Reconstruindo Everaldo

A jornada para recontar a vida e a obra de um craque brasileiro esquecido no tempo e nas glórias

Bruno Grossi e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo Peter Robinson/Getty Images

Para definir Everaldo, os rótulos não funcionam. Não dá para se referir a ele como um dos craques do tricampeonato mundial conquistado no México, em 1970, pela seleção brasileira - embora o fosse. Não dá para usar "ídolo do Grêmio" e achar suficiente para identificá-lo.

Hoje, poucos vão ligar o nome à pessoa. As definições sobre um dos maiores laterais da história do Brasil acabaram se perdendo entre tragédias e lendas. Talvez porque Everaldo tenha se transformado em memória muito cedo: ele tinha 30 anos quando um acidente o matou em 27 de outubro de 1974.

Everaldo permanece imortal para quem carrega seu sangue e para quem suou ou chorou ao seu lado. E reconstruir sua jornada é desses deveres que o jornalismo tem com a história. Por isso, vamos reviver juntos os feitos de quem foi um dos craques da Copa do Mundo de 1970 e até hoje é lembrado na bandeira tricolor, que ganhou a estrela dourada por causa do jogador.

Quem foi Everaldo?

Everaldo Marques da Silva nasceu em 11 de setembro de 1944 em Porto Alegre (RS). Viveu o Grêmio, das categorias de base ao elenco profissional, dos 13 aos 30 anos, com exceção a um breve empréstimo ao Juventude. Defendeu a seleção brasileira entre 1967 e 1972 e foi titular no histórico time que venceu a Copa do Mundo de 1970. Pelo Grêmio, participou das campanhas do tricampeonato gaúcho de 1966 a 1968. Sua trajetória vitoriosa no futebol foi interrompida aos 30 anos de idade, em 27 de outubro de 1974, após um grave acidente automobilístico.

Por que lembramos tão pouco dele na Copa de 70?

Dificilmente Everaldo estará entre os primeiros citados por alguém que tenta enumerar os craques responsáveis por fazer a seleção brasileira ganhar a Copa do Mundo de 1970, no México, e se tornar a dona da taça Jules Rimet para sempre. O olimpo do esquadrão comandado por Mario Jorge Lobo Zagallo pertencia a Pelé, Rivellino, Gerson, Tostão e Jairzinho. Depois, lembram do capitão Carlos Alberto Torres e seu gol na decisão e da sequência de dribles de Clodoaldo na origem do mesmo lance. Mas e o resto?

"O resto era o resto! Aquela seleção era uma coisa de louco por ter Pelé e companhia. Dos demais, quase ninguém falava e dificilmente alguém da defesa se destacava", relembra Arnaldo, 75, um dos irmãos de Everaldo.

Mas aquele lateral-esquerdo gaúcho, ainda que longe dos holofotes, foi decisivo para que um time com tantos craques do meio para frente pudesse se equilibrar. Na final contra a Itália, por exemplo, anulou o camisa 10 Mario Bertini e ainda iniciou as jogadas dos gols de Gerson e Carlos Alberto Torres ao desarmar os italianos com perfeição.

Ele era um operário que desarmava e se entregava. Tinha uma jogada que ele batizou como 'o bote'. Ele treinava sempre isso no Olímpico: colocava uma camiseta à frente no chão e dava um tipo de carrinho, mas precisava deslocar a camiseta sem levantar a grama [para aprender a roubar a bola]. Era um cumpridor das tarefas do Zagallo. Marcava e passava para quem sabia".

Luiz Fernando, 59 anos, sobrinho de Everaldo

Gerência de Memória/CBF
Seleção de 1970: Everaldo está ao lado de Pelé

Os jogadores convenceram Zagallo a escalá-lo?

O ciclo de preparação da seleção brasileira para a Copa de 70 foi marcado pelos espetáculos sob o comando do técnico João Saldanha, substituído por Zagallo pouco antes do Mundial. E a equipe titular também acabou alterada quando chegou ao México. Zagallo, alertado pelos líderes do elenco sobre as fragilidades defensivas de Marco Antonio, que na época tinha apenas 19 anos e se destacava pelo Fluminense. O Velho Lobo, então, decidiu apostar em Everaldo.

"Nós falamos para o Zagallo que o Everaldo era mais marcador, mas que tinha técnica também. O Marco Antonio não marcava muito. Aí eu, Gerson, Clodoaldo e toda a turma nos reunimos com o Zagallo e falamos. Não para pedir para tirar alguém, mas para dar nossa opinião. O Zagallo aceitou e confiava que todos tinham qualidade, era uma questão de preferência. E ninguém ficou de bico com ninguém. No grupo de 70 não tinha tristeza, nem vaidade", relata Brito, zagueiro titular na conquista do tri e que defendia o Flamengo.

Everaldo era leal ou agressor?

Em julho de 1972, Everaldo recebeu o Prêmio Belford Duarte, destinado para jogadores considerados leais em campo. A honraria era concedida pela Confederação Brasileira de Desportos, a CDB, atual CBF, valorizando o que hoje é chamado de fair play. O problema é que, em 18 de outubro do mesmo ano, Everaldo perdeu a cabeça. O Grêmio vencia o Cruzeiro por 1 a 0 no Olímpico pelo Brasileirão daquela temporada. Até que o árbitro José Faville Neto marcou pênalti discutível de Beto Bacamarte em Palhinha, aos 32 minutos do primeiro tempo. Sem pestanejar, Everaldo desferiu um soco no juiz, virou as costas e rumou para os vestiários.

"Ele não era de bater em ninguém. Mal fazia falta, porque praticamente chegava sempre na frente. Naquele dia, ele deu o soco e já saiu de campo, nem esperou ser expulso. Foi algo que marcou muito, porque ele não era de fazer isso", explica Loivo, 77, ponta esquerda que foi companheiro de Everaldo no Grêmio por sete anos.

Everaldo chegou a renunciar ao prêmio Belfort Duarte e precisou até depor na delegacia, como registraram os jornais da época. A família também se surpreendeu com o episódio, como lembra a filha Denise: "Meu pai era uma pessoa muito calma. Não lembro de um dia ele ter ralhado comigo ou com qualquer pessoa. Ele gostava da paz, não de briga. E por mais absurdo que tenha sido a decisão do juiz, não gosto de saber o que o meu pai fez ali".

Everaldo era um camarada muito idôneo, cumpridor dos seus deveres e das suas obrigações. Essa foi a única falha que ele teve. Andava meio nervoso, com alguns problemas particulares. Mas pode ver que ele se expulsou. Deu o soco e saiu de campo".

Arnaldo Marques da Silva, irmão de Everaldo, sobre o soco

Everaldo tinha ligação com a Ditadura Militar?

Enquanto cumpria suspensão pelo soco no árbitro José Faville Neto e analisava uma proposta do Palmeiras, Everaldo começava a planejar seu futuro longe dos gramados. A política o atraiu, ainda que o Brasil vivesse naquela época seus anos de chumbo com a repressão da Ditadura Militar. Everaldo resolveu se filiar à Aliança Renovadora Nacional, partido conhecido como Arena e responsável por sustentar a governabilidade dos militares desde 1965, um ano após o início do regime. A ideia era se tornar Deputado Estadual pelo Rio Grande do Sul.

Essa aproximação teve início anos antes e foi reforçada após a Copa do Mundo de 1970. O governo, na época, utilizou a imagem da seleção brasileira para pintar um país feliz e próspero e queria estreitar relações com os atletas. Uma das medidas do então presidente Emílio Garrastazu Médici, um dos líderes do Arena, foi criar uma lei para destinar 9% dos prêmios da loteria federal como recompensa aos serviços prestados pelos campeões mundiais.

Ao voltar do México com o tri, Everaldo fez questão de agradecer Médici em entrevista à Rádio Guaíba. Afinal, aquele dinheiro prometido garantiria uma vida melhor para sua família: "Talvez com a Copa do Mundo eu consiga a minha independência financeira, mas eu acho que o que vai me dar a vida mais regular será esse prêmio do presidente [Médici], ou seja, os 9% da loteria federal até a minha morte. E eu acho que até a minha morte tem bastante tempo ainda [para chegar]".

Se ele estivesse conosco ainda neste plano, ele teria uma carreira dentro do futebol ainda ou na política. E pensar nisso nos entristece, porque foi muito prematura a morte dele. Ele deveria ter ficado mais um pouco mais entre a gente, mas são coisas da vida".

Arnaldo Marques da Silva, irmão de Everaldo

Como Everaldo morreu?

Everaldo morreu no dia 27 de outubro de 1974, um domingo. Estava cercado de suas paixões, conquistas e sonhos. Viajava num Dodge Dart, presente de uma concessionária após o tri com a seleção, ao lado de seis familiares: a esposa Cleci, as filhas Denise e Deise, a irmã Romilda e os tios Maria Madalena e Jardelino. Eles voltavam de uma sequência de eventos na cidade de Cachoeira do Sul para Porto Alegre, comícios para divulgar a campanha de deputado estadual e um jogo festivo com o time de veteranos do Grêmio em sua homenagem.

Após longos quilômetros na BR-290, Everaldo encostou o carro e se despediu de Loivo, seu ex-companheiro de Grêmio que também estava na partida e faria uma parada para abastecer. Everaldo seguiu, mas logo seu carro se chocou com um caminhão. Fala-se em imprudência dos dois motoristas, incluindo excesso de velocidade, falta de sinalização e a não obrigatoriedade do uso de cinto de segurança.

Loivo e outros colegas passaram pelo acidente poucos minutos depois e, inclusive, ajudaram a levar a filha Denise ao pronto-socorro. Os tios Jardelino e Madalena também sobreviveram e foram resgatados por uma equipe do jornal Zero Hora. Everaldo e a esposa, Cleci, então com 27 anos, não resistiram aos ferimentos e morreram no hospital no mesmo dia. Menos de 48h depois, a pequena filha Deise, de dois anos, morreu. E passados mais dois dias, a irmã Romilda também faleceu.

Já estava de noite e ele estava cansado. Meu pai também corria e naquela época não era obrigatório o uso de cinto de segurança, nem deixar as crianças atrás. Minha irmã pequena estava no colo da minha mãe no banco da frente. Depois, fiquei sabendo que o caminhão estava na estrada totalmente apagado. Foi uma sequência de erros".

Denise Helena da Silva, filha de Everaldo que sobreviveu ao acidente de carro em 1974

Depois do jantar, parei no posto e avisei que ia abastecer. Ele seguiu. Depois de uns 12km adiante, eu e os guris vimos que o carro dele estava no meio da faixa e que tinha acontecido essa tragédia. A primeira coisa que eu vi foi uma carteira dele no meio do asfalto. Foi terrível. Passamos dias muito difíceis".

Loivo, ex-ponta esquerda do Grêmio e um dos melhores amigos de Everaldo

O Everaldo que quase ninguém conheceu

Se o Everaldo ídolo e vencedor no futebol é pouco lembrado, sua personalidade, suas virtudes e seus defeitos na vida privada ficaram ainda mais escondidos do público. A filha Denise, sobrevivente do acidente de carro que matou Everaldo, Cleci, Romilda e Deise, lembra com carinho do que viveu ao lado do pai:

"Ele era um pai muito presente, que dedicava o tempo livre dele aos filhos, aos irmãos, à minha mãe e aos amigos. Ele proporcionou tudo o que podia para nossa família, para os tios. Levava todo mundo para viagens. E isso ficou como um legado, passando de pai para filho. Até hoje nós somos uma família muito, muito unida.

Quero passar para os meus filhos que meu pai era um homem de um caráter imenso, que se estivesse vivo teria se dedicado a projetos sociais, a ajudar a comunidade. A maioria dos jogadores vem de comunidades carentes e tentam dar um pouco da oportunidade que eles tiveram para os outros. Eles têm esse jeito de dividir.

Lembro também que meu pai era uma pessoa que gostava de estudar, de ler, de ouvir samba e boas músicas, mas também ajudava minha mãe a limpar a casa. Eles se juntavam, colocavam Lupicínio Rodrigues na vitrola enquanto arrumavam tudo. E sempre cultuaram muito as reuniões de família no Natal e na Páscoa. Só tenho recordações maravilhosas sobre meu pai.

Meu sonho é que todos os jogadores tivessem um pouquinho dessa essência dele, sem perder as raízes. Sempre vou lembrar dele como o ótimo jogador que foi, mas ainda mais pela pessoa, como ser humano que era. Essa é a herança que fica quando a gente se vai, não os bens materiais. O que ele deixou de importante foi ser uma pessoa simples, de caráter, de princípios, que sempre tentou dar oportunidades para cada irmão e sobrinho.

Isso eu preciso sempre ressaltar sobre Everaldo Marques da Silva".

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