De olho nelas

Francielle pede mais carinho com jogadoras do passado e relata saga de esposa Andressa Alves rumo à Copa

Carolina Alberti e Paulo Favero Do UOL, em São Paulo EMPICS Sport - PA Images via Getty Images

Francielle já pendurou as chuteiras, mas sabe como poucas o tamanho do indescritível frio na barriga causado pela camisa da seleção brasileira. De família boleira, a paulista começou sua relação com o futebol nas ruas, e aos 7 anos pisou pela primeira vez nas quadras de futsal de Itanhaém, localizada na Baixada Santista (SP).

Com a cabeça boa, que não herdou do "doidinho" pai - que jogou bola, mas não se profissionalizou - Fran migrou para os gramados aos 12 anos e, séria, fez história. No Brasil, foram dez anos defendendo as cores do Santos, além de passagens por São José e Corinthians Audax.

Pelo Brasil, conquistou uma medalha de prata nas Olimpíadas de Pequim 2008 - que, para ela, deveria ter sido dourada - e disputou a Copa do Mundo de 2011. "Eu realizei tudo em termos de seleção, não veio nenhum título mundial, mas veio uma medalha olímpica, e me orgulho muito disso", disse a ex-meia em entrevista ao UOL.

Começando a carreira nas primeiras voltas dos anos 2000, Fran enfrentou - como muitas de sua geração - falta de estrutura e falas preconceituosas. Anos depois, a agora comentarista Francielle Manoel Alberto celebra as melhorias, desfrutadas, por exemplo, pela esposa Andressa Alves, mas pede reconhecimento para as primeiras guerreiras da seleção canarinha.

EMPICS Sport - PA Images via Getty Images

Acho que só a Formiga teve despedida na seleção, então eu acho que poderia ser melhor, ter reconhecido muito mais do que simplesmente [ter] uma foto e pronto"

Francielle, ex-jogadora da seleção brasileira

Treino com os meninos e depressão

Como muitas, Francielle começou sua história jogando com os meninos. O futsal, porém, trouxe uma grata surpresa para a então jovem paulista, pois "já tinha algumas meninas que treinavam, não eram tantas, mas era um grupo bem legal, e eu me dedicava demais".

Para aprimorar os reflexos, porém, Fran treinava também com os meninos "para poder melhorar, principalmente a parte mental, o raciocínio rápido. Eu tinha que raciocinar muito rápido, não podia ficar muito com a bola, e isso fez eu me tornar uma jogadora bem técnica".

A meio-campista trocou as quadras pelos gramados aos 12 anos, e aos 14 já estava na seleção brasileira. Como não havia apenas uma categoria de base na seleção feminina, a adolescente foi direto para o sub-19.

"Foi bom por um lado, porque eu tive de amadurecer muito rápido. Com 14 anos eu já jogava com meninas de 20, 23 anos. Mas, por outro, você acaba queimando muitas etapas, pula o processo", explicou Francielle.

Daí em diante, tudo aconteceu muito rápido na carreira da meio-campista. Por clubes, foram quatro títulos de Libertadores, três Campeonatos Paulistas, duas Copas do Brasil, uma WSP-USA, uma Copa da Islândia, uma Copa da Noruega e um Mundial Interclubes. A despedida dos gramados, porém, aconteceu de forma inesperada.

"Eu parei de jogar do nada. Não me planejei ou me programei. Eu não estava bem comigo, estava entrando em depressão. Minha saúde mental realmente não estava boa", contou Fran.

A brasileira estava no futebol norueguês e, mesmo com algumas compatriotas no time, não estava bem consigo mesma. Ela chegou ao clube em 2017 e, no meio de 2018, "não estava aguentando mais". Chutou a renovação de contrato e pendurou as chuteiras.

"Eu estava jogando por obrigação, e futebol sempre foi a minha vida. A partir do momento que começou a mudar essa chavinha na minha cabeça, eu falei 'tá errado, não quero mais'. [...] Eu não me sentia feliz. Ia treinar mas não estava feliz, não estava conseguindo ajudar a equipe como fazia antes. Não queria ficar longe da minha família, da Andressa [Alves], e foi quando eu decidi parar", explicou.

Arquivo Pessoal Arquivo Pessoal

Foram 14 anos servindo a seleção. Foi uma trajetória complicada, porque naquela época não tinha a visibilidade que as meninas estão tendo hoje, e que bom que lá atrás alguém passou por todo esse processo, para que o resultado estivesse do jeito que está hoje, embora ainda sempre dê para melhorar"

Francielle

Arquivo Pessoal

Futebol feminino pelo olhar de quem jogou

Fran deixou as quatro linhas, mas segue com os olhos atentos no futebol feminino. Comentarista do Paulistão Feminino na TNT, ela afirmou que as lutas da sua geração trouxeram mudanças, mas que a caminhada ainda é longa.

"Veio mudança, e acho que hoje já é muito significativa. É claro que em termos de futebol feminino no Brasil, questão de calendário, algumas competições, melhorou, mas dá para ser melhor", comentou Fran.

"Não tem como você vender um jogo, por exemplo, de São Paulo e Palmeiras, 10h da manhã, com um jogo do Palmeiras masculino no mesmo horário. Como os torcedores vão deixar de ir pro futebol masculino, que é o principal, para assistir ao feminino? A gente teve essa fase do Brasileirão, Corinthians e Cruzeiro jogando numa segunda-feira, às 18h30. Falta esse cuidado. Às vezes você dá cinco passos pra frente, mas aí dá alguns passos pra trás e a gente fica quase que no mesmo lugar", completou.

No que diz respeito à seleção principal, a evolução é maior: "a gente vê as meninas com roupa própria, voo fretado, ir 20 dias antes para se preparar, e antes não tinha nada disso. A gente ia em cima da hora, tinha fuso horário, não sabia de premiação, não tinha uniforme".

A melhora também ultrapassa as quatro linhas. Fran tem um relacionamento com Andressa Alves - atacante da seleção brasileira na Copa da Austrália e Nova Zelândia - há 11 anos e se surpreendeu com a recepção positiva da patrocinadora da esposa ao assumirem o relacionamento.

"Antigamente a gente tinha muita preocupação em se assumir, pensando no que os outros iam pensar. A Andressa é patrocinada pela Nike, e a gente falava assim: 'amor, será que vai te prejudicar?'. E foi uma preocupação à toa, porque já estava mudando o pensamento, e eles começaram a usar essa questão até para eles crescerem. Enviaram até presente para a gente andar combinadinha, então, foi um alívio", comentou Fran.

Foi um passo muito grande. Ninguém é obrigado a aceitar a opção sexual de ninguém, a gente pede apenas que respeite, que todo mundo tenha o direito de ser o que quiser, de ser feliz da forma que quiser, desde que não invada o espaço do outro"

Francielle

Arquivo Pessoal Arquivo Pessoal

Esposa, incentivadora e torcedora

Fran acompanhou de perto a luta, e emoção, da companheira Andressa Alves até ouvir seu nome na convocação de Pia Sundhage. Aposentada, coube à ex-jogadora manter viva em Andressa a chama da esperança.

Após um ano longe da amarelinha, a então jogadora da Roma foi para a Finalíssima, para os treinos na Granja Comary e, para a emoção de toda a família, para a terceira Copa do Mundo.

"Foi uma luta diária, principalmente psicologicamente, de não deixar a peteca cair, de continuar crescendo. Não tem nada melhor do que as pessoas verem que você merece, você não precisa ficar falando, você só trabalha", contou Fran.

A convocação para a Finalíssima contra a Inglaterra, inclusive, pegou o casal de surpresa. Andressa ganhou uma chance após corte na seleção e não pensou duas vezes, cancelou a viagem com a esposa e reforçou o time de Pia.

"A Pia ligou para a Andressa e perguntou se ela aceitaria uma convocação. A Andressa olhou para mim em choque. Eu falei: 'é a oportunidade que você queria. É o seu momento'. E aí deu tudo certo, ela entrou, fez o gol, colocou uma pulguinha aí atrás da orelha da Pia".

Meses depois, as duas se emocionaram, juntas, com a convocação para o Mundial de 2023.

"Na hora da convocação, estávamos só nós duas aqui. A gente nem quis fazer nada com a nossa família, porque se desse certo, ia ser uma festa linda, se não desse, ela ia ficar bem frustrada. Deu certo, a gente chorou e se abraçou", recordou. E Pia resolveu aumentar a expectativa ao colocar Andressa entre as atacantes, e não meio-campistas.

Passaporte carimbado, chegou a hora da despedida, já que Fran ficará no Brasil. A esposa não pediu a taça, mas deixou seu recado.

Vai. Confia. Você já viu que nada é impossível. Você achou que não estaria [na Copa], e hoje você está. Você viu que tudo pode acontecer. Não vai ser fácil, mas quando tiver difícil, lembra de tudo que você passou. Não sei se você vai jogar, mas você tem que contribuir de alguma maneira, e eu acho que se vocês fizerem tudo certinho, o resultado vai vir"

Francielle

Thais Magalhães/CBF

A última dança de Marta

Além da busca do título inédito, a seleção brasileira verá pela última vez a Rainha Marta em campo em uma edição de Copa do Mundo, e o elenco de Pia está focado em trazer a taça para coroar de uma vez por todas a carreira da camisa 10.

"A Marta está indo para a sua sexta Copa do Mundo, e eu vi várias meninas falando que querem jogar por ela, porque sabem que é a última. A Marta é uma pessoa excepcional, uma atleta fora de série, que sempre se dedicou, e que ela sabe muito bem do papel que tem dentro da seleção, não só dentro de campo, mas principalmente fora", comentou Fran.

Sobraram elogios também ao elenco verde-amarelo: "temos um grupo jovem, com algumas meninas com 22, 23 anos e que estão vivendo o seu melhor momento, então acho que vai ser uma mistura muito boa".

Mas, a mistura é suficiente para levantar a taça? Os últimos jogos deixaram Fran otimista, tanto que ela vê o Brasil em condições de avançar em primeiro do grupo e "chegando até numa semifinal e quem sabe final".

Lars Baron - FIFA/FIFA via Getty Images

Reconhecimento por quem fez história

Acompanhando de longe a melhoria do futebol feminino no Brasil, Fran pede reconhecimento por quem lutou lá atrás.

"Acho que falta [reconhecimento]. A gente viu a despedida da Formiga, que deixou um pouco a desejar. A Formiga ainda se lesionou e quase não entrou. A gente tem uma Cristiane, que estava à disposição da seleção, mas não não vai [para a Copa]. Ela merecia uma despedida digna, para coroar tudo que ela fez pelo futebol brasileiro e que ainda faz pelo Santos", disse.

Segundo ela, porém, ainda dá tempo de homenagear as guerreiras do passado: "Sempre dá tempo, basta querer, ter boa vontade, e se organizar direitinho dá para fazer. E se não fez com essas atletas do passado, que se possa fazer com essas que virão".

+ COPA FEMININA

Aitor Alcalde Colomer/Getty Images

Antonia, da seleção, vem de família boleira: 'em casa as mulheres que eram boas'

Ler mais
Marc Atkins/Getty Images

Lauren viajava mil quilômetros por semana na garupa de uma moto por futebol

Ler mais
Thais Magalhães/CBF

O crescimento do futebol feminino no Brasil e a luta das mulheres por melhores condições

Ler mais
Roland Krivec/DeFodi Images via Getty Images

Como essência questionadora transformou Ariadina em Ary Borges na seleção feminina

Ler mais
Topo