A grande aposta

Flamengo não poupou esforços ou ousadia para superar traumas e ganhar a América

Do UOL, em Lima (Peru) e no Rio de Janeiro Marcos Brindicci/Jam Media/Getty Images

Em três minutos, a vitória do "all-in"

Era tudo ou nada. As cartas na mesa já não bastavam. Os diversos nomes de peso no ataque sobravam, mas faltava encaixá-los. A soma de um bom time com um treinador dito de peso não dava o resultado esperado no primeiro semestre do Flamengo de 2019. Mas como mudar? O elenco já se desenhava qualificado demais. Reforçar o grupo era uma atitude ousada. Mais investimento, mais nomes e um risco assumido? Ou manter o grupo e acreditar que as coisas se acertariam com calma?

Sem paciência, o clube ousou. Jogou tudo que podia. E até o que não podia. Os europeus Rafinha, Filipe Luis, Pablo Marí e Gerson se juntavam a Arrascaeta, Bruno Henrique, Gabigol e outros tantos. Deu certo. Após pouco mais de seis anos de cautela e pés no chão para enfim juntar as fichas a jogar, o Rubro-Negro ultrapassou alguns limites. Optaram por "tudo", e foi praticamente uma jogada perfeita. O time enfileirou bons resultados, ganhou a tão sonhada Libertadores após quatro décadas —e muitas eliminações traumáticas— e praticamente assegurou o título Brasileiro após dez anos.

Na final, o River Plate, que chegou a "blefar" durante a semana, "levou" a primeira rodada na mesa, foi preciso ter paciência. E o até então impaciente Flamengo conseguiu. Devagar, reconhecendo que as cartas não eram favoráveis, desgastou o oponente. A situação era de extrema pressão, mas o time se resolveu em apenas três minutos, com um Gabigol decisivo, provando de uma vez por todas que a grande aposta tinha sido certeira. Com ousadia, dentro e fora de campo, o Flamengo, enfim, era novamente campeão da Libertadores.

REUTERS/Henry Romero

Ele mudou o jogo

Foi preciso que um português desembarcasse no Brasil para redescobrir o Flamengo. Jorge Jesus cruzou o oceano para assumir um time lotado de bons valores, mas carente de bom futebol. Fincou sua bandeira: sob o comando do treinador agora nacionalmente conhecido como "Mister", o novo campeão da Libertadores virou o jogo e passou a ditar as cartas primeiro no Brasileirão. Agora é quem quebrou a banca no continente sul-americano.

Com seu jeito performático, ganhou a arquibancada. Pelos métodos de treinamento e de comando, adquiriu o respeito do vestiário. O substituto de Abel Braga mudou radicalmente a forma de jogo do Rubro-Negro, que passou a praticar um futebol admirado. Desde a estreia, quando o Fla empatou por 1 a 1 contra o Athletico-PR, o "Mister" colecionou 24 vitórias, oito empates e apenas duas derrotas.

Mais que números, o treinador ajudou a colocar fim a um jejum que já durava intermináveis 38 anos. Campeão, o luso, para insatisfação de alguns colegas de profissão, conseguiu o que muitos tentaram e não conseguiram: virou herói do Flamengo. Mas não sem a contribuição de muita gente talentosa:

Chegaram para jogar

  • Rafinha

    Um namoro com meses até se concretizar, com direito ao vice de futebol, Marcos Braz, chegando a abrir mão do Reveillón com a família para negociar com o lateral. O perfil de liderança e experiência ? com anos de Europa e diversos títulos conquistados pelo Bayern de Munique (ALE) ? foram vistos como ideais para se encaixar no elenco. Sua chegada ao Flamengo foi tratada como a de um verdadeiro astro.

    Imagem: Divulgação/Flamengo
  • Filipe Luís

    O pontapé inicial do flerte foi dado quando o presidente Rodolfo Landim foi chefe de delegação da seleção brasileira na Copa América. O interesse do clube do coração em seu futebol balançou Filipe Luís. E o que parecia quase impossível se concretizou quando o lateral esquerdo percebeu que, ao fim de seu contrato no Atlético de Madrid, não havia recebido propostas europeias do mesmo patamar.

    Imagem: Bruna Prado/UOL
  • Gerson

    Para muitos, o grande tiro da janela de transferências. Embora fosse caro ? custou quase R$ 50 milhões ? foi o meia que Jorge Jesus tanto esperava. Ao invés do combativo Cuéllar, que posteriormente deixou o clube, o treinador queria um volante que propusesse o jogo. Foi então que, junto com o departamento de inteligência, chegou-se ao nome de Gérson, que havia feito uma boa temporada pela Fiorentina (ITA).

    Imagem: Bruna Prado/UOL
  • Marí

    Em suas primeiras semanas no Flamengo, Jorge Jesus solicitou um zagueiro que atuasse pela esquerda e indicou Espanha e Portugal como países onde se poderia encontrar um neste perfil, teoricamente, ?barato?. Foi então que o departamento de inteligência chegou ao nome do espanhol Pablo Marí, que estava "encostado" no Manchester City (ING) e havia disputado a segunda divisão espanhola pelo La Coruña.

    Imagem: André Rodrigues/UOL
Raul Sifuentes/Getty Images Raul Sifuentes/Getty Images

R$ 1,2 milhão por mês? Tudo bem

Um casamento, a princípio, com data de validade: um ano, e só. Mas a relação que se criou entre Gabigol e a torcida do Flamengo foi muito mais intensa do que o clube imaginava, e valeu cada centavo de seu salário europeu que a diretoria topou pagar.

Para fechar a cessão do jogador empréstimo pela Inter de Milão, o Rubro-Negro aceitou arcar integralmente com seus vencimentos, que, somados, custaram cerca de R$ 15 milhões em 2019 (R$ 1,25 milhão por mês). Em troca, ganhou 40 gols e 11 assistências na temporada. Vice de futebol do Flamengo, Marcos Braz afirmou que há conversas adiantadas com os italianos pela compra de Gabigol. A quantia pode chegar a R$ 100 milhões. Como prova da paixão rubro-negra por ele, a diretoria segue em frente com o negócio.

"A gente tratou com a Inter de Milão, vem tratando com o Gabriel, e as conversas vêm andando, mas chegou em um determinado momento que as conversas foram se aproximando das finais. Por questão de bom senso, a gente entendeu que deveria esperar essas finais. [Gabigol] É outro que eu estou muito tranquilo, e o que tiver de ser vai ser", disse o dirigente.

Pilar Olivares/Reuters Pilar Olivares/Reuters

Reforços nacionais, preço de Europa

Os europeus chegaram e fizeram a diferença. Mas não só eles. No empolgante coletivo flamenguista, duas soluções do mercado nacional ajudaram, e muito, a azeitar a máquina: o meia-atacante uruguaio Giorgian De Arrascaeta e o atacante Bruno Henrique. Não é que tenham custado pouco também. A dupla não estava no futebol europeu, mas exigiu investimento de padrão internacional, mesmo.

Maior contratação da história do Flamengo, Arrascaeta custou ? 15 milhões (R$ 63,7 milhões) aos cofres rubro-negros. O começo na reserva com Abel foi o verdadeiro deixou muita gente ressabiada. E irritada, no caso, com o técnico. Desde então o uruguaio acumulou em seu currículo 15 gols e 15 assistências, dando o toque refinado que faltava à equipe em muitos momentos. Virou xodó da Nação. A boa fase o fez enfim virar titular do Uruguai de Óscar Tabárez.

No ataque, Bruno Henrique trouxe o entrosamento com Gabigol da época de Santos, e vive a fase mais goleadora de sua carreira. O atacante balançou as redes 31 vezes em 2019, e se destaca principalmente em momentos importantes. O apelido de "Mister Clássicos" não veio à toa, já que fez 11 gols em 13 partidas contra os rivais. Decisivo, também deixou sua marca nas quartas e na semifinal da Libertadores.

REUTERS/Guadalupe Pardo

Três ases para começar

Cada um a seu estilo e importância: Diego, Diego Alves e Éverton Ribeiro têm muito mais em comum do que a foto com as mãos na taça da Libertadores. As digitais dos três aparecem na construção da equipe que se tornou vencedora com os retoques finais da temporada certeira no mercado e em campo.

O camisa 10 foi o primeiro reforço de peso a chegar ao Flamengo, em 2016. Referência, Diego acabou marcado negativamente. Por "não ter a cara do Flamengo", em um episódio em 2018 quase foi agredido, além de ter sofrido um banho de pipoca, em alusão a atuações abaixo da média em jogos decisivos. A reviravolta veio em grande estilo, voltando de uma lesão que poderia ter encerrado sua carreira no segundo tempo da final da Libertadores para mudar o jogo a favor do Flamengo.

Solução europeia para o gol em 2017, Diego Alves chegou a ser carta fora do baralho no clube. No fim de 2018, ele se indispôs com Dorival Júnior e por pouco não deixou a Gávea. Recuperado em 2019, fez Libertadores impecável. Na mesma janela de transferência veio Éverton Ribeiro, um craque em ascensão no futebol brasileiro que vinha dos Emirados Árabes. Mesmo como 7 era um verdadeiro ás em campo e fez chover em diversas partidas.

Arrascaeta tem coisas de gênio. Não estava fazendo um grande jogo. Deve ser um dos gols do Púskas

Jorge Jesus, se derretendo após golaço de bicileta do uruguaio contra o Ceará

Vejam com ele jogava antes e como joga agora, depois de eu ter chegado. Agora é fácil falar, porque é um jogador de seleção, mas temos de ver o que ele fez para chegar lá

Jorge Jesus, sobre a evolução de Bruno Henrique

Arte/UOL Arte/UOL
Reprodução

Quem pôs as fichas na mesa

Apostar tudo: não é uma decisão das mais fáceis, em qualquer cenário, tabuleiro ou jogo de estratégia. O movimento agressivo no mercado também gerou muito debate dentro do Flamengo. Engana-se quem pensa que o sucesso visto em campo traduz perfeita harmonia nos bastidores na hora de traçar o planejamento. Homem-forte do futebol e responsável por bancar as grandes apostas vindas da Europa no meio do ano, o vice-presidente Marcos Braz encarou resistência na Gávea.

Contratar Rafinha e Filipe Luis a custo zero, além de pagar barato em Pablo Marí, foi algo elogiado internamente logo de cara. Já desembolsar quase R$ 50 milhões pelo então questionado Gerson fez muita gente na cúpula do clube torcer o nariz. Mas o cartola que foi sozinho buscar Jorge Jesus queria ir além, assumindo riscos. Precisava dos títulos. Pelo clube e por sua sobrevivência política.

Hoje Braz não poderia estar mais satisfeito. Jorge Jesus comandou a equipe que viu justamente em Gerson o nome para "consertar" o meio-campo. Marí surpreendeu e formou com Rodrigo Caio uma sólida defesa. Os vencedores Rafinha e Filipe Jesus entregaram estabilidade, experiência e qualidade ao time. Tudo deu certo. Ou quase tudo. Na mesa, as cartas resolveram. No tabuleiro político, a tranquilidade não chega a ser uma realidade ainda. O cada vez mais vitorioso dirigente incomoda aqueles que questionaram suas decisões. Todos sabem que elas foram corretas. Um jogador importante para "disputas" internas futuras ganhou ressurgiu com força.

Wagner Meier/Getty Images Wagner Meier/Getty Images
Thiago Ribeiro/AGIF

Arrumando a casa

Para que a diretoria atual pudesse dar cada uma de suas cartadas, alguém precisou juntar fichas antes. Trata-se do ex-presidente Eduardo Bandeira de Mello, que comandou o clube entre 2013 e 2018. Após uma auditoria nas contas, em abril do primeiro ano de mandato, o grupo do ex-madatário anunciou que a dívida inteira do clube era de R$ 750 milhões. As penhoras eram constantes, o clube tinha conseguido sua regularidade fiscal por pouco, enquanto havia uma série de ex-jogadores e ex-técnicos pendurados na folha. Não havia como investir em um grande clube. Pelo menos não naquele momento.

Bandeira foi o cara da virada. Mas, para sermos justos, o atual presidente Rodolfo Landim já estava lá com papel-chave, assim como outros da atual gestão. A administração foi, aos poucos, se profissionalizando. Não foi um processo pacífico. Houve quem criticasse dizendo que "clube não é banco". Ou quem não acreditasse que aquele processo iria adiante, inclusive dentro do próprio grupo controlador. Mas, ano a ano, a dívida era reduzida e as receitas cresciam. Sócio-torcedor, marketing, renegociação de contratos de TV e uma base que começou a produzir jogadores para venda, Paquetá, Vinicius Jr.

Quando Bandeira saiu do clube para ser substituído por Landim, a dívida estava menor do que R$ 400 milhões, inferior a um ano de receita do clube, que atualmente gira entre R$ 500 milhões e R$ 800 milhões. Deixou dinheiro a receber de Paquetá, essencial para a formação do time atual, e a capacidade de aumentar o endividamento, o que permitia mais gastos. Landim apostou forte em investimentos, em um passo de evolução do trabalho de Bandeira. Conseguiu fazê-lo de forma equilibrada. E agora o clube colhe lucros financeiros e esportivos. É um "banco" vencedor. Ou um grande jogador na mesa.

Raul Sifuentes/Getty Images Raul Sifuentes/Getty Images

Hora de redobrar a aposta?

A cartada final do Flamengo deu muito certo. Com Libertadores na conta e Brasileiro praticamente no papo, o time agora tem uma missão ainda mais difícil pela frente. Com a vitória sobre o River, o Rubro-Negro poderá reencontrar o Liverpool (ING) Na final do Mundial de Clubes 38 anos após sua conquista.

A façanha pode fazer com que o atual elenco supere a famosa geração de 1981. Calma: pelo menos em termos de conquistas. Com Brasileiro, Libertadores e Mundial, Gabigol, Bruno Henrique e companheiros poderiam assegurar feito inédito na história do Flamengo. Para euforia geral de sua torcida, tudo isso poderia sair em um intervalo de um mês. Para o torneio intercontinental, o clube vai chegar, pela primeira vez no ano, sem a pressão da vitória. Não estamos mais falando de "tudo ou nada" —o que não vai impedir que seus empolgados seguidores não sonhem.

Para termos práticos ou estratégicos, o título da Libertadores e a virtual conquista do Brasileiro tornam o planejamento do Flamengo mais folgado. A comissão técnica já pode começar a traçar a estratégia para o ano que vem. Como entrará de férias depois de todos os brasileiros, o Flamengo retomará suas atividades depois do bloco. Mas isso não é um problema, visto que o Carioca é a última prioridade rubro-negra em 2020. O cacife e a ambição já são bem mais altos. A ver se alguém aceitará apostar contra.

Daniel Apuy/Getty Images Daniel Apuy/Getty Images

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