Highlander

Felipão comemora 20 anos do penta com sua especialidade: levantar depois de um tombo

Eder Traskini e Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Gustavo Oliveira

Um silêncio quase involuntário toma conta do refeitório do CT do Caju no exato momento em que Felipão entra no ambiente. É mais que o simples respeito de elenco para treinador, é quase uma reverência àquela figura icônica.

De Nike Air Jordan no pé, o tênis da moda, Felipão em quase nada aparenta os 73 anos de idade. Deu as caras — que já não mais ostentam bigode — em um evento de patrocinadores do clube logo que chegou e até em uma festa junina de funcionários apareceu.

Dentro da grande estrutura do Athletico-PR, o técnico surpreende pela alta velocidade que caminha em direção a um dos oito campos para comandar o treino. Treinador da seleção brasileira pentacampeã mundial, título que completou 20 anos ontem (30), ainda se faz presente em campo. Paulo Turra, seu auxiliar de longa data, comanda cerca de 50% das atividades, mas mesmo nessas Felipão faz constantes e detalhistas intervenções.

Luiz Felipe Scolari completa 40 anos na área técnica nesta temporada, um recorde entre treinadores no Brasileirão. E Felipão não parece apenas de passagem: está em alta com o Athletico, desempenho inimaginável para quem vinha de campanha de rebaixamento com o Grêmio.

Mas Felipão é desses técnicos que não se pode dar por terminado. Como o guerreiro imortal dos filmes e dos quadrinhos, é um Highlander do futebol.

Gustavo Oliveira

O Felipão é sensacional. Sentava na mesa com a gente na hora das refeições, não se isolava de ninguém, como fazem alguns técnicos, dava liberdade total para o jogador chegar, se abrir e conversar. Uma das coisas que ele tem de melhor é essa gestão de pessoas, tanto é que está fazendo um trabalho excelente depois de algum tempo no Athletico e você vê o brilho dos caras para correrem por ele. Nas coletivas está um cara mais leve, tranquilo. Humano para caramba."

Denilson, Ex-jogador campeão mundial em 2002

Lucas Emanuel/AGIF

Começo no Athletico-PR empolga

Quis o destino que o primeiro jogo de Felipão após as homenagens recebidas pelos 20 anos do penta fosse contra um dos clubes pelos quais mais fez história: o Palmeiras. O duelo contra o Verdão é amanhã (2), no Allianz Parque, e será o 15º de um início avassalador no Athletico-PR.

Scolari é o terceiro técnico do Furacão no ano. Antes dele, Alberto Valentim e Fábio Carille estiveram no cargo, mas longe de alcançar o sucesso do campeão mundial. Em 14 jogos, a equipe de Felipão venceu dez, empatou três e perdeu apenas um.

O desempenho faz os corredores da Arena da Baixada pulsarem de otimismo. O clube está muito ativo no mercado da bola e quer dar ainda mais armas para Felipão buscar títulos na temporada.

Sob comando do badalado Alexandre Mattos como CEO, o time não tem economizado. Pagou a multa rescisória de R$ 24 milhões do jovem Vitor Roque, de 17 anos, que estava no Cruzeiro. Exerceu o direito de compra do meia Hugo Moura, ex-Flamengo, no valor de R$ 6,6 milhões. A volta de Fernandinho, que estava no Manchester City, foi a cereja do bolo. Mas não o último pedaço.

Os paranaenses ocupam o terceiro lugar no Brasileirão, cinco pontos atrás do líder Palmeiras. Na Copa do Brasil, abriram as oitavas em vantagem ao vencer o Bahia por 2 a 1 fora de casa. Na Libertadores, também largaram na frente: 2 a 1 sobre o Libertad (PAR), na Arena.

É mais uma volta por cima para quem há oito meses era demitido do Grêmio na iminência de ser rebaixado para a Série B do Brasileirão. Mas essa história de tombar e levantar não é novidade.

A vida depois do tombo

Algumas voltas por cima de Felipão nos últimos anos

Antônio Gaudério/Folhapress

Honduras

Um dos maiores vexames da história da seleção brasileira (bem antes do 7 a 1) foi a Copa América de 2001. Já com Felipão, o time foi eliminado nas quartas de final com uma derrota por 2 a 0 contra a fraca seleção de Honduras. O técnico balançou, mas não caiu. E venceu o Mundial no ano seguinte.

REUTERS/Jerry Lampen

Euro-2004

A passagem de Felipão pela seleção de Portugal é elogiada por aspectos dentro e fora de campo, mas se há uma marca negativa é o vice-campeonato da Eurocopa de 2004. A campeã naquele ano, em Lisboa, foi a seleção da Grécia, sem estrelas do porte de Figo, Deco e Cristiano Ronaldo.

Darren Walsh/Chelsea FC via Getty Images

Chelsea

Felipão foi um dos poucos técnicos brasileiros a chegar ao comando de um grande europeu, o Chelsea de 2008/2009. A passagem durou oito meses e foi marcada pela falta de resultados, mas o abalo não foi tão profundo na carreira, que depois teve nova passagem pela seleção brasileira após cinco anos.

Leandro Moraes/UOL

Palmeiras

Felipão assumiu o Palmeiras em 2010 e foi campeão da Copa do Brasil de 2012, mas no mesmo ano deixou o time em penúltimo lugar do Brasileirão faltando 14 jogos para o fim do campeonato. O time acabou rebaixado, mas o técnico voltou seis anos depois.

Pedro Ugarte/AFP

7 a 1

É um dos traumas inescapáveis a queda da seleção brasileira nas semifinais da Copa do Mundo de 2014 diante da Alemanha, no Mineirão. Felipão carregou a imagem do treinador brasileiro ultrapassado, mas depois ainda comandou quatro clubes na elite.

Pedro H. Tesch/AGIF

Grêmio

É um roteiro parecido com o do Palmeiras, versão 2021: assumiu o Grêmio e três meses depois foi demitido com o time na zona de rebaixamento, o que se confirmou no fim do ano. O sucesso atual no Athletico-PR é, portanto, mais uma improvável volta por cima.

Reprodução/Twitter

As metamorfoses da família

Felipão é por essência um gestor de grupo. Por tudo o que dizem seus comandados e pessoas que viveram o dia a dia de seus trabalhos, poucos técnicos no mundo têm tamanha capacidade de ter o vestiário nas mãos como o atual treinador do Athletico-PR. O maior expoente de tal habilidade se deu no maior título que um técnico pode alcançar: a Copa do Mundo.

"Quando a gente perdeu o Emerson, que era o capitão da seleção naquela Copa, na véspera do jogo, o Felipão foi sempre o pastor daquelas ovelhas. Sempre liderando, respeitando todos no mesmo nível, dando dura e elogios para todos. Ele é um cara muito responsável por isso tudo", conta o ex-volante Vampeta, campeão mundial em 2002.

A família Scolari, como ficou conhecida a seleção brasileira naquele ano, marcou para sempre a carreira do treinador. Desde então, em todos os seus trabalhos há sempre a pergunta: formou-se uma nova família Scolari?

No clube paranaense, ele rechaçou o rótulo e trocou por uma variação: a família Athletico.

"Formamos grupos que se tornam vencedores, mas tem horas que formamos grupos que não se tornam e aí perdemos juntos. Ganhamos juntos e perdemos juntos. Se hoje temos um grupo que está entendendo o que eu desejo da equipe, esses jogadores formarão uma família. Não é a família Scolari, mas um grupo que será o grupo do Athletico, o nosso grupo"

A verdade é que a união nos elencos comandados por Felipão é seu maior trunfo. Técnico desde 1982, o veterano de 73 anos não esconde que formar esse tipo de elo está cada vez mais difícil nos dias de hoje.

Os clubes que estão indo bem é porque os treinadores fizeram com que o ambiente fosse mais importante do que outra coisa. Aquele ambiente da Copa de 2002 não se vive mais. Hoje, cada um tem três telefones, ligações com duas ou três pessoas que fazem seu mundo fora do futebol, interesses muito maiores do que tínhamos em 2002. Os técnicos temos que aprender a conviver com algumas coisas, cedemos em algumas coisas, mas procuramos criar um ambiente sadio pra podermos passar nossas informações."

Felipão, Técnico do Athletico-PR, ex-seleção

O que vivemos hoje não é coisa só do futebol. O ambiente familiar está sendo deixado de lado. Quando vamos viajar, vemos famílias cada um com seu iPhone e sem conversar. Da minha parte, que sou um dos mais velhos, quero mostrar a esses jovens que eles podem fazer tudo isso, mas no momento que estamos entre nós temos de trabalhar com aquele ambiente. Com uma mesa grande, em que um possa falar com o outro. Em 2002, tivemos brincadeiras, ríamos meia hora, sabíamos um da família do outro, e ali se formou um grupo."

Sobre formação de grupo

BASTIDORES DO PENTA: Histórias contadas por quem viu de perto

Gustavo Oliveira/athletico.com.br

"Vira e mexe ele ainda faz umas piadas": o lado brincalhão do penta

A surpresa geral das pessoas que trabalham no Athletico-PR sobre Felipão ter se mostrado desde o começo tão ativo e solícito foi ainda maior depois dos primeiros papos: "todo mundo fica de cara ao vê-lo" e "vira e mexe ele ainda faz umas piadas" são algumas das frases que o UOL Esporte ouviu.

Apesar da cara fechada e da fama de bravo, o treinador preza pelo bom ambiente e tenta colocar esse lado em prática na condução do trabalho. Quando o atacante Cuello fez um golaço na Libertadores daquele tipo que não dá para saber se tentou cruzar ou chutar no gol, Felipão lembrou de 2002 e causou risos gerais: "Tu não vai mentir igual o Ronaldinho Gaúcho fez. Aí ele disse a mim: 'O senhor não mandou chutar no gol? Chutei'. Então não está mentindo."

Por outro lado, essa veia piadista do Felipão também já causou constrangimento. Em 2019, durante a passagem mais recente pelo Palmeiras, o técnico quis brincar sobre mudanças de jogadores inscritos na Libertadores e derrapou no tom: "Não vou falar aqui agora, até porque amanhã pode cair o avião e morrer todo mundo. E se morrerem alguns, até vou soltar foguete. Então, né... Mas não são os jogadores, vocês não entenderam a minha piada."

O treinador pediu desculpas via assessoria de imprensa e depois desse episódio ficou um pouco mais fechado no dia a dia do Palmeiras. Felipão escondeu o lado piadista por um tempo e segundo pessoas que conviveram com ele nessa época dava para sentir que não entrava inteiro nos assuntos, que sempre saía antes das rodas de conversa. É a prova de que o lado leve, bem-humorado, é traço de personalidade. Por mais que a imagem pública diga o contrário.

Agora ele está até chorando, né, cara? Vi uma entrevista dele hoje que ele chorou e brinquei com o Juan: 'a gente vai ficando velho, vai ficando emotivo'. Felipão ficou emotivo com 73 anos (risos). Mas era um cara que a gente considerava como um pai mesmo. Até a aparência dele é daquele paizão bravo."

Marcos, Ex-jogador campeão mundial em 2002

Claro que a gente ficava bravo, ninguém quer ficar tomando dura, mas sabíamos que era para o bem do grupo e do atleta. E depois, na hora do jantar e do almoço, o pessoal brincava com ele e ele brincava junto, sempre separou bem a intimidade da concentração com a cobrança que precisava ter no campo."

Sobre a fama de bravo de Felipão

Tim de Waele/Getty

Ídolo, sim, senhor

Felipão tinha restrições sobre ser tratado de um jeito diferente no dia a dia por ser quem é. Ele dizia que era bobagem e até se irritava com excessos de formalidade ou bajulações. Porém, o que pessoas de seu convívio notaram nos últimos anos, especialmente nas passagens por Palmeiras, Cruzeiro, Grêmio e agora no Athletico-PR, é que o técnico do penta decidiu assumir melhor a condição de ídolo, de alguém que as pessoas se impressionam por estar perto.

Um dos elementos que contribuiu para essa mudança de postura foi o estreitamento de laços com Abel Ferreira, técnico do Palmeiras. O português buscou contato com Felipão por saber de sua importância histórica no clube e também pela relação dos dois no passado: o brasileiro foi o primeiro treinador a convocar o então lateral-direito para a seleção portuguesa.

Abel é admirador da relação "humana, sincera e frontal" que teve com Felipão na seleção e sempre mostrou encantamento pelo modo como o treinador conseguiu unir o país em torno da seleção. Em 2021, o Palmeiras uniu os dois técnicos e o brasileiro se viu unicamente na condição de ídolo.

Felipão notou que dá para aproveitar as partes boas de ser bajulado e trabalha para cultivar boas relações em todos os lugares, mesmo aqueles em que o trabalho não rendeu frutos.

Heuler Andrey/Getty Images

Último trabalho da carreira?

O desempenho de Felipão surpreendeu até mesmo ao Athletico-PR. O clube tomou o cuidado de anunciar o pentacampeão mundial como diretor técnico e esclarecer que ele e sua comissão acumulariam o cargo de treinador até nova decisão.

Na prática, o Furacão queria se prevenir: caso Luiz Felipe Scolari não tivesse sucesso na área técnica, seria quase natural colocá-lo como diretor e contratar outro treinador. Mas isso passou longe de ser necessário.

Ainda assim, a princípio o planejamento primário está mantido: Felipão termina o ano como técnico e, na próxima temporada, assume o posto de diretor. A decisão de quem será o próximo técnico do clube partirá do diretor Scolari.

A carreira de Felipão na área técnica pode, ou não, estar perto do fim. Mas se tem uma coisa que Luiz Felipe Scolari ensina em seus 40 anos como treinador é que nunca é prudente duvidar de sua capacidade de contrariar lógicas e dar a volta por cima. E também levantar taças durante o processo.

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