"África do Sul é logo ali"

Vanucci entrou em depressão ao sentir carreira desabar depois de episódio infortúnio na final da Copa de 2006

Beatriz Cesarini, Gabriel Carneiro e Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo

Dois comprimidos de seis miligramas de Lexotan, um hipnótico que costuma funcionar para crises de ansiedade e agitação. Duas taças de vinho tinto, típicas do almoço de confraternização com colegas jornalistas após um grande evento. Duas ligações estrondosas que culminaram numa briga familiar num momento pouco propício para que tudo fosse resolvido. Não necessariamente nessa ordem.

A combinação de decisões tomadas naquele 9 de julho de 2006 fizeram Fernando Vanucci acreditar, por uma década, que toda sua trajetória dentro do jornalismo esportivo havia desabado num sopro. A transmissão da RedeTV na final do Mundial na Alemanha, em que a Itália venceu a França nos pênaltis (e o Brasil já havia sido eliminado fazia tempo), se tornou o primeiro viral de Copa da internet. Foi um baque para Vanucci. Mas não só para ele.

O editor-chefe de esporte da emissora, que acompanhava do switcher a abertura do programa Bola na Rede, se desesperou. No ponto, pedia que Vanucci chamasse o intervalo, mas o narrador deu de ombros. Quando a fatídica frase "A África do Sul nem é tão longe assim, é logo ali", Marcio Ogata derrubou o programa sem transição.

A audiência da RedeTV à época, com a TV Globo sendo quem detinha os direitos de transmissão da Copa do Mundo, era inexpressiva. Foi o que, por um momento, tranquilizou Vanucci e a equipe que acompanhava o programa. Num período em que os celulares ainda tinham como função principal ser um telefone e o YouTube tinha acabado de ser lançado, não tinha como o vacilo de Vanucci viralizar. Mas viralizou.

Os dias que seguiram foram dolorosos para ele, que foi um dos pioneiros no que hoje é comum, o jornalismo esportivo irreverente. Teve uma carreira sólida e brilhante, se tornou uma das principais vozes do futebol brasileiro, e sonhava com outro destino para os anos que encerrariam seu ciclo profissional. Não foi possível.

Vanucci gostaria que o episódio infeliz fosse esquecido, mas, como não foi, precisou ser ressignificado. Em 2018, estreou um programa no UOL denominado "A Rússia é logo ali", com referência ao bordão do dia que ele, inicialmente, queria esquecer. Durante os 31 dias de Copa do Mundo, o narrador foi o rosto do UOL Esporte para as principais notícias do torneio. Dois anos depois, morreu vítima de infarto. Seu legado, entretanto, permanecerá para sempre vivo.

Getty Images / Arte UOL

A TV e a Copa

A partir do dia 20 de novembro, o mundo inteiro estará com os olhares voltados para a Copa do Mundo, que será realizada no Qatar. A maioria dos brasileiros acompanhará o maior evento de futebol do universo pela televisão.

É justamente esse aparelho que, ao longo dos anos, moldou a forma de o brasileiro torcer. Nesta série, o UOL Esporte relembra e conta a história de grandes momentos da televisão brasileira em Copas do Mundo, desde personagens icônicos e imprescindíveis no Mundial a simples frases que todos entoamos ao longo dos anos.

Um baixinho cheio de suspeitas

Fernando Vanucci tinha 1,67 m de altura. Mas quando ligava uma câmera na frente dele, crescia três metros. Fora delas, era um cara desconfiado e retraído. O ex-diretor de jornalismo da RedeTV Terence Paiva descreve o amigo como um cara "cheio de suspeitas", que demorava para se soltar.

Muitas vezes, pelo pouco papo típico de quem quer ter certeza de onde está pisando, era considerado um sujeito "mala, chato e zoado". Carcaça que caía rapidamente quando ele concedia alguns dedos de prosa. "Era um escudo que ele tinha", afirma Terence. Vanucci e o diretor de esporte da emissora saíam todos os domingos após o Bola na Rede para comer pizza e papear.

Quando parte do núcleo de esporte da Globo, foi pioneiro num feito importante dentro e fora da emissora: tirar a formalidade, típica do jornalismo da época quando a pauta era esporte. Vanucci e seu bordão, "Alô, você" foram referências para os que vieram depois. Passou por Bandeirantes, TV Record e RedeTV!. Na Globo, apresentou programas de destaque, como Globo Esporte, Esporte Espetacular, Jornal Nacional, Jornal Hoje e Fantástico. O jornalista esteve na cobertura de seis Copas do Mundo e cinco Olimpíadas.

Em sua última entrevista ao UOL, em 2018, revelou quem era o "você" de seu "alô": "Era para a Suzane [Carvalho]. Nós tínhamos terminado nosso namoro e eu estava morrendo de saudade dela. Foi uma paixão alucinada o que a gente viveu, daquelas que te derrubam e, pouco depois, você vê que não era nada. Ela nunca soube disso. Revelei anos depois, e expliquei que tinha medo de pegar o telefone e ligar para ela. Era pra ela, mas virou um alô pro Brasil inteiro".

"O que tá acontecendo com o Vanucci?"

Toda essa trajetória ficou de lado depois do episódio na final da Copa do Mundo de 2006. Falar de Fernando Vanucci, por muitas vezes, foi resumido àquele dia. Marcelo Campos era produtor de esporte da RedeTV e estava de folga, num churrasco, no dia da final. A televisão estava desligada, mas o celular não.

"Recebi uma ligação do Téo José. Ele me perguntou o que estava acontecendo com o Vanucci. Eu nem sabia do que se tratava. Ele disse: 'A coisa está feia, precisa tirá-lo do ar'. Só que eu moro em Cotia, eu não tinha o que fazer", relembra Marcelo.

Téo José tinha acabado de deixar a RedeTV para trabalhar na Bandeirantes e ainda mantinha bastante contato com os antigos colegas de trabalho. O próprio Vanucci se tornou seu amigo, anfitrião de jantares e churrascos. O narrador, naquela final de Copa, estava num flat em São Paulo depois de chegar de um evento pela Band. Ligou a TV, assistiu à final sozinho e botou na RedeTV para prestigiar os amigos.

"Eu era muito ligado a esse pessoal ainda", conta Téo ao UOL. "Quando vi aquilo, pensei: 'puta que pariu. Será que não tem ninguém vendo isso?'" O narrador ligou, então, para Marcelo, que estava de folga. Terence, que cobria o evento in loco na Alemanha, não o atendeu. "Então, liguei para o Ogata, que era quem estava cuidando da transmissão. Ele me disse que ninguém percebeu qualquer coisa antes de o Vanucci entrar no ar", relembra Téo José.

Téo ligou, então, para o diretor da RedeTV, José Emílio Ambrósio:

-- Zé, eu te conheço. Você vai segurar a onda do Vanucci, né?
-- Se você me conhece, nem precisa perguntar isso.

O outro lado da câmera

Ogata foi o nome comumente citado por todos os entrevistados que o UOL ouviu para esta reportagem. Era ele quem estava no Brasil e, mais precisamente, no switcher, quando tudo aconteceu. Ogata conta com exclusividade ao UOL Esporte que, antes de a final começar, ele ligou para Vanucci e combinou detalhes da transmissão.

O apresentador chegaria na emissora pouco antes do início da partida entre França e Itália, assistiria ao jogo ao lado da equipe e se prepararia para o programa que viria na sequência. Mas o planejamento não aconteceu. Vanucci contou que teve uma discussão com o filho e explicou a Ogata que chegaria à emissora no intervalo do jogo. Também não aconteceu.

"Ele chegou faltando 15 minutos para o programa ir ao ar. Nesse dia, por causa disso, eu não consegui falar com o Vanucci cara a cara antes de a transmissão começar. Tínhamos pouca estrutura, muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Quando ele chegou, pedi que a produtora o acompanhasse até o estúdio para ser microfonado. Pensei que falaria com ele pelo ponto."

Vanucci era tímido, educado internamente. Pelo ponto, Ogata perguntou se o narrador estava bem. Como resposta, recebeu apenas um joinha. O programa estava prestes a começar, a equipe estava posicionada. Mas o diretor só percebeu que havia algo errado quando o narrador, já ao vivo, começou a falar mais lentamente do que o habitual.

"Pedi que chamasse o break; ele não respondeu. Continuou lendo o TP, e começou a piorar. Então, pedi para o diretor de câmera que cortasse imediatamente. Teve a interrupção brusca e fui até o estúdio tentar entender o que estava acontecendo. Foi só nesse momento que percebi que o Vanucci não estava em seu estado normal. Para preservá-lo, pedi que não fizesse o programa, que fosse para casa descansar. Então, acionei o José Emílio e pedi um substituto com urgência. O Augusto Xavier chegou em 30 minutos para quebrar aquele intervalo que já durava 45 minutos."

Ainda sem redes sociais, Ogata jurou de pés juntos que aquele momento teria sido presenciado apenas pelas poucas pessoas que formavam a audiência da RedeTV naquele dia. Foi surpreendido no dia seguinte, quando liga seu celular e se depara com setenta mensagens na caixa postal. "Foi quando percebi o estrago. Acredito que alguém de dentro da emissora tenha subido esse vídeo no YouTube, porque ainda não era tão fácil o acesso às imagens das emissoras, ainda mais da RedeTV", diz.

O editor teve medo da demissão. Recebeu uma ligação da secretária de José Emílio, que disse que o chefe queria bater um papo com ele. "Ele queria entender o que aconteceu. Disse que pediram minha cabeça, mas que iria segurar", afirma.

Essa história me atormentou por muito tempo. A pergunta que sempre faziam era 'como deixaram ele entrar no ar assim'. E esse 'deixaram' era sobre mim. Eu que estava cuidando daquela transmissão. Me senti culpado por anos, achei que pudesse ter impedido. Mas foi uma peça que desencaixou e, quando vi, deu tudo errado. Isso martelava minha cabeça. Sempre gostei muito do Vanucci, ele era um ídolo de infância, mas por muito tempo senti mágoa porque ele não protegeu a equipe. Quando o baque dele passou, começou a surfar na onda do 'África é logo ali', e em momento algum ele defendeu a gente, a equipe, que foi culpada por isso por muito tempo."

Marcio Ogata, ex-editor-chefe de esporte da RedeTV

A última entrevista de Vanucci

Em junho de 2018, Vanucci concedeu sua última grande entrevista ao UOL. Os responsáveis pela conversa foram os jornalistas Gabriel Carneiro e Vanderlei Lima, para os quais o narrador desabafou a respeito da vontade de encerrar a carreira na TV Globo.

"Já há algum tempo eu tenho essa coisa formada na minha cabeça: eu nunca deveria ter saído da Globo. Lá é minha casa, é a casa em que eu aprendi tudo, que me recebeu, que me abriu as portas para a vida profissional. Eu deveria ter seguido o conselho da Marluce. Deveria ter ficado e não deveria ter me deslumbrado. Eu me arrependi", disse, à época.

O jornalista Gabriel Carneiro relembra o último encontro com o narrador:

"Minha entrevista com Fernando Vanucci em 2018 durou mais de duas horas. Eu e o Vanderlei deixamos o condomínio dele depois desse papo cheios de animação, ideias, insights e possíveis ganchos para a publicação da reportagem. Não sei o Vanderlei, mas eu também saí de lá com algo a mais que isso: uma impressão forte de mágoa no modo do Vanucci de falar e contar suas histórias. Parecia que ele estava sempre se defendendo, contra-atacando, lembrando o quanto foi top para rebater as polêmicas, provocações e imagens negativas. Era um homem que se irritava com dois comentários maldosos entre mil elogios. Na época, tentei passar para o texto essa reflexão de que os mais de 50 anos de carreira do Vanucci eram mais do que aqueles momentos. Não sei se consegui."

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