Futebol, 150kg e uma Copa

Vicente Feola e as lendas sobre o técnico recordista no São Paulo e primeiro campeão do mundo pelo Brasil

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo UPI

"Vendo o futebol de hoje, eu acho que meu avô iria gostar dos avanços tecnológicos. Ele ia achar muito bom, mas não iria gostar nada, nada, da falta de empenho dos jogadores. Falta raça hoje em dia. Os jogadores estão mais preocupados com as redes sociais, em usar roupa de marca, com o corte de cabelo, em tirar sobrancelhas. Acho que meu avô sentiria a falta de foco no jogo em si, a falta de foco no campo", diz Júlia Mandetta.

É uma opinião normal. Afinal, que avô não é saudosista e fala do futebol "do meu tempo" com muito mais carinho do que o atual? Mas o avô de Júlia é diferente. Atende pelo nome de Vicente Feola e, se você não o conhece, é bom continuar lendo esse texto.

"Meu avô foi técnico da geração de Mané Garrincha e Canhoteiro. Brigou para levar o menino Pelé à Suécia. Então, iria estranhar essa indústria da celebridade que cerca o futebol atual".

Feola é o recordista em partidas no comando do São Paulo, com 532 jogos à frente do clube, e o primeiro brasileiro a levar o Brasil ao título da Copa do Mundo, em 1958. Um filho de imigrantes italianos de 150 kg que adorava reunir amigos, cartolas e jogadores ao redor da mesa de sua mulher, dona Joanina, ele conviveu, durante toda a carreira, com boatos e comentários maldosos sobre seu peso. Agora, você vai ver o que existia de verdade neles.

UPI

O recordista do São Paulo

Quando um técnico do São Paulo balança, o fantasma de Feola sempre aparece. Ele chegou ao clube em 1937 e assumiu o comando oito vezes. Tanto vai e volta se explica: ele era funcionário administrativo da diretoria, um faz tudo dos tempos em que o clube mandava seus jogos no Canindé e a sede era na avenida Ipiranga.

Sempre que o futebol tricolor balançava, lá ia Feola resolver o problema, daí os 532 jogos como técnico do time. Quando o assunto é respeito dos torcedores, aparece ombro a ombro com Telê Santana e Muricy Ramalho - um grupo em que os mais velhos acrescentam o nome do argentino José Poy.

"Existe sempre muita política em qualquer clube e o técnico acaba sendo o bode expiatório. Acho difícil que alguém alcance a marca do meu avô no comando do São Paulo, com 532 partidas. Só o Muricy chegou perto, não é?", diz Júlia — Muricy é o segundo na lista de mais jogos, com 474 partidas.

Sergio/Folhapress Sergio/Folhapress

Futebol e banquetes

A neta de Vicente Feola e sua irmã, Ângela, têm uma coleção de bonecas de todos os lugares por onde o vovô passou em sua carreira a partir do nascimento delas. Júlia, a primeira neta, nasceu em dezembro de 1957. A dupla também possui na memória uma outra coleção de histórias, recortes e jogos assistidos em cadeiras especiais no Morumbi, ao lado do avô até o início da década de 70.

É um acervo que guarda desde um calhamaço de telegramas que Zagallo mandava direto do México ao avô pedindo conselhos na Copa de 1970, passa pelos desenhos do Morumbi em construção, e chega a receitas de comidas italianas, que o avô simplesmente adorava. Além dos causos que juntam, na mesma mesa de jantar, os campeões mundiais, patronos do SPFC, dirigentes da CBD (hoje CBF) e até um juiz de futebol sem a menor dose de suspeita sobre sua conduta em campo.

Os banquetes que a minha avó Joanina fazia eram famosos no meio futebolístico. E tinha um juiz de futebol do Rio de Janeiro que, quando vinha apitar em São Paulo, ligava para o meu avô e pedia para que fosse feito um frango assado com batatas que só minha avó tinha receita. E ele vinha mesmo almoçar em casa. Era o Armando Marques

Júlia Mandetta, neta de Vicente Feola

Arquivo Pessoal

"Vinha também o Dino Sani com a mulher. Eu lembro bem porque ele já era careca. Era o Dino, sim, porque depois ele foi jogar no Boca Juniors e meu avô foi ser técnico. Lembro de um aniversário meu de 4 anos [na foto acima]. Eles gostavam de um restaurante em Buenos Aires que fazia sopa de tartaruga. E iam depois dos jogos. Imagina: duas da manhã e eu comemorando o meu quarto aniversário".

O assunto, claro, era o jogo da bola. "Hoje, eu entendo meu avô. Para ele, era tudo uma paixão, uma família. Meu avô adorava comer e reunir as pessoas. Era o círculo de amizade que importava. Gente que se entendia e que se respeitava pelo fio do bigode. E minha avó adoooorava cozinhar. E ela só ficava brava porque os homens, depois do jantar, ficavam conversando na sala e acendiam charutos. As cortinas ficavam impregnadas daquela fumaça".

Gordinho desde a juventude

Paulistano do Brás e filho de imigrantes de Castellabate, um vilarejo da região de Salerno, na Itália, Vicente Feola nunca teve a silhueta de atleta. "As fotos que tenho desde os tempos de juventude dele mostram que sempre foi gordinho. Era mais magro, uma foto dele de maiô na praia em 1930 mostra isso. Mas não era atlético. Por isso, não creio, aliás nem tenho registros, de que ele tenha jogado pelo time principal do São Paulo como alguns falam. Deve ter jogado só como amador, já que não tinha porte de atleta", conta Júlia.

"Mas ele adorava esporte e fez estudos de Educação Física. Na época, a parte de regras esportivas era uma e a fisiologia era outra. Ele fez os dois cursos. Por isso, era um esportista diferenciado. Em seu primeiro emprego no São Paulo, entrou como preparador físico".

Arquivo Pessoal

O técnico que cochilava nos jogos

Antes de entrarmos no futebol propriamente dito, é preciso tratar de uma lenda que sempre acompanhou a carreira de Vicente Feola: é verdade que ele cochilava no banco de reservas? Muitos dizem que é lenda, mas não era.

"Muitas vezes, quando saía do clube, ligava para minha avó e dizia que já estava vindo para casa. Passava em alguma cantina do Bixiga e comprava umas pizzas, calzone, pão italiano, sardela, antepastos, e vinha no seu fusquinha. O fusquinha vinha gemendo, porque ele não trocava as marchas. Era só primeira e segunda. A minha avó escutava quando ele colocava o carro na garagem da alameda dos Piratinins, perto da Igreja de São Judas. Às vezes, ele adormecia no fusquinha mesmo e minha avó tinha que ir acordá-lo".

Agnello de Lorenzo, que trabalhou muitos anos em funções administrativa com Vicente Feola, admite que muitas vezes o encontrava dormindo no escritório do São Paulo: "Ele foi contratado em 1937 como funcionário administrativo e técnico. E às vezes a sonolência era tão grande que ele adormecia falando ao telefone".

Folhapress e Arquivo pessoal Folhapress e Arquivo pessoal

Mas teve uma vez que Feola ficou bem acordado — e deu briga em casa. Após a conquista da Copa de 1958, muita gente queria conhecê-lo. Uma vez, uma grande artista foi ao escritório são-paulino na Avenida Ipiranga.

"Acontece", relembra a neta Júlia, "que a artista era na verdade a vedete Elvira Pagã, muito famosa na época. E ela chegou toda espalhafatosa, de shortinho, e deitou em cima da mesa dele em pleno expediente... Quase deu problema em casa com a minha avó".

Estes são fatos verdadeiros.

Já o grande Djalma Santos, com seu bom humor habitual, contava que uma vez o técnico da seleção brasileira dormia no banco de reservas, em pleno jogo de Copa do Mundo. Acordou e mandou o time atacar. Aí alguém falou para o Feola: "Professor, já está três a zero". Então, ele berrou: "Segura, segura, que já está bom demais!"

Em meio a brincadeiras e fatos verídicos, lá vai a explicação para a sonolência: "Ainda jovenzinho, aos 19 anos, meu avô teve nefrite. Foi uma doença que o atingiu fortemente. Ele teve que tirar um rim. Os remédios eram fortes. Além disso, a obesidade e diabetes minavam a sua disposição. Então, sim, ele dormia. Às vezes fora de hora e local. Mas adorava futebol".

Acervo UH/Folhapress Acervo UH/Folhapress

O homem que bancou Pelé

Para a Copa do Mundo de 1958, a CBD, então comandada por João Havelange, resolveu apostar em um técnico do futebol paulista pela primeira vez. Feola, que desenvolveu uma amizade forte com o "Marechal da Vitória" Paulo Machado de Carvalho, foi o escolhido.

Embora tenha gente que diga que ele não mandava no grupo, o gorduchinho teve algumas atitudes que mostravam personalidade. Primeiro: contrariando a CBD, bancou a convocação de Pelé, mesmo depois que ele se contundiu em um amistoso contra o Corinthians antes do embarque para a Suécia —então presidente da CBD, João Havelange teria pedido para que o "jovenzinho" fosse cortado.

"E nós do Rio de Janeiro, não conhecíamos aquele menino", confessou Zagallo. "Quando houve a apresentação, eu, o Nilton Santos, o Vavá e o Didi perguntávamos: quem é ele? Mas logo ele mostrou quem era".

O próprio Zagallo foi uma teimosia de Feola: os ponteiros esquerdos preferidos da imprensa eram Canhoteiro e Pepe. Zagallo tem certeza de que foi escolhido para o lugar de Canhoteiro pela ideia de defender no 4-3-3. "Ele sabia que eu tinha essas características. Era o único que marcava e que sabia também atacar".

Arquivo Pessoal

Os protestos de 1966

A ideia era repetir a dobradinha com Pelé e Zagallo em 1962, mas a nefrite de Feola atacou, os médicos o vetaram (na foto acima, ele aparece com a mulher e as netas) e o Brasil foi campeão com Aimoré Moreira. Voltou logo depois à seleção, mas sem muito sucesso. Em 1964, comandou a seleção olímpica em Tóquio que foi eliminada na primeira fase pela República Árabe Unida (país que envolvia os atuais Egito e Síria).

Em 1966, esteve no vexame da Copa da Inglaterra, quando a seleção caiu ainda na primeira fase. "Depois da derrota para Portugal, a torcida foi chegando à casa da minha avó e nem a polícia conseguiu impedir que invadissem o jardim, quebrassem umas grades e atirassem pedras que quebraram vidros das janelas", lembra Júlia.

Quando parou com a carreira de técnico, Feola continuou um fã do futebol. Ia todo domingo de jogo ao Morumbi e deixava as netas aos cuidados de Gino Orlando, seu antigo centroavante no São Paulo e na seleção nacional. Quando não ia ao estádio, escutava o jogo em seu rádio Telefunken.

"Ele adorava aquele rádio que tinha trazido da Europa. Tinha a poltrona dele. E ouvia os jogos com os olhos fechados. E quando o jogo era televisionado, via as imagens numa TV que também só ligava, mas ouvia a narração das emissoras de rádio. O curioso é que, no intervalo da partida, sempre alguém ligava para pedir instruções. Não sei quem era, mas ele falava quem deveria sair, quem deveria entrar e que mudanças faria na equipe".

Reprodução Reprodução

Pizza de calabresa no hospital

Quando a doença apertou, a vó Joanina não se acanhava: levava pizza de calabresa no quarto do hospital e brigava com os médicos e enfermeiras.

"Lembro do meu avô dizendo que, se fosse para morrer, queria morrer de barriga cheia, e engolia os pedaços de pizza calabresa. E quando dava, minha avó também levava pão com linguiça, que ele adorava".

Feola partiu em 1975, por complicações cardíacas. Como disse a Folha de S. Paulo de 7 de novembro daquele ano, "A derrota do Futebol: morreu o gordo Feola".

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