Ameaças ao Hexa: França

Atual campeã chega ao Qatar como favorita, mas enfrenta turbulência e lesões em série

Thiago Arantes Colaboração para o UOL, em Barcelona (ESP) James Williamson - AMA/Getty Images

Uma equipe vencedora, com um técnico experiente e jogadores que são protagonistas em equipes importantes do futebol mundial. A França tem vários dos ingredientes de uma favorita ao título na Copa do Mundo. Mas a atual campeã chegará ao Qatar com muitos problemas, principalmente de lesões. A começar por Ngolo Kanté e Paul Pogba, titulares no título de 2018, que nem foram convocados.

Após a convocação, o técnico Didier Deschamps ainda precisou fazer outros três cortes: o zagueiro Presnel Kimpembe, o meia Christopher Nkunku e, principalmente, o atacante Karim Benzema, que chegava ao Mundial como melhor jogador do mundo da temporada 2021/22.

Para piorar, o resultado em campo nos últimos meses não ajuda. Neste ano, os franceses entraram em campo seis vezes pela Liga das Nações -competição que reúne as seleções europeias nas Datas Fifa-, e venceram apenas uma vez. Foram dois empates e três derrotas, duas delas para a Dinamarca, rival no Grupo D do Mundial.

"Foi um choque, sem dúvidas. A seleção francesa está em um momento de reflexão. Pelo elenco que eles têm, não era para essas derrotas terem acontecido", afirma Juninho Pernambucano, ídolo do Lyon, que vive na França e acompanha de perto o futebol do país. "Mistura o Lloris, que talvez esteja em sua última Copa, com jovens como Lucas e Theo Hernández, Upamecano, Kimpembe. Tem um meio-campo muito forte, também. Na frente, tem muita força: além de Mbappé, Benzema e Griezmann, você ainda tem jogadores muito rápidos pelas pontas, como Diaby, Koman, Dembele", comentou Juninho ao UOL, em setembro. As lesões, aos poucos, foram minando o time francês.

Essa força do elenco tem sido colocada à prova recentemente. Nos amistosos de setembro, a seleção chegou a ter 12 desfalques. Na reta final de preparação, os problemas só pioraram. Christopher Nkunku, por exemplo, lesionou-se já durante as atividades da equipe convocada; Benzema foi cortado após o primeiro treino em solo catari.

"Se falarmos de potencial e de quantidade de bons jogadores, a França é a número 1. Ultimamente, esse potencial não tem se transformado em resultados. Só que a França sempre tem uma coisa: quando chega com bons resultados à Copa do Mundo, joga mal; e quando chega cheia de problemas, como agora, joga bem", explica Florent Torchut, jornalista da France Football.

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Como joga a França?

Ainda em busca de um sistema

O técnico Didier Deschamps vai à Copa do Mundo sem ter um esquema tático definido para a seleção francesa. Não se trata propriamente de uma dúvida, mas de estratégia: ele costuma escolher o sistema de jogo em função do adversário. Na Eurocopa de 2021, foram três desenhos diferentes em quatro jogos.

A formação usada nos duelos pré-Mundial foi a 3-5-2. O sistema com três zagueiros centrais tem sido muito frequente no futebol europeu --Kylian Mbappé, maior estrela da equipe, joga assim no Paris Saint-Germain sob o comando de Christophe Galtier.

Na seleção francesa, foi a forma que Deschamps encontrou para jogar com Mbappé e Benzema, sem que nenhum deles precise se deslocar para as pontas. O ataque pelos lados do campo é feito pelos alas, que podem ser laterais de origem ou meias abertos, como no caso de Kingsley Coman. Com o corte de Benzema e possível substituição por Olivier Giroud, o treinador terá novos ajustes a fazer.

"O Deschamps sabe que a diferença de qualidade dentro elenco é pequena, então ele sempre prepara o time para o próximo jogo, ele tem variações", explica Juninho Pernambucano. Uma dessas variações é o 4-4-2, mantendo uma dupla no ataque, mas abrindo a possibilidade de ter jogadores mais ofensivos pelos lados do campo, como Dembelé.

Entre tantas mudanças e variações, é complicado prever qual seria o time base dos franceses para a estreia no Mundial. E tantas dúvidas podem atrapalhar até mesmo os jogadores, como explica Cláudio Caçapa, brasileiro que fez carreira na França e hoje é auxiliar técnico do Lyon. "O fato de não ter um time definido atrapalha. São muitas mudanças de posição, muitas funções diferentes para alguns jogadores, e isso é algo preocupante", afirma.

Para o jornalista Florent Torchut, a seleção francesa ainda não se acostumou ao novo esquema tático. "Às vezes parece que os jogadores não entendem muito bem o seu papel em campo. A posição de ala não é parte do DNA do futebol francês; tem hora que eles não sabem se é pra subir, ou quando têm que voltar".

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Os convocados de Deschamps

Didier Deschamps tem enfrentado muitos problemas de lesões na seleção francesa e já precisou fazer três cortes pós-convocação.

Goleiros: Alphonse Areola, Hugo Lloris e Steve Mandanda;

Defensores: Lucas Hernandez, Theo Hernandez, Axel Disasi, Ibrahima Konaté, Jules Koundé, Benjamin Pavard, William Saliba, Dayot Upamecano e Raphael Varane;

Meias: Eduardo Camavinga, Youssouf Fofana, Mattéo Guendouzi, Adrien Rabiot, Aurélien Tchouaméni e Jordan Veretout;

Atacantes: Kingsley Coman, Ousmane Dembélé, Olivier Giroud, Antoine Griezmann, Kylian Mbappé, Marcus Thuram e Randal Kolo Muani.

Pontos fortes

Qualidade e quantidade

Quantidade nem sempre é qualidade. Mas, nos últimos anos, o futebol francês tem sido capaz de produzir ambos. Os jogadores do país estão espalhados pelas principais ligas da Europa e, mais do que isso, ocupam posições de protagonismo e dão ao técnico Didier Deschamps um leque de possibilidades muito amplo para convocar e escalar a equipe.

Encontrar exemplos deste "problema" do treinador não é difícil. A posição de zagueiro é um exemplo: ele tem como opções Raphäel Varane (Manchester United), Jules Koundé (Barcelona), William Saliba (Arsenal), Ibrahima Konaté (Liverpool), Dayot Upamecano (Bayern), Lucas Hernández (Bayern) e Axel Disasi (Monaco). E ainda poderiam ser mais: Wesley Fofana (Chelsea) e Presnel Kimpembe (PSG) não jogam a Copa devido a lesões.

Essa quantidade de jogadores de alto nível é o que diferencia a França de qualquer outra seleção europeia, segundo Juninho Pernambucano. "São muitos jogadores bons. Hoje, não tem outro país no mundo com um elenco tão forte. Dá pra fazer uma seleção até com os jogadores que não foram convocados".

Os números confirmam essa sensação de que há muitos jogadores franceses espalhados pelas grandes ligas europeias. O país é o líder em estrangeiros na Premier League (31), na Bundesliga (38) e no Campeonato Italiano (34). Apenas na Liga Espanhola os franceses (19 jogadores) ainda são superados por argentinos (31) e brasileiros (22).

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Jogadores franceses nas quatro maiores ligas do mundo

Catherine Ivill/Getty Images

Premier League (Inglaterra)

31 jogadores (1º país com mais estrangeiros)

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Bundesliga (Alemanha)

38 jogadores (1º país com mais estrangeiros)

Visionhaus/VISIONHAUS

La Liga (Espanha)

19 jogadores (3º país com mais estrangeiros)

NurPhoto/NurPhoto via Getty Images

Serie A (Itália)

34 jogadores (1º país com mais estrangeiros)

Ponto fraco

Um vestiário dividido

A quantidade de jogadores de alto nível e de opções de Deschamps para escalar a seleção francesa é diretamente proporcional ao maior desafio do treinador campeão do mundo: gerenciar as relações entre as estrelas do elenco. Egos inflados, antigas rivalidades e até uma disputa por dinheiro criaram um ambiente tenso entre os Bleus.

Esse ambiente ruim não chega a ser novidade. Em 2010, a França caiu na primeira fase do Mundial em meio a um motim de jogadores contra o então treinador Raymond Domenech. No Brasil, em 2014, foi a vez das famílias dos jogadores reclamarem do hotel escolhido para recebê-las no Rio. Recentemente, o episódio mais famoso foi o de Karim Benzema, excluído da seleção durante 6 anos, por envolvimento em um esquema de chantagem contra o colega Mathieu Valbuena. O atacante do Real Madrid se reconciliou com o elenco, mas acabou cortado às vésperas do início do Mundial.

Mbappé também provocou mal-estar em setembro, antes dos últimos amistosos de preparação, ao recusar-se a participar de uma sessão de fotos com os colegas. O astro do PSG alegou que não estava recebendo direitos de imagem na seleção - nenhum dos colegas recebia, e todos participaram do evento.

"O maior problema da França pode ser não saber gerenciar o excesso de sucesso. Quando não conseguem gerenciar bem isso, se o grupo não tiver uma relação limpa, se os jogadores não chegarem com o coração aberto, isso pode ser complicado", afirma Juninho Pernambucano. "Os jogadores vão chegar a esta Copa com objetivos diferentes. Alguns já foram campeões, outros, não. Gerenciar isso é muito importante", acrescenta.

Em meio a tantos desafios para unir o elenco, uma notícia insólita deixou o ambiente ainda pior. Em uma série de vídeos publicados em suas redes sociais, Mathias Pogba disse que seu irmão, Paul Pogba, contratou um feiticeiro para prejudicar a carreira de Mbappé. O jogador do PSG afirmou, dias depois, que falou com o colega de seleção e que não acredita nas acusações. A história acabou perdendo força com a confirmação da ausência de Pogba na Copa do Mundo devido a uma lesão.

FRANCK FIFE / AFP

O craque

Kylian Mbappé

Pedala, ajeita para a direita, ajeita para a esquerda: Kylian Mbappé! Corrida, elástico, caneta, chute: Kylian Mbappé!

Os versos de "Ramenez la coupe à la maison" ("Tragam a Copa para casa") música que virou simbolo do título mundial de 2018, mostram um pouco do que é Kylian Mbappé para os franceses: uma espécie de super-herói, capaz de correr, driblar e chutar com extrema qualidade.

Saindo da canção para os gramados, há quem concorde. "Para mim, hoje, ele é o melhor do mundo. É um cara que pode, sozinho, fazer a diferença. Em uma bola, jogando no espaço ou em um contra-ataque, ele pode definir o jogo. Ninguém consegue acompanhar ele. Se colocar na frente, não tem zagueiro no mundo que pegue", afirma Cláudio Caçapa.

Nos últimos quatro anos, o atacante do PSG cresceu ainda mais. Tornou-se o jogador mais bem pago do mundo, negou uma oferta milionária do Real Madrid, passou a ter influência em decisões estratégicas do clube e da seleção. Fatos que colocam sobre ele uma pressão comparável à de estrelas como Messi, Neymar ou Cristiano Ronaldo em Copas passadas.

Na Rússia, Mbappé tinha 19 anos e era o jovem que batia recordes de precocidade, entrando para a história e tendo feitos superados apenas por Pelé. No Qatar, ele chegará como candidato a craque, a artilheiro, e com a missão de acabar com uma longa maldição das Copas, que já dura 60 anos: a de que a seleção campeã jamais conquista o Mundial seguinte.

Adam Nurkiewicz/Getty Images

A promessa

Aurélien Tchouaméni

O volante do Real Madrid é um caso raro: ele respira futebol, mesmo quando não está treinando ou em campo pelo clube espanhol ou a seleção francesa. Aos 22 anos, Tchouaméni é um completo apaixonado pelo esporte e assiste a todos os jogos que pode, principalmente da Premier League, do Campeonato Francês e da Liga Espanhola.

Essa dedicação por assistir o esporte deu a ele um conhecimento amplo do estilo de jogo de vários jogadores, que se tornaram referências. "As pessoas me comparam com Pogba, pelo físico. E eu olho muito para a forma como ele conduz a bola. Mas também olho para o jeito que Kanté recupera a bola, a forma como Xavi, Iniesta e Fàbregas usavam a bola. Eu adoro ver jogos, gosto muito de ver o Kevin de Bruyne", disse em entrevista ao site da Ligue 1, quando ainda defendia o Monaco.

Em campo, o meio-campista é uma mistura de estilos, e exerce funções defensivas e ofensivas. Comprado pelo Real Madrid por 80 milhões de euros, ele adaptou-se rapidamente ao clube e ganhou espaço com a saída de Casemiro, que abriu uma vaga a mais para o concorrido setor no time de Carlo Ancelotti.

O treinador italiano já elogiou o jovem francês mais de uma vez. "Nós sabíamos o que ele poderia nos dar, por isso o clube pagou tanto por ele", resumiu. Na seleção francesa, Tchouaméni terá a grande chance de brilhar na Copa do Mundo. Com as ausências de Kanté e Pogba, ambos lesionados, ele é uma das principais opções de Deschamps para o meio-campo.

FRANCK FIFE / AFP FRANCK FIFE / AFP

O que eles dizem sobre o Brasil

Por José Barroso, do L'Equipe

"Aqui na França, vemos o Brasil muito bem, melhor do que há 4 anos. O time parece mais equilibrado, e Tite tem mais opções, o que é muito importante. Antes parecia que em algumas posições o time era mais fraco, e que isso poderia ser problemático em caso de lesões ou com a ausência de algum jogador, como aconteceu em 2018.

Hoje é um grupo mais completo, e a sensação que dá é muito boa. E isso vai além dos resultados. No papel, é o favorito número 1. Não tem grandes problemas, e está muito bem fisicamente, como no caso de Neymar. Os líderes da seleção estão em grande momento. Não vejo um grande ponto fraco.

Sempre há a dúvida sobre a falta de jogos contra os europeus. Sei que também é difícil jogar no Equador ou no Chile, mas são quatro anos com poucos jogos realmente grandes. Essa é a maior dúvida que fica, mas é verdade que a maioria dos jogadores está na Europa, e eles já estão acostumados aos estilos de jogo do futebol europeu.

Há 4 anos o foco estava na lesão de Neymar e, depois, em tudo o que ele fazia durante a Copa. E isso era um problema. Foi algo parecido com Zidane em 2002, quando ele também teve uma lesão. É muito difícil que a equipe fique tranquila com uma situação assim. Agora, não existe esse problema.

Para nós, na França, chama muito a atenção esse novo grupo de jogadores, essas caras novas: Raphinha, Paquetá, Vinícius... São jogadores que nunca disputaram uma Copa do Mundo, e há muita expectativa. É uma pergunta que nós nos fazemos: como esses jogadores vão desempenhar no mais alto nível?

Antes, eu achava que a França era a maior favorita, com o Brasil logo atrás, e todos os demais muito distantes dos dois. Mas com todas as lesões da França, para mim o Brasil passou a ser o favorito. É a equipe mais completa, tem uma força e uma solidez coletiva, tem o fator individual com Neymar.

Em nível individual e coletivo, a seleção de hoje tem mais opções. Mais do que havia em 2018, e isso pode fazer a diferença em um torneio como a Copa, em que sempre há lesões, jogadores suspensos. É importante ter um plano B, saber mudar durante o jogo e ter peças para isso. Há 4 anos, Tite não tinha esse plano B. Hoje, ele tem."

Franck Fife/AFP Franck Fife/AFP

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