depois, com uma oferta inesperada. "Um rapaz casado com uma prima distante apareceu e perguntou quem estaria disposto a montar um cavalo em uma corrida nos dias seguintes. Eu nem esperei ele terminar e disse que iria."

No dia seguinte, se apresentou na fazenda combinada e deu início aos primeiros treinamentos para virar um jóquei. O talento natural logo chamou atenção e ele foi convidado pelo renomado técnico Zeli Medeiros para ir a Itapetininga, cidade a 60 quilômetros de onde morava. Mas a família virou um obstáculo inicial.

"Eu morava com a minha avó. Eu falei que estava indo embora realizar meu sonho, e ela disse que não, que [corrida de cavalo] era parte do demônio. Arrisquei com minha mãe e foi pior ainda. Ela se desesperou e disse que iria me matar, mas eu não ia desistir", lembra.

O treinador entrou no circuito e finalmente convenceu a família. Eurico foi para Itapetininga para trabalhar durante o dia, treinar pela tarde e estudar de noite. Uma rotina para lá de cansativa, mas que fazia seu olho brilhar pela primeira vez na vida.

Vieram as primeiras corridas, primeiras vitórias e Eurico logo passou a liderar o ranking entre os aprendizes. Não demorou a se profissionalizar e, claro, voltar a se destacar. Novamente se colocou no topo da lista dos melhores jóqueis do Brasil. Desde o início percebeu que para vencer na vida teria que superar dificuldades.

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Pai abusivo

"Isso aconteceu na minha vida, cara. Eu carreguei muita culpa, muita vergonha dentro de mim por muito tempo. Tudo começou a mudar quando tive meu segundo filho, uma menina. Estava dando banho nela, um ser tão frágil, e aquilo foi um gatilho. Comecei a chorar copiosamente. 'Pô, não está certo o que o meu pai fez comigo', pensava enquanto chorava e lembrava de tudo.

Infelizmente ele abusou de uma menina na minha frente. Eu tinha três anos, e foi naquele momento que comecei a cair na real porque antes disso eu queria mentir para mim mesmo. A gente fica se enganando, e eu tinha uma vontade muito louca de ser aprovado pelo meu pai. Mas a partir daquele momento eu finalmente entendi e procurei ajuda.

Falei com minha psicóloga e cortei relações com meu pai. Já são seis anos que não falo com ele e foi a melhor decisão. Nossa relação sempre foi artificial: era eu tentando ajudar ele financeiramente em busca de aprovação. Ajudei muito.

Além de estuprar uma mulher na minha frente, meu pai também me criou outros problemas que ficaram enraizados em mim desde muito novo. Eu ajudava minha mãe na cozinha e ele me chamava de 'mulherzinha'. 'Na verdade você gosta é disso [e segurava o próprio pênis com as mãos], você quer dar e não sabe ofertar'. Foram vários anos assim e tudo isso fez com que eu tivesse dúvidas da minha identidade sexual.

Carreguei isso comigo por anos. Nunca tive relação homossexual, mas fiquei viciado em sexo. Porque eu tinha que provar para mim mesmo que era homem. Me relacionava com várias mulheres, mas às vezes tinha dúvida se não era gay. Eu resolvi conversar sobre o assunto com psicólogo.

Meu pai me feriu muito, mas não tenho mágoa. Porque tudo o que ele fez comigo me fortaleceu muito. Quando conta essa história peço para que não tenham pena de mim porque foi tudo isso que me deu força para vencer e virar exemplo, de escrever um livro e poder ajudar outras pessoas em situação parecida. Busquem ajuda, essa é a lição. Você não precisa passar por tudo isso sozinho".

Conversa com a morte

Abrir os olhos e aceitar a verdade sobre seu pai foi um processo demorado e que quase custou a própria vida. Atormentado pelos demônios criados pela figura paterna, Eurico chegou a decidir que o suicídio era o único caminho. Em pelo menos duas oportunidades ele planejou e ficou muito próximo de alcançar o objetivo.

"O suicídio sempre estava na minha cabeça. Na primeira vez eu tinha 18 anos e comprei uma arma. De noite eu quase... [emocionado] quase tirei a minha vida. Cheguei a colocar ela apontada para minha cabeça e o dedo no gatilho. No dia seguinte vendi a arma, mas os pensamentos continuaram por muitos anos."

Prova disso é que com 39 anos novamente Eurico quase tirou sua vida. "Em 2015 eu passei férias em Camboriú (SC) e estava dirigindo sozinho em uma serra. Aí nesse momento... [emocionado] quase que cometi o suicídio. Ia jogar meu carro numa ribanceira e veio a foto do meu filho na minha cabeça, aí eu parei o carro, comecei a tremer: 'meu Deus, o que que eu estou fazendo comigo mesmo?'."

Buscar ajuda foi fundamental para a recuperação. Com especialistas, encarou de frente as feridas mal cicatrizadas e chegou à conclusão que ele nada mais era que a principal vítima de toda história, mesmo que sua mente sugerisse o contrário.

Não conseguia controlar o vício do sexo. Porque eu tinha que provar, eu tinha que sair com mulher, pra provar pra mim mesmo que eu era homem, entendeu? Eu não conseguia largar desse vício. Hoje falo com a maior naturalidade, nem tenho vergonha. Quero motivar as pessoas, pois com certeza deve ter muitos homens que sofrem também. E aí não tem que ter vergonha, tem que procurar ajuda.

Eurico Rosa, jóquei aposentado, sobre momento de superação pessoal

Divulgação

Tchau, Brasil. Oi, mundão!

A carreira de Eurico Rosa foi meteórica. Considerado um dos melhores aprendizes, manteve a pegada após se profissionalizar. Ele lutava sempre pelo topo do ranking no Brasil, mas houve um episódio que o deixou abalado e motivou sua saída do país. O jóquei foi acusado de trapaça pelas autoridades e levou uma suspensão.

"Eu paguei pela minha honestidade. Eu era muito leve, então eu me pesava com uma bota pesada e fazia o peso antes da corrida. Aí quando chegou no partidor, eu tinha esquecido de trocar a bota e avisei. Não conseguimos trocar, e meu cavalo acabou indo com um quilo a mais para a corrida. Eu era favorito e perdi. Eles pegaram e me suspenderam um mês", disse.

"Estava liderando a estatística nessa época e acabei perdendo a estatística, perdendo o campeonato. Se eu ficasse quieto não ia acontecer nada, mas eu na honestidade fui lá falar e eles acharam que eu estava fazendo tramoia", lamenta.

Foi nesse momento de revolta que pintou a oportunidade de seguir carreira em Macau, na China, onde ficou por cinco anos. Mais uma vez disputou a ponta do ranking. As vitórias proporcionavam boa vida, mas o local não parecia tão adequado.

"Eu tinha uma vida boa, mas uma vida atormentada mentalmente. Por quê? Porque Macau é um lugar de jogo, muitos cassinos. Eu não jogava nos cassinos, mas eu jogava muitos nos cavalos na época, e jóquei é proibido jogar, tá entendendo. Era um lugar de muita pressão, você montava com muita pressão porque jogava pesado. Eu jogava pesado, bebia e já tinha meu problema com sexo. Eu não consegui fazer meu melhor porque mentalmente estava perturbado".

Em meio a novos velhos problemas, Eurico novamente quis recomeçar. A ideia era ir para Nova York, mas uma viagem de férias para o Canadá mudou o planejamento. "Quando eu vi o Jockey Club, quando eu vi a pista de grama de Wood Barn, é uma das melhores do mundo. Me encantei, era o lugar que queria viver. Voltei para Macau e a primeira coisa que fiz foi procurar meu advogado para mexer com meus papéis e providenciar minha ida para o Canadá."

O terceiro recomeço na carreira não foi nada fácil. Mesmo prestigiado em outros lugares, Eurico teve que retomar os trabalhos como se fosse um iniciante, montando em cavalos piores em relação a adversários bem menos experientes.

Eu focava em vencer e não que era tratado como estrela no Brasil e em Macau, entendeu? Isso só me atrapalharia. E consegui. Só para você ter uma ideia, o recorde aqui foi quebrado em 1993, era um recorde de 221 vitórias, desde 1993. Em 2017, eu tive 237 vitórias.

Eurico Rosa, sobre o recomeço de carreira no Canadá

David J Landry

"Mão tranquilizadora": dom de controlar os temperamentais

Desde os primeiros contatos com os cavalos, Eurico percebeu um dom natural de controlar os mais temperamentais. Ainda como aprendiz, aceitou o desafio de treinar com um animal que a maioria dos jóqueis não indicava.

"Eu gostava de pegar os cavalos que as pessoas não queriam porque empinavam muito ou eram muito agitados. Aí eu pegava eles e não acontecia nada, eu o dominava muito fácil. Eu conseguia relaxar eles", lembra.

Sucesso entre os aprendizes, Eurico não engrenou logo de cara nos profissionais. Por ironia do destino isso só aconteceu quando ele conseguiu domar uma fera. "Frans Posto", um cavalo completamente temperamental. No entanto, depois que houve uma sinergia entre a dupla tudo mudou.

"Eu me dei bem com esse cavalo, comecei a ganhar Grande Prêmio com ele. Aí minha vida mudou, cara, depois de montar esse cavalo. Nunca mais parei de ganhar, foram muitas corridas como profissional, comecei a ganhar muito no Brasil", lembra.

No Canadá, inclusive, ele ganhou o apelido de "mão tranquilizadora". "Quando cheguei aqui, aqui eles têm essa mania de dar tranquilizante pela manhã se o cavalo estivesse muito nervoso. Eu não gostava disso e proibi que fizessem isso nos que eu montava. Eu queria ler eles, saber o quanto eram bom e com tranquilizante você não consegue. E foi assim que ganhei esse apelido."

John Stillwell/PA Images via Getty Images

Milhões em premiações e encontro com uma rainha

O sonho de virar um jóquei tirou Eurico de casa muito cedo. Fora de casa, muitas vezes teve que passar fome até que fosse oferecida a próxima refeição. Após uma carreira vitoriosa, ele vive o outro lado da moeda. Com mais de 2.500 vitórias em corridas internacionais, ele rendeu US$ 120 milhões (cerca de R$ 630 milhões) em premiações para os donos dos cavalos.

"Os jóqueis ganham 10% da premiação do proprietário. Minha vida mudou muito. Quantas vezes, eu não estava viajando no avião privado e pensava que a gente já passou fome, às vezes, né. Tudo graças ao amor que sinto pelos cavalos, meus companheiros", relembra.

Mais que dinheiro, Eurico também viveu situações especiais por conta do turfe. Uma delas foi conhecer e ser premiado pela Rainha Elizabeth, monarca do Reino Unido. "Um garotinho lá de Buri, na frente da rainha, é muito emocionante."

Após se arrumar, Eurico recebeu as instruções para finalmente encontrar a Rainha. "Cortam tudo, não tem sinal de celular, nada, aí você vê o poder da rainha. Tem um protocolo, você só estende a mão se ela estender para você antes. Eu ficava só de olho na mão da rainha, a hora que ela estendeu a mão pra mim, eu segurei a mão da rainha, lógico, sorri pra ela, foi emocionante demais", completou.

Novo casamento e vida no mato

Após identificar o problema e procurar ajuda, Eurico finalmente conseguiu alcançar a paz interior. O primeiro casamento sofreu com os danos colaterais da abusiva relação com o pai e chegou ao fim. Foi a oportunidade para o jóquei 'resetar' sua vida e começar uma nova história.

Evidentemente que o romance teve início com cavalos. "Em 2012, um dos cavalos que trabalhava se machucou e os donos iam sacrificá-lo. Ele só teria 50% de chance de correr novamente, e o dono não queria mais. Pô, eu gostava muito dele. Cheguei e pedi que me dessem, que tentaria salvar. Pedi para a associação que cuida de cavalos aposentados e eles arrumaram uma pessoa, que fez a cirurgia e deu tudo certo. Eu não tive contato, só paguei pelo serviço."

Após três anos, em 2015, Eurico estava em uma festa e logo se interessou por uma mulher. As conversas se iniciaram até que ela fez uma revelação. "Ela falou assim: 'você não me conhece, mas eu sei quem é você'. Fiquei meio intrigado e ela me disse que foi ela quem fez a cirurgia no meu cavalo. Ela me mostrou a foto e eu tinha a mesma imagem, que tinha sido enviada pela associação. Hoje eu estou casado há seis anos, ela se chama Orlaith, uma irlandesa cirurgiã veterinária."

Juntos, tiveram duas filhas: Amélia e Isabel. O primogênito, Willian, mora com a primeira esposa, em Toronto. Eurico está por perto, a cerca de 30 minutos de carro, mas prefere não viver na cidade grande. "Eu gosto mais do mato", diz o jóquei aposentado, hoje com 45 anos.

David J Landry

Coach: "minha missão é ajudar"

A idade chegou, e as corridas no turfe ficaram no passado. Antes mesmo de se retirar das pistas de corrida, Eurico descobriu uma outra vocação: ajudar pessoas. Ele é coach de atletas e executivos. Na área desde 2017, hoje ele se dedica exclusivamente a essa nova carreira.

"Eu só me aposentei em 2019, mas nos últimos dois anos de carreira já conciliava as duas coisas. Eu gosto do que faço, eu trabalho porque eu adoro as pessoas. Eu não consigo e nem nunca consegui trabalhar só por dinheiro. Eu posso te falar que estou muito bem de grana, o propósito é outro", disse.

"A minha missão é ajudar as pessoas. Porque eu sei o que é andar numa rua e a pior pessoa que eu podia estar andando era comigo mesmo. Eu não gostava da minha própria companhia, e isso não é legal. É muito gratificante ajudar as pessoas a conquistar os sonhos delas também", completou.

Divulgação

"Cavalgando pela Liberdade"

Co-escrito pelo jornalista Bruce McGougall, "Cavalgando pela Liberdade" é a caixa preta de Eurico Rosa da Silva, considerado um dos maiores jóqueis brasileiros de todos os tempos. após resolver seus demônios internos e se reinventar com a aposentadoria, ele mantém residência no Canadá ao lado da esposa e filhos.

O atleta lançou a sua biografia no exterior no início do ano. E, no dia 30 de abril, ele chegou para contar a sua história de superação no país machista e patriarcal que o criou.

"A ideia do livro surgiu quando eu percebi o trauma que tinha dentro de mim. Compartilhei a história com meu irmão e ele tinha sofrido a mesma coisa. Só de compartilhar, ele disse que tinha feito um bem incrível para ele, que viva com aquilo em segredo também. Foi por isso. Decidi escrever o livro para que ele chegue a outras pessoas que passam por situação parecida e saibam que não estão sozinhas", disse.

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