A década perdida

Nos últimos dez anos, a Ferrari deixou de ser dominante e não consegue vencer nem com carro mais veloz

Julianne Cerasoli Colunista do UOL, em Londres (Inglaterra)

O motor é o mais potente da Fórmula 1 — e não é de hoje: há pelo menos um ano, as velocidades de reta registradas pela Ferrari são as maiores da categoria. Entre os pilotos, de um lado a Scuderia tem o tetracampeão e terceiro maior vencedor da história, Sebastian Vettel, e de outro a grande revelação dos últimos anos, Charles Leclerc. E vitórias como no circuito de rua de Singapura mostram que não é só de velocidade de reta que vive o carro da Ferrari. Ou seja, o chassi também é competitivo. Mas então por que o time mais tradicional da Fórmula 1 — e maior vencedor do início dos anos 2000 — está na fila desde o título de construtores de 2008?

Primeiro, é bom lembrar que não é por falta de dinheiro para fazer bons carros. Na última década, a Ferrari foi beneficiada por acordos unilaterais fechados por Bernie Ecclestone que garantem que o time receba a maior fatia dos lucros de todo o grid, independentemente de sua performance. Para se ter uma ideia, a Ferrari recebe, só para estar no campeonato, perto de 150 milhões de dólares. Isso seria suficiente para superar o orçamento total (que ainda inclui grandes bônus por performance) de sete das outras nove equipes. No total, a fatia da Ferrari supera os 200 milhões de dólares. É maior, inclusive, do que o que a hexacampeã Mercedes recebe.

Pilotos e oportunidades também não faltaram: a Ferrari teve campeões mundiais em todas as temporadas desde o último título — Kimi Raikkonen, Fernando Alonso e Sebastian Vettel. Além disso, em 2014 a F-1 promoveu uma mudança de regras importantíssima, com a introdução do motor V6 turbo híbrido. E, mesmo sendo a única equipe que faz motor e carro sob o mesmo teto, a Ferrari não aproveitou. Mas o que deu errado na última década da Scuderia?

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Divulgação/Ferrari

Faltou visão

No começo dos anos 2000, era raro ver a pista de Fiorano, grudada à fábrica de Maranello, sem carro na pista. Se o tempo estava ruim, era só ir para Mugello, a 1h30 dali. Ter a oportunidade de testar por horas a fio era uma vantagem importante da Ferrari frente aos rivais e foi usada ao máximo na época em que Schumacher conquistou o pentacampeonato pelo time italiano, entre 2000 e 2004. Porém, a partir de 2003, a Federação Internacional de Automobilismo começou a impor limites para os testes privados — e os ampliou em 2007. Em 2010, os testes privados foram banidos.

Percebendo a tendência de fim dos testes em pista, outras equipes, como a Red Bull e a Honda (que viria a ser o que hoje é a Mercedes), investiram pesado em tecnologias voltadas à simulação. Os túneis de vento ficaram mais sofisticados e, principalmente o CFD (ou fluidodinâmica computacional, que permite simular a interação de peças novas do carro com o ambiente no computador) e os simuladores (basicamente um videogame de corrida muito mais sofisticado que parece um mix de nave espacial e "Transformers", no qual as equipes experimentam até acertos para o carro) se tornaram fundamentais para o sucesso na F-1. Com o seu desenvolvimento muito mais voltado aos testes na pista, a Ferrari foi ficando para trás. O primeiro sinal disso foi o projeto ruim do carro de 2009, depois da primeira grande mudança de regulamento por que a F-1 passou após a restrição dos testes em pista.

No ano seguinte, a equipe decidiu finalmente construir seu próprio simulador em Maranello. "A finalização desse projeto significa que agora vamos atacar com confiança alguns dos desafios da Fórmula 1 moderna, colocando a Ferrari no topo desse tipo de tecnologia", disse o então chefe da Scuderia, Stefano Domenicali, na época do lançamento. A Ferrari usa até hoje o mesmo simulador, que deve ser substituído neste ano.

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Carros começavam o ano bem, mas caíam

Uma das grandes marcas especialmente da primeira metade da década de 2010 na Ferrari foi ver carros "nascendo" razoavelmente competitivos e, depois, caindo ao longo da temporada em relação a sua principal rival, a Red Bull. O time anglo-austríaco sempre conseguia trazer peças que melhoravam o rendimento ao longo do ano. O grande exemplo disso foi a temporada de 2013. Enquanto a Ferrari sofria com a correlação entre os resultados do túnel de vento e os da pista, a Red Bull voava.

Não raro, uma peça passava por todo o processo de produção e era considerada uma melhora. Quando colocada no carro, porém, não dava o resultado esperado. A equipe dizia na época que o problema era a calibragem do túnel de vento, e isso tem relação direta com a falta de foco em simulação nos anos anteriores.

O problema foi nosso desenvolvimento. Não nos adaptamos aos pneus e não evoluímos como planejamos. Chegamos às corridas em julho com algumas novidades que pareciam boas no papel, mas que não deram resultado na pista e acho que isso diminuiu o ritmo de melhora de performance que deveríamos ter tido".

Fernando Alonso em outubro de 2013

Luca Mazzocco/Divulgação

O que é um túnel de vento?

O nome é auto-explicativo: trata-se de um equipamento em forma de túnel com grandes turbinas de ar que servem para simular o comportamento do carro em movimento, ou seja, para fazer estudos aerodinâmicos. Trata-se de uma forma mais barata de fazer simulações em relação ao teste na pista e é usado há décadas na Fórmula 1.

Atualmente, só são permitidas maquetes que correspondem a 60% do tamanho dos carros. Essa medida foi tomada em 2009 para nivelar as equipes, já que nem todas tinham um túnel de vento grande o bastante para comportar testes com carros em tamanho normal.

Paul Gilham/Getty Images Paul Gilham/Getty Images

Pneus iguais para todos

Talvez o grande trunfo da Ferrari na época de Schumacher tenha sido a parceria com a fornecedora de pneus Bridgestone. Até o final de 2006, quando a outra fornecedora, a Michelin, deixou a Fórmula 1, a Ferrari era a única equipe grande que usava pneu Bridgestone.

Os pneus são muito importantes na Fórmula 1 porque são a única zona de contato entre a pista e o asfalto, e cada tipo de carro e cada estilo de pilotagem interage de uma maneira diferente com a borracha. Junte-se a isso os testes de pista ilimitados e é fácil entender a vantagem de ter pneus feitos sob medida para suprir as necessidades dos carros da Scuderia.

"Andamos mais de 25.000km em nossa divisão especialmente criada para os testes. A cooperação com a Birdgestone nos deu grande satisfação. O que nos impressionou foi como eles reagem rapidamente, quando necessário, para identificar soluções. Posso dizer que a Bridgestone é totalmente parte da família Ferrari", disse o então chefe da equipe Jean Todt após o título de 2002, uma das temporadas mais dominantes da Ferrari na história.

O time italiano pôde carregar parte dessa vantagem para os anos seguintes, entre 2007 e 2010, quando a Bridgestone se tornou a única fornecedora de pneus. Porém, a partir de 2011, foi a Pirelli que assumiu essa vaga, com a premissa de fazer pneus que, propositalmente, se desgastam mais e são mais complicados para pilotos e equipes, a fim de deixar as corridas mais movimentadas. E a "mamata" da Ferrari acabou de vez.

Antonio Calanni/AP Antonio Calanni/AP

Estabilidade x trocas de chefia

A primeira década dos anos 2000 na Ferrari não foi apenas a era Schumacher. Quando o alemão foi contratado pela Scuderia, em 1996, trouxe consigo dois dos principais nomes da Benetton, equipe com a qual tinha sido bicampeão nos dois anos anteriores. Ross Brawn e Rory Byrne se juntaram a Jean Todt, que fora contratado para chefiar a equipe, e por mais de 10 temporadas formaram o núcleo que levou o time a seis títulos de construtores e cinco de pilotos. O mesmo não ocorreu na segunda década do milênio, na qual a Ferrari teve quatro chefes de equipe diferentes e viu várias mudanças em seu corpo técnico.

2000

Divulgação/FIA

Jean Todt

Fez carreira como copiloto de rali. Mesmo sem experiência na F-1, foi chamado pelo então presidente Luca di Montezemolo para se tornar chefe da Ferrari em 1994, posição que manteve até 2007. A equipe não conquistava o título de pilotos desde 1979. Com estilo pragmático, Todt guiou a Scuderia de volta ao caminho das vitórias. Atualmente, é o presidente da FIA.

Mercedes/Divulgação

Ross Brawn

Ex-diretor técnico da Benetton, foi com Schumacher para a Ferrari em 1996. Permaneceu até a primeira aposentadoria do piloto, em 2006. Foi chefe da Honda em 2008 e, depois que os japoneses deixaram a equipe, ficou com o espólio do time e foi campeão em 2009. Vendeu o time para a Mercedes em 2010. Em 2017, assumiu o controle técnico da Fórmula 1.

Vladimir Rys/Bongarts/Getty Images

Rory Byrne

Outro levado por Schumacher da Benetton para a Ferrari. Projetou o primeiro carro de Ayrton Senna na F-1. Na Ferrari, tornou-se o terceiro projetista de maior sucesso da história da F-1 (atrás de Adrian Newey e Colin Chapman). Como Brawn e Schumacher, deixou a Ferrari em 2006, mas atuou como uma espécie de consultor pelo menos até 2014.

REUTERS/Giampiero Sposito

Stefano Domenicali

Vindo da área do marketing esportivo voltado ao automobilismo, o italiano assumiu o cargo de chefe da Ferrari após a saída de Todt. Domenicali tinha um estilo mais leve que seu antecessor e apostou todas as suas fichas em Alonso. Após anos sem título e com o desgaste da relação do espanhol dentro da equipe, Domenicali deixou o cargo no início de 2014.

2010

Mark Thompson/Getty Images

Marco Mattiacci

CEO da divisão norte-americana da Ferrari, Mattiacci assumiu o comando da Ferrari após o péssimo início na campanha de 2014. Sem nenhuma experiência com automobilismo, o italiano duraria menos de uma temporada e seria substituído ainda no final de 2014 por Arrivabene.

Ben Stansall/AFP

Maurizio Arrivabene

Também vindo do marketing, deixou a Philip Morris, que tem parceria comercial com a Ferrari de longa data, para comandar o time com mão firme. Porém, perdeu uma queda de braço com seu então diretor técnico Mattia Binotto, que foi alçado ao comando da Scuderia em 2019.

Maxim Shemetov/Reuters

Mattia Binotto

Sua chegada foi uma mudança de paradigma da Ferrari, alçando um engenheiro à posição de chefe. Na Ferrari desde 1995, liderou o programa que fez da unidade de potência ferrarista a melhor do grid. É criticado pelos problemas de relacionamento entre Vettel e Leclerc.

Divulgação

Diretores-técnicos

O cargo que era de Brawn na década anterior foi ocupado por Aldo Costa (2010-2011), Pat Fry (2012-2013), James Allison (2015-2016) e pelo próprio Binotto (2017-2018) nos últimos dez anos. Costa e Allison trocariam a Ferrari pela Mercedes ao longo da década e teriam muito sucesso por lá. Fry (foto), primeiro, voltou para a McLaren (equipe da qual tinha vindo para a Ferrari, trazido por Alonso) e foi recentemente contratado pela Renault.

Rui Vieira - PA Images/PA Images via Getty Images

Projetistas-chefe

O cargo de Byrne trocou de mãos três vezes na última década. Os projetos de 2010 a 2014 foram assinados por Nikolas Tombazis (foto), hoje chefe de chassi na FIA. Depois, Simone Resta assumiu os projetos de 2015 a 2017. Quando Resta foi para a Alfa Romeo, em 2018, Mattia Binotto decidiu não contar mais com um projetista-chefe e dividiu as tarefas no time. Desde então, o time não contratou nenhum nome de peso para a área técnica.

Grande oportunidade perdida

O maior desafio da década de 2010 para a Fórmula 1 foi entender quais os anseios da indústria automobilística. Depois de perder uma série de montadoras no final da década anterior (Honda, Toyota e BMW), a categoria sabia que precisava se reinventar em termos de tecnologia. O então dono do campeonato, Bernie Ecclestone, passou a consultar as fornecedoras de motor para uma solução pensando no futuro, e a Mercedes ofereceu o caminho das pedras: um complicadíssimo motor V6 turbo híbrido que usa energia calorífica e cinética.

O projeto foi adotado a partir de 2014 e, não coincidentemente, a Mercedes saiu em vantagem por já estar pesquisando o projeto. A Ferrari poderia ter feito o mesmo não fosse por um detalhe: não havia dinheiro. Ou, pelo menos, tanto dinheiro quanto a Mercedes estava disposta a gastar.

Naquela época, o time italiano investia pesado em simulação e a própria situação interna do Grupo Fiat exigia parcimônia com os gastos. Foi em janeiro de 2014 que a Fiat comprou as últimas ações da Chrysler, para formar a FCA. No ano seguinte, a Ferrari S.p.A foi separada da FCA (sigla para Fiat Chrysler Automobiles) e parte de suas ações foi para o mercado financeiro. Essa série de eventos, somados à adaptação tardia à realidade da falta de testes de pista ajuda a explicar como uma marca tão famosa pelos motores "perdeu a corrida" para a Mercedes na década e a partir daí, teve de correr atrás do prejuízo.

"Todos os testes iniciais para o novo motor tiveram que ser feitos na fábrica, e estávamos confortáveis quanto a isso. Já faz tempo que não se pode testar muito na pista e a pré-temporada é limitada. Com essa unidade de potência não dá para encontrar erros na pista e tentar recuperar até a primeira corrida. Se você encontrar algo de errado no primeiro dia de testes, é mau sinal", dizia Andy Cowell, que comandou o projeto da Mercedes, ainda em 2014.

Foi isso que aconteceu, contudo, na Ferrari: o primeiro motor V6 turbo híbrido ferrarista era lento, beberrão, e sofria muito com vibrações, que não permitiam que o motor fosse usado com toda a sua potência.

Mark Thompson/Getty Images Mark Thompson/Getty Images

Por um carro melhor aos domingos em 2020

Aproveitando que o regulamento fica estável para a próxima temporada e que os mesmos pneus serão usados, a Ferrari aposta em tornar o seu carro mais forte aos domingos para buscar o primeiro título desde 2008. Isso porque o modelo de 2019 colecionou poles, mas desgastava os pneus mais rapidamente que Mercedes e Red Bull nas corridas.

Para isso, os engenheiros estão desenvolvendo uma série de soluções que, basicamente, vão servir para deixar o carro mais estável nas freadas e, com isso, mais "dócil" com os pneus: a transmissão será mais curta e leve, a distância entre-eixos será levemente diminuída e a suspensão vai usar mais elementos hidráulicos, na linha do que a Mercedes vem fazendo nos últimos anos.

Outro desafio ferrarista é gerar mais pressão aerodinâmica, o que faz com que o carro fique mais veloz nas curvas e também ajuda a cuidar dos pneus. Esse é um grande desafio porque, se um carro for muito aerodinâmico, ele vai perder velocidade de reta, e essa é a grande vantagem ferrarista. Então, a aposta é aumentar o ângulo da parte traseira em relação ao solo, algo que marcou os carros da Red Bull na última década.

"Nosso foco para o carro do ano que vem é gerar muito mais pressão aerodinâmica e, com isso, vem mais arrasto [o carro fica mais resistente ao ar nas retas]. Então não estamos esperando ser tão fortes nas retas como ano passado. Mas isso é necessário porque vimos no final da temporada que ainda precisamos diminuir a diferença", disse Mattia Binotto no final do ano passado.

O carro só será mostrado pela primeira vez no dia 11 de fevereiro. E a primeira boa notícia para os ferraristas é que o carro da Scuderia foi o segundo, depois da Racing Point, a passar pelos testes de impacto. Isso significa que o projeto está correndo como planejado. Veremos a partir dos testes, que começam dia 19 de fevereiro, se também estará veloz na pista.

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