Enfim, campeão

Fluminense conquista a Libertadores pela primeira vez e deixa para trás trauma da final no Maracanã

Igor Siqueira Do UOL, no Rio de Janeiro (RJ) REUTERS/Sergio Moraes

A agonia após o terceiro pênalti defendido por Cevallos se transformou, 15 anos depois, na euforia por, enfim, poder gritar: o Fluminense é campeão da Libertadores!

Dessa vez, não teve trauma. Não teve vilão. O Maracanã foi palco do episódio mais glorioso da História tricolor. A tão aguardada e ansiada conquista continental agora se materializou na taça erguida pelos capitães Nino e Felipe Melo, depois da vitória por 2 a 1 sobre o Boca Juniors, na prorrogação.

Uma apoteose em três cores moldada por vários elementos, como o técnico Fernando Diniz, o artilheiro Cano — sempre implacável, autor de um dos gols hoje (4) — e outras figuras experientes, como Felipe Melo, Ganso e Fabio.

Ah, e claro, esse título também tem o DNA de Xerém — de diversas épocas, diga-se. Ele está expresso em um dos mais talentosos que saíram da fábrica de craques do Flu, como Marcelo, e dos mais novos com futuro muito promissor, como André e John Kennedy. Coube ao camisa 9 ser o autor do gol decisivo, na prorrogação.

O Fluminense fez uma campanha com jogos para a eternidade, como os 5 a 1 sobre o River Plate no Maracanã. Embora tenha passado também por momentos de instabilidade, engrenou quando necessário. Viveu emoções intensas em uma classificação com gol no fim diante do Argentinos Juniors e uma virada épica na semifinal contra o Internacional.

No fim, a conquista em casa — o primeiro a ter esse privilégio na era das finais únicas da Libertadores —, contra uma das camisas mais pesadas do continente, é um prêmio que consagra o time, as ideias do seu treinador e a eficiência da construção desse projeto.

"Vamos, tricolores, chegou a hora, vocês ganharam a Libertadores!" O canto da torcida virou realidade.

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REUTERS/Sergio Moraes

Felicidade absoluta. É algo histórico o que estamos vivendo. Não tínhamos a taça. A gente traçou uma linha no primeiro jogo da Libertadores, que era chegar à final em 4 de novembro e ser campeão. Foi contra um rival muito difícil.

Germán Cano, Atacante do Fluminense e artilheiro da Libertadores

REUTERS/Ricardo Moraes

Com título, Diniz tem ano mágico

Eu nunca fiz isso na minha vida, nunca mandei mensagem para ninguém nesse sentido, mas queria te dizer que algo do além, espiritual, estava dizendo que era hora de te mandar uma mensagem porque acho que me preparei durante todo esse tempo para voltar ao Fluminense e fazer um grande trabalho

Essa foi a descrição do presidente Mário Bittencourt, à ESPN, do contato que Fernando Diniz fez quando Abel Braga deixou de ser treinador do Fluminense, em 2022, e o cargo ficou vazio.

Esse sentimento de que um grande trabalho viria se confirmou com duas taças em 2023 — o título carioca e, agora, a Libertadores.

Para além de um aspecto que beira o sobrenatural, as conquistas servem para referendar as ideias de um treinador que tenta inovar, fugir da lógica e fazer o time encantar.

O Dinizismo, que chegou à seleção — ainda que com um contrato de um ano —, passou a fazer parte do Fluminense, em uma sinergia entre o banco de reservas, os jogadores e a arquibancada.

Nem sempre é divertido ver todas as facetas do estilo de jogo do Flu, sobretudo na construção de jogo com toques perto do próprio gol. Mas o lado bom da ousadia do treinador ficou muito explícito ao longo da campanha.

Diniz conseguiu acrescentar repertório tático a um time organizado pelo "caos" que é o jogo "aposicional". A aproximação dos jogadores, as trocas de passe e até mesmo o jogo aéreo foram cruciais.

Quando a formação original no 4-3-3 parecia não vingar, veio o ajuste para o 4-2-4, com Cano e John Kennedy no ataque, tendo Arias e Keno como motores nas pontas e se movimentando para o meio.

Diniz é workahoolic assumido, mora no Rio enquanto a família está em São Paulo, tem dois empregos e viveu por anos sob desconfiança. Quando os resultados viriam? No Flu, adotou o jargão "vitória, Fluminense", fazendo o sinal com os dedos. As vitórias e os títulos vieram e Diniz, enfim, transformou ideias em taças.

Muita felicidade. Fruto de um trabalho. Se a gente não tivesse vencido, a gente não seria fracassado. Campeão não é quem ganha título. É quem respeita, trabalha com dignidade. Vitória, Fluminense!

Fernando Diniz, Técnico do Fluminense

Ricardo Moreira/Getty Images

Cano, o 'artilleiro'

O sinal do L com as mãos é o símbolo do homem-gol do Fluminense nessa campanha da Libertadores. Germán Cano e a bola vivem uma relação intensa de amor. Ele não precisa ficar muito tempo com ela. Às vezes, é só chutar, antes mesmo de dominá-la ou conduzi-la. Mas o êxtase vem (com frequência) quando a bola estufa as redes.

Nesta Libertadores, foram 13 gols em 14 partidas, desempenho que rendeu ao argentino de 35 anos a artilharia do campeonato.

O atacante fez 13 dos 22 gols do Fluminense. Em uma média aproximada, dois a cada três gols anotados pelo tricolor foram de Cano.

Cano ainda se tornou o maior artilheiro histórico do Fluminense em Libertadores, com 16 gols, superando Fred, com 15.

O pequeno Lorenzo, de 5 anos, filho do atacante, já era amuleto que motivava a comemoração icônica. E ele ganhou neste ano a companhia de Leonella (homenagem ao casal Leo Messi e Antonella) para formar o L duplo nos festejos do pai e também nas arquibancadas.

Ao longo da campanha, ele foi crucial na estreia sobre o Sporting Cristal e na goleada sobre o River, ainda na fase de grupos. Apesar de ter passado em branco diante do Argentinos Juniors, voltou a balançar as redes nos dois jogos contra o Olimpia. Mas nas semifinais atingiu o auge do protagonismo, fazendo três dos quatro gols do Flu no confronto com o Inter, sacramentando a virada que carimbou o passaporte para a final.

Cano nunca teve na Argentina o mesmo reconhecimento que alcançou aqui no Brasil. Uma história que começou no rival Vasco, mas que encontra o ápice no Fluminense.

E o tricolor, que já tinha Romerito no hall de grandes ídolos estrangeiros, agora ganha mais um, incontestavelmente. E tome L duplo para comemorar.

A festa da torcida tricolor nas ruas do Rio

REUTERS/Sergio Moraes John Kennedy comemora fazendo o urso, comemoração que ele "roubou" de Cristiano Ronaldo e caiu nas graças da torcida

John Kennedy comemora fazendo o urso, comemoração que ele "roubou" de Cristiano Ronaldo e caiu nas graças da torcida

JK, o herói, cumpre profecia de Diniz

Diniz avisou. Foi profeta, dizendo a John Kennedy que ele faria o gol do título da Libertadores.

Não só na final diante do Boca Juniors, o camisa 9 foi brilhante ao longo de todo o mata-mata da Libertadores. Fez gol nas oitavas, nas quartas, semifinais e, agora, na final. A comemoração com a torcida, que rendeu um segundo amarelo e a expulsão diante dos argentinos, foi só um tempero a mais na noite épica do Flu.

JK terminou como parceiro de Cano no ataque e foi o nome de uma variação tática do Fluminense de Diniz, quando o time precisava adotar o 4-2-4 para pressionar adversários.

Os gols na Libertadores tiveram papel anímico importante para o Flu. Na semifinal, por exemplo, iniciou a virada sobre o Inter no Beira-Rio.

Contra o Olimpia, abriu o placar para tranquilizar um cenário que poderia ser de pressão paraguaia — algo que já tinha funcionado para o Olimpia diante do Flamengo.

Antes, na fase anterior, ele fez o segundo gol da vitória no Maracanã sobre o Argentinos Juniors, sepultando qualquer chance de reação adversária após Samuel Xavier abrir o placar, já na reta final do jogo.

Depois do apito final, com a explosão da emoção pelo título da Libertadores, Fernando Diniz, que tanto apostou em JK, reservou um momento para um abraço longo e um recado ao pé do ouvido do atacante de 21 anos que foi iluminado quando o time mais precisou.

Lucas Kloss/Getty Images

Marcelo volta e alcança sexto troféu continental

Marcelo entrou para a lista de jogadores campeões da Liga dos Campeões da Europa e da Copa Libertadores. Mas nenhum dos outros 14 jogadores que levantaram os dois troféus continentais tem tantos quanto o lateral-esquerdo do Fluminense.

Este foi o sexto título (sendo cinco da Champions) de um ícone da posição na história do futebol, uma lenda do Real Madrid e que agora, ao retornar para o clube que o formou, tem um espaço reservado na idolatria tricolor.

Depois do segundo gol tricolor, Marcelo já chorava à beira do campo, pois tinha sido substituído no segundo tempo. Quando foi apresentado, em março, o lateral via os filhos Liam e Enzo gritaram eufóricos com a torcida que a Libertadores era um desejo. Agora, conseguiu colaborar muito para que o troféu se tornasse realidade.

A campanha da Libertadores para Marcelo tem uma dose de drama por ele ter protagonizado, involuntariamente, uma cena tão dolorosa, que foi a lesão de Luciano Sánchez, do Argentinos Juniors, ainda no jogo de ida das oitavas.

Apesar da entrada sem querer, a expulsão e a punição posterior do tribunal da Conmebol chegaram a colocar em xeque a participação de Marcelo na competição — foram três jogos de gancho.

Fora das quartas de final, ele retornou na semifinal. Apesar dos sustos defensivos, a qualidade com a bola falou muito mais alto, até jogando de forma mais adiantada, no meio-campo, em um ajuste tático proposto por Diniz.

Marcelo não é um talento qualquer e reforçou isso nesta temporada, mesmo aos 35 anos. Um gigante do futebol neste século voltou para casa e fez os seus muito felizes. E tem espaço na perna para tatuagem de mais uma taça.

Quem tem títulos da Champions e da Libertadores: Sorín, Santiago Solari, Dida, Roque Junior, Cafu, Tévez, Walter Samuel, Ronaldinho Gaúcho, Neymar, Danilo, Rafinha, Ramires, David Luiz e Julián Álvarez.

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Buda Mendes/Getty Images

DNA de Xerém deixa marca na conquista

A fábrica de talentos de Xerém tem participação ativa no primeiro título do Fluminense na Libertadores. Os jovens não são apenas nomes que encorpam o elenco, mas tem sua parcela de protagonismo nesse time histórico. Fruto de uma leva de outra década, Marcelo carrega o DNA da base tricolor, mas os nomes da geração atual também se destacam.

Nessa lista entram o volante André, um dos melhores do país na posição, o xodó e talismã John Kennedy, além dos polivalentes e úteis Alexander e Martinelli.

Cobiçado pelo futebol europeu, André cumpriu o acordo com a diretoria de ficar no clube ainda nesta temporada e foi muito importante na conquista - fez gol e tudo contra o Olimpia.

Kennedy deu uma guinada na carreira neste ano, superou problemas disciplinares do passado e foi crucial no mata-mata da Libertadores. A comemoração de urso fez máscaras se multiplicarem na torcida.

Alexander e Martinelli, por sua vez, são coadjuvantes importantes. Ajudam a dar equilíbrio no meio-campo e entram, se preciso, na linha de defesa em uma das variações táticas de Diniz.

Os medalhões a serviço do Flu

Tricolor buscou nomes experientes, até antes rejeitados por outros clubes, para equilibrar com jovens

Marcelo Gonçalves/Fluminense

O recordista Fábio

Titularíssimo e muito seguro desde que chegou ao Fluminense, o goleiro Fábio atingiu na final contra o Boca Juniors seu centésimo jogo pela Libertadores. Aos 43 anos, ele é o recordista entre os brasileiros. E não haveria prêmio maior do que combinar o título com essa marca. Até hoje, o mais próximo da taça que ele tinha chegado foi no vice-campeonato com o Cruzeiro, em 2009. Atualmente, Fábio é tão importante para o Flu que renovou seu contrato até o fim de 2025.

Pedro H. Tesch/Getty Images

O Pit Bull Felipe Melo

Com 40 anos, é outro cascudo do time. Titular na zaga ao lado do capitão Nino, conquistou a terceira Libertadores na carreira. As duas anteriores foram pelo Palmeiras (2020 e 2021). Tem o papel de liderança, atrai atenções pela personalidade forte e por ser um motivador no vestiário. A cada desarme, a torcida faz o "ruf, ruf", imitando o latido do Pit Bull. Fez um esforço físico para chegar à final da Libertadores, apesar das dores no joelho.

Jorge Rodrigues/AGIF

O maestro Ganso

Aos 34 anos, conseguiu sua segunda Libertadores na carreira - a outra foi pelo Santos, em 2011. É o toque de qualidade e visão de jogo no meio-campo do Fluminense. Apesar de não estar no auge físico mais, é importante pelo passe e por pensar bem os movimentos. Fernando Diniz descreve Ganso como um "gênio", que "sempre enxerga um passo à frente". E isso tem sido muito importante na construção do dinamismo da equipe.

Marcelo Gonçalves / Fluminense

Flu alcança auge na reconstrução pós-Unimed

A conquista da Libertadores é uma façanha que o Fluminense não conquistou nem quando tinha consigo um forte parceiro comercial. A glória no Maracanã premia a reconstrução do clube desde a saída da operadora de saúde Unimed, que bancou timaços nas décadas passadas. Por mais que o casamento tenha trazido títulos nacionais para as Laranjeiras, a conquista continental não foi atingida. Até hoje.

Na construção do projeto esportivo, a diretoria do Fluminense, capitaneada pelo presidente Mário Bittencourt, tenta ser mais eficiente com o dinheiro que tem, considerando adversários mais fortes no papel e nas finanças. O futebol é gerido por Paulo Angioni, executivo experiente.

Em 2022, por exemplo, o tricolor teve apenas a oitava maior receita do Brasil. O Flu arrecadou R$ 339 milhões, faturando cerca de um terço do que o rival Flamengo, que ultrapassou a casa do bilhão mais uma vez.

A diretoria diz que se livrou dos atrasos salariais, realidade há alguns anos enquanto o clube titubeava a partir da saída da Unimed.

O Flu frequentou nos últimos anos a parte de cima da tabela do Brasileirão e fases mais agudas da Copa do Brasil - foi semifinalista em 2022, por exemplo. A diretoria aumentou o investimento no time, segundo relatório do ano passado feito pela Consultoria Convocados.

Ao aumentar a aposta e uma dose de eficiência, o Flu conseguiu reduzir a distância técnica para os demais rivais. O Flamengo, por exemplo, patinou na própria Libertadores e caiu nas oitavas para o Olimpia. O clássico poderia ter acontecido nas quartas, mas o Flu despachou os paraguaios e seguiu vivo até a decisão contra o Boca.

Lucas Figueiredo/Getty Images

O que vem pela frente

Ao se sagrar campeão da Libertadores, o Fluminense dá um salto no protagonismo nacional e continental. Além de se garantir no Mundial de Clubes deste ano, que será na Arábia Saudita, entre 12 e 22 de dezembro, o tricolor assegurou vaga na primeira edição do "super Mundial", que é a edição reformulada pela Fifa que acontecerá a cada quatro anos, a partir de 2025.

No torneio deste ano, o Fluminense já entra nas semifinais, como sempre faz o campeão da Liberta. O adversário ainda é incerto e depende de cruzamentos anteriores. Pode ser até que apareça o Al Ittihad, da Arábia Saudita, time de Benzema, Kanté e Fabinho.

No calendário de 2024, o Fluminense vai enfrentar a LDU na Recopa Sul-Americana. É um reencontro com o algoz da Libertadores 2008 e da Sul-Americana 2009. Agora, o Flu chega com moral muito maior para o duelo com os equatorianos.

Na rivalidade carioca, o Fluminense iguala o Vasco em números de Libertadores e dá um passo que o Botafogo ainda não conseguiu.

Agora, são 11 os clubes brasileiros que conquistaram o principal torneio do continente:

Flamengo - 3 títulos (1981, 2019 e 2022)
Palmeiras - 3 títulos (1999, 2020 e 2021)
Grêmio - 3 títulos (1983, 1995 e 2017)
Santos - 3 títulos (1962, 1963 e 2011)
São Paulo - 3 títulos (1992, 1993 e 2005)
Internacional - 2 títulos (2006 e 2010)
Cruzeiro - 2 títulos (1976 e 1997)
Atlético-MG - 1 título (2013)
Corinthians - 1 título (2012)
Vasco - 1 título (1998)
Fluminense - 1 título (2023)

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EDU ANDRADE/FATOPRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

A campanha até a final

Fase de grupos

Sporting Cristal 3 x 1 Fluminense
Gols do Flu: Cano (2) e Vitor Mendes

Fluminense 1 x 0 The Strongest
Gol do Flu: Nino

Fluminense 5 x 1 River Plate
Gols do Flu: Cano (3) e Jhon Arias

The Strongest 1 x 0 Fluminense

River Plate 2 x 0 Fluminense

Fluminense 1 x 1 Sporting Cristal
Gol do Flu: Cano

Oitavas de final

Argentinos Juniors 1 x 1 Fluminense
Gol do Flu: Samuel Xavier

Fluminense 2 x 0 Argentinos Juniors
Gols do Flu: Samuel Xavier e John Kennedy

Quartas de final

Fluminense 2 x 0 Olimpia
Gols do Flu: André e Cano

Olimpia 1 x 3 Fluminense
Gols do Flu: John Kennedy e Cano (2)

Semifinais

Fluminense 2 x 2 Internacional
Gols do Flu: Cano (2)

Internacional 1 x 2 Fluminense
Gols do Flu: John Kennedy e Cano

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