Hamilton x geração simulador

Fórmula 1 começa após mais de três meses de atraso com atual campeão buscando recorde e novatos em ascensão

Julianne Cerasoli Colaboração para o UOL, em Londres (Inglaterra) Peter Fox/Getty Images

Aos 35 anos e com seis títulos da Fórmula 1 no bolso, Lewis Hamilton poderia estar começando a cogitar a aposentadoria. Até porque, em 2022, a categoria passará por uma grande revolução técnica e todos vão começar do zero. Mas ele negocia a renovação com a Mercedes de olho no próximo desafio: encarar uma nova — e fortíssima — geração de pilotos.

Os postulantes a derrubar o domínio do inglês, que venceu cinco dos últimos seis campeonatos, são acostumados aos modernos simuladores, agressivos na medida certa e rápidos: não por acaso, são uma safra que não precisou de muito tempo na categoria para se afirmar. Eles são mais de 10 anos mais novos que Hamilton em sua maioria e vêm, como o próprio inglês costuma dizer, cheios de "novos truques". Mas quem vai prevalecer?

Esses caras mais novos estão chegando cada vez mais agressivos. Então você tem de trabalhar dobrado. Mas não me sinto velho. Sinto-me mais jovem do que nunca, mais em forma do que nunca. Tudo simplesmente funciona melhor para mim agora pela experiência que eu tenho".
Lewis Hamilton

Atrasada em mais de três meses pelo coronavírus, a temporada 2020 da Fórmula 1 começa neste fim de semana, no GP da Áustria. Ainda que a estabilidade das regras em relação ao ano passado indique que Hamilton deve continuar com o melhor carro, a pandemia gerou mudanças que vão gerar desafios para as equipes. O calendário será muito mais corrido e o desenvolvimento dos carros estará praticamente congelado, como uma das medidas para frear os gastos.

Isso joga várias incertezas na temporada, mas de uma coisa não se pode duvidar: os jovens não vão aliviar nas disputas com o hexacampeão. Principalmente Max Verstappen, que já avisou: "Hamilton é muito bom, mas não é Deus. Na F-1, você depende muito do seu carro. Mas quando você consegue colocar o líder sob pressão, as coisas ficam mais difíceis para ele."

Peter Fox/Getty Images

Efeito coronavírus: menos provas, maior intensidade

A temporada que teria 22 GPs, a mais longa da história, e seria a última de uma era de regras, se transformou devido à pandemia do coronavírus. Até o momento, apenas oito GPs estão confirmados, com a expectativa de que sejam realizados, no máximo, 18, incluindo a entrada de circuitos europeus em que a F1 jamais correu, como Algarve, em Portugal, e Mugello, na Itália. Apesar de o número de provas ser menor, a temporada promete ser mais intensa, testando os limites de pilotos e equipes. Somente para começar, serão oito corridas em apenas dez finais de semana. Muito para um esporte que costuma ter dois ou três GPs por mês.

O coronavírus também gerou preocupações com as finanças das equipes, resultando em mudanças no regulamento que coíbem o desenvolvimento dos carros e dos motores. Poucas mudanças serão permitidas ao longo do ano, enquanto os times se preparam para a adoção do teto orçamentário, que estava programado para entrar em vigor em 2022 e foi adiantado também por conta da pandemia.

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2020 com um olho em 2021

Até comprovando o foco na nova geração, a temporada 2020 começa já com uma mudança para 2021 confirmada na Ferrari: Sebastian Vettel fará sua última temporada na Scuderia e vai começar o campeonato com o futuro indefinido. Para o seu lugar, a Scuderia contratou Carlos Sainz. O espanhol fará uma dupla de 24 anos de média com Charles Leclerc ano que vem.

A vaga de Sainz na McLaren também já foi preenchida: Daniel Ricciardo sairá da Renault e será companheiro de Norris no time inglês. Na Mercedes, além de Hamilton, Valtteri Bottas também começa a temporada sem contrato, podendo gerar ainda mais mudanças (e renovação) em 2021.

Quem é quem

  • Max Verstappen/HOL (Red Bull)

    Tem 22 anos, 102 GPs e oito vitórias. Já avisou que tem como objetivo pelo menos ir ao pódio em todas as corridas em 2020.

    Imagem: Lars Baron/Getty Images
  • Charles Leclerc/MON (Ferrari)

    Tem 22 anos, 42 GPs e duas vitórias. Com Vettel de saída em 2021, terá um ano para se estabelecer como nº 1 da Ferrari e aprender com erros do ano passado.

    Imagem: William West/AFP
  • Esteban Ocon/FRA (Renault)

    Tem 23 anos e 50 GPs. O francês sempre enfrentou mais dificuldades financeiras que seus rivais, mas conseguiu voltar ao grid em 2020.

    Imagem: Divulgação/Renault
  • George Russell/ING (Williams)

    Tem 22 anos e 21 GPs. Ligado à Mercedes, é bem cotado por abordagem bem técnica. Quer fazer bonito para ser companheiro de Hamilton em 2021.

    Imagem: William West/AFP
  • Alex Albon/TAI (Red Bull)

    Tem 23 anos e 21 GPs. Correr ao lado de Verstappen não é fácil, mas já mostrou poder de adaptação: ano passado, mudou de time no meio da temporada.

    Imagem: William West/AFP
  • Lando Norris/ING (McLaren)

    Tem 20 anos e 21 GPs. Conhecido como o rei dos memes, Norris já conquistou uma legião de fãs. Agora busca limpar erros do ano de estreia.

    Imagem: William West/AFP
  • Carlos Sainz/ESP (McLaren)

    Tem 25 anos e 102 GPs. Foi contratado pela Ferrari para substituir Vettel após fazer campeonato forte em 2019. Agora estará sob os holofotes na expectativa para 2021.

    Imagem: William West/AFP

O veterano que pode virar maior da história...

Os sete títulos mundiais de Michael Schumacher não são a única marca que Lewis Hamilton pode atingir nesta temporada da Fórmula 1. Ele tem a chance de superar outros dois recordes importantes: está a oito vitórias de se tornar o maior vencedor da história da categoria e a cinco de ser o piloto com mais pódios nos 70 anos da categoria. Chegando nestas marcas, estará superando o mesmo Schumacher. Hamilton já é o piloto com mais poles (88, 20 a mais que o segundo colocado na lista, o próprio heptacampeão alemão) na história.

A equipe Mercedes também pode quebrar uma marca importante: com o título de construtores, se torna a única na história a conseguir sete campeonatos seguidos. No momento, o time está empatado justamente com a Ferrari de Schumacher, com seis.

Divulgação/Ferrari

...e a geração simulador

Os videogames de corrida existem há décadas, mas o que se tem hoje é tão perto do real que acaba sendo usado por pilotos como forma de treinamento — o da Ferrari é a máquina acima, mais parecida, por fora, com um módulo lunar do que com um carro de corrida. Os simuladores, mesmo os caseiros, acabam sendo uma arma importante da nova geração de pilotos, acostumada a passar horas diante da tela. Com isso, eles chegam não apenas com o traçado memorizado, mas também com noções de como acertar seus carros, já que isso é parte importante dos games.

Prova disso foi como os pilotos levaram a sério a disputa das corridas virtuais que a F1 promoveu para substituir os GPs que não foram realizados devido à pandemia. Usando o jogo F1 2019, eles se reuniam online para treinarem por oito, nove horas por dia para disputar as corridas. Mas não eram todos os pilotos do grid e, sim, justamente eles: Leclerc, Albon, Norris e Russell, que acabou sendo o campeão da temporada. Verstappen ficou de fora da disputa da F1 por não gostar do jogo oficial da categoria, mas também participou de um sem-número de eventos virtuais.

Passar horas correndo nos simuladores acaba sendo um bom treino em um esporte em que o tempo de pista é cada vez mais limitado devido aos custos. Então, enquanto Hamilton, que prefere se desligar totalmente do mundo da F-1 quando não tem compromissos ligados ao esporte, está desenhando sua nova coleção de moda ou focando, como tem feito ultimamente, no ativismo contra o racismo, "nerds" dos games — especialmente Verstappen e Norris — se reúnem com suas equipes online para disputar, por vezes, corridas de endurance que duram 24h. E eles garantem que aprendem muita coisa do lado técnico enquanto se divertem.

Eva Plerier/Reuters

Pouca idade, carreiras sólidas

Não é de hoje que os pilotos chegam à Fórmula 1 com muitos anos de estrada. O próprio Lewis Hamilton começou a competir com oito anos. Mesmo em décadas anteriores, isso era normal. A diferença é o nível de profissionalismo que tomou conta do kartismo, a porta de entrada da grande maioria dos pilotos.

O que antes era mais romântico, como a história de Hamilton, cujo pai comprava karts de segunda mão e era seu mecânico nos primeiros anos, carregando todo o equipamento no carro da família, hoje é bem diferente. A maneira como a carreira de Max Verstappen foi gerida pelo pai, Jos, ex-piloto, é vista como fundamental nessa mudança. Agora, desde cedo, os kartistas trabalham com treinadores, têm acompanhamento físico e psicológico, e, inclusive, são treinados para lidar com a mídia. Como resultado, têm chegado à Fórmula 1 muito mais prontos.

O próprio Verstappen é um bom exemplo, tendo vencido logo sua primeira corrida com a Red Bull, em 2016, quando tinha pouco mais de 20 GPs nas costas. Leclerc foi outro que só não venceu sua segunda corrida pela Ferrari por um problema de motor. E Alex Albon estreou em 2019 sem qualquer experiência em carros de F-1 e, após meia temporada, já estava em um time grande.

AFP PHOTO / Andrej ISAKOVIC  AFP PHOTO / Andrej ISAKOVIC

Agressividade calculada

A geração de Verstappen, Leclerc & Cia. já vem treinada para agir no limite do que é permitido pelos comissários, aqueles que decidem sobre as punições dos pilotos. Todo esse esquema de punições passou a contar com um sistema que compara lances de outras corridas para auxiliar na decisão, num processo que que tornou mais restritivo devido à preocupação com a segurança, mas ao mesmo tempo é bem mais "jurídico" que antigamente. Em outras palavras, eles correm "com o regulamento debaixo do braço".

Esses pilotos já estão acostumados com isso desde que saíram do kart, e usam as regras até o limite. "Parece que essa nova geração escapa muito mais das punições pela maneira como eles movimentam seus carros, na comparação com os pilotos mais experientes", já notou Hamilton.

Eles também foram criados com as pistas tendo áreas de escape, em sua maioria, asfaltadas, o que "convida" o piloto a ser mais agressivo, já que não ficará na brita. Essas novas áreas de escape foram alteradas justamente para aumentar a segurança, e são um grande ponto de discussão da F-1 atual.

Reuters/Hamad I Mohammed

Experiência com pneus

Uma das grandes dificuldades para os pilotos é extrair o máximo de performance dos pneus, especialmente de 2011 para cá na Fórmula 1, quando a categoria passou a contar com os pneus Pirelli que, por determinação da Federação Internacional, são de alta degradação. E a FIA fez mais: colocou os mesmos Pirelli nas categorias de acesso à F-1. Com isso, os pilotos jovens já chegam adaptados a compostos que funcionam bem apenas em uma janela pequena, e são projetados para não durarem.

É fato que uma das grandes qualidades de Hamilton é justamente na leitura dos pneus Pirelli. Até Sebastian Vettel já brincou dizendo que Lewis "cuida dos pneus como se estivesse fazendo massagem em uma mulher", mas o que se tem observado também é que quem chega das categorias de base não precisa passar pela fase de adaptação pela qual o próprio hexacampeão passou quando estes compostos foram introduzidos.

AFP, Reuters e Getty Images AFP, Reuters e Getty Images

Quem é amigo de quem?

Não que estejam todos unidos contra Hamilton. Muito pelo contrário. Sim, o inglês é o piloto a ser batido depois de tantos anos de domínio, mas também há rixas que vêm desde o kart entre os pilotos da nova geração. E amizades também.

O trio britânico

Russell e Albon se conhecem desde os tempos de kart. Embora Albon corra pela Tailândia oficialmente, pois tem dupla nacionalidade, toda sua carreira foi feita na Inglaterra, onde nasceu. E ele sempre esteve um passo à frente de Russell no kart. Os dois voltariam a se encontrar em 2015, no Europeu de F3, numa temporada que também contou com Leclerc. E foram subindo juntos, encontrando Norris, mais novo que a dupla, na F-2. O título acabou sendo uma disputa entre os 3 amigos, e Russell saiu como campeão. Dos três, Albon teve mais enroscos com Verstappen na época de kart, e Norris é o mais próximo do holandês.

Verstappen já teve disputas na pista, e bate-bocas fora delas, com praticamente todos os pilotos da nova geração, especialmente na época do kart, quando Leclerc era um de seus grandes rivais — e uma das vítimas favoritas. Ele acabou fazendo só uma temporada na base, e perdeu uma disputa ferrenha com Ocon. Os dois não se bicam até hoje.

Os mosqueteiros

Leclerc e Ocon são metade do quarteto que ficou conhecido como "os quatro mosqueteiros" na época de kart, juntamente de Pierre Gasly, hoje na AlphaTauri, e Anthoine Hubert, morto em acidente na F-2 ano passado. Um pouco mais velho que Leclerc, Ocon teve uma trajetória diferente do monegasco nos anos seguintes, sempre enfrentando mais dificuldades financeiras por não ter a carreira tão bem planejada, mas eles mantiveram a amizade.

Reprodução Reprodução

A nova geração. De fãs

Os números de audiência da TV Globo desafiam aqueles que, volta e meia, aparecem para dizer que "a F-1 acabou no Brasil depois da morte do Senna". Segundo dados do Painel Nacional de Televisão (PNT), 98 milhões de pessoas viram as corridas ao longo de 2019, o que representa um aumento de 13% em relação ao ano passado — o maior em oito anos, quando o país tinha dois representantes no grid, Felipe Massa e Bruno Senna. Curiosamente, esse crescimento é constante desde 2018, primeiro ano em que a F-1 foi transmitida sem um brasileiro no grid.

Tal fato no Brasil pode ser creditado a dois fatores: houve muito fã das antigas que voltou, empolgado com a geração de Verstappen e Leclerc, e muitos jovens, trazidos pela série da Netflix, "Dirigir para Viver", que está em sua segunda temporada e mostra os bastidores da categoria ou pelos memes de Norris.

Tudo isso passa, ainda, pela estratégia da detentora dos direitos comerciais da F-1, a Liberty Media, que colocou a categoria no mapa das mídias digitais, negligenciadas pelo antigo dono, Bernie Ecclestone. E 2020 terá novidades nesse sentido, com a estreia de um programa ao vivo no YouTube ao final de cada prova.

No Brasil, a chegada de um público diferente da Fórmula 1 é mais sentido no Twitter, que viu o surgimento de uma enxurrada de perfis geradores de memes e de shitposting, publicações irônicas e, por vezes, agressivas, que servem para gerar discussões nas mídias sociais. Muitos destes perfis usam depressão no nome, e seus donos, na maioria adolescentes, não sabem muito bem dizer o porquê.

"Nunca usei o termo 'deprê' para não desrespeitar as pessoas que lutam com a depressão, mas acredito que o termo tenha surgido como uma alusão ao fato dos perfis 'sofrerem' quando seus pilotos preferidos não se saem tão bem", acredita Alessandra Lima, administradora de um dos perfis mais famosos de Verstappen, o Holandês Voador da Red.

O fato é que o número desse tipo de perfil aumentou tanto nos últimos dois anos que vem sendo difícil cavar seu espaço. E encontrar um nome. As maiores equipes já têm seus representantes, como a Ferrari da Decepção; os principais pilotos também (Vespa, CharlinLeclerc, Lenda Norris, e muitos outros), e até os chefes de equipe (Totó Volff, Don Binotto, Christian Horner Irônico) ou times do meio do pelotão (DepreHaas, Deprê Racing Point, e por aí vai). Tem até o Estagiário da Liberty Media e o Massinha Desaposentado.

Seja qual for o nome, é nos finais de semana de corrida que a turma "se reúne" com o intuito de falar do esporte que gosta, e ao mesmo tempo dar aquela alfinetada, seja em grupos de WhatsApp, seja no Twitter. "Em um meio de competição, acaba tendo muita rivalidade, intriga, e tem um perfil ou outro que às vezes passa dos limites. Já houve, sim, alguns blocks na comunidade porque alguns perfis simplesmente enchem o saco. Mas na parte boa da rivalidade, há brincadeiras e muita diversão na zoeira dos perfis do Verstappen contra os infinitos perfis do Leclerc", conta Daniel Martins, de 19 anos, administrador do Honda da Decepção. Afinal, nas pistas e fora delas, a nova geração está mundo a cara da F-1.

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