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Futebol Bandido #2 relembra João Havelange e reflete se corrupção na Fifa tem origem brasileira

Do UOL Esporte Em São Paulo

O UOL escalou seu time de jornalistas especialistas na cobertura da corrupção no futebol para o podcast Futebol Bandido. Responsável pela denúncia da máfia da loteria esportiva nos anos 80, o blogueiro Juca Kfouri comanda o debate, com ajuda dos premiados repórteres Jamil Chade e Rodrigo Mattos.

O trio oferece nesta temporada bastidores de escândalos nacionais e internacionais, relembram investigações jornalísticas famosas e dissecam a personalidade de cartolas polêmicos. Dentre os episódios, as bizarrices na organização da Copa de 2014, a marca brasileira na corrupção na Fifa com João Havelange, os contratos obscuros da seleção, contravenções envolvendo craques como Messi e Neymar, chegando até as folclóricas viradas de mesa.

Podcasts são programas de áudio que podem ser ouvidos a qualquer hora e lugar ?no computador, smartphone ou em outro aparelho com conexão à internet. Os podcasts do UOL estão disponíveis em uol.com.br/podcasts e em todas as plataformas de distribuição. Você pode ouvir Futebol Bandido, por exemplo, no Spotify, na Apple Podcasts e no Youtube. Além disso, o UOL Esporte montou, também, uma versão em texto da apuração do trio, para que você possa consumir a reportagem da maneira que preferir.

Depois de conhecer a trajetória polêmica de Ricardo Teixeira no primeiro capítulo (que você pode ouvir ou ler aqui), no segundo (que você pode ouvir ou ler a versão em texto) o podcast reflete sobre a influência brasileira na corrupção da Fifa. Com vocês, casos e bastidores que envolvem João Havelange.

Clique para ouvir Futebol Bandido #2

Arte/UOL

Episódio #1: Quem é Ricardo Teixeira?

Por trás dos anos do tetra e do penta, Ricardo Teixeira construiu uma história na CBF repleta de pontos obscuros. Alçado ao poder em 1989 por ser genro do ex-presidente da Fifa João Havelange, aquele cartola que nem gostava tanto de futebol surfou na onda de sucesso da seleção. Mas a cobiça desenfreada enfraqueceu sua longevidade. Teixeira sobreviveu a uma CPI, mas em 2012 foi obrigado a sair de cena em razão de investigações internacionais.

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Corrupção no esporte não é coisa de brasileiro. Não é exclusividade nossa. Mas lá na Fifa, a bem da verdade, a longa história de malfeitos tem uma assinatura verde-amarela, uma assinatura que saiu da caneta de João Havelange

Abertura do segundo episódio de Futebol Bandido

Ian Waldie / Reuters

Uma Fifa global e obscura com Havelange

"O que eu me lembro de quando fui eleito para a CBF, antigamente CBD. O que eu ouvi foi que eu não entendia de futebol. E eu acho que foi a sorte do futebol por não entender. Eu não fui para jogar futebol. Nem ia a vestiário para falar com jogador, nada. Eu fui para administrar", dizia João Havelange.

Ex-atleta da natação, ele foi o primeiro dirigente brasileiro a ganhar notoriedade internacional, graças ao sucesso arrebatador da seleção na "era Pelé", com três títulos mundiais num intervalo de 12 anos. Neste momento, então na presidência da Confederação Brasileira de Desportos, o cartola carioca encaminhou sua candidatura à Fifa.

Havelange chegou ao comando da Fifa em 1974 e transformou a entidade. O brasileiro rompeu fronteiras com o futebol, abraçando nações da África e Ásia na comunidade boleira. O dirigente também conseguiu tornar a Copa do Mundo um produto rentável e milionário, em seis edições sob sua direção.

"Ele teve a felicidade de estar no lugar certo na hora certa. Significa dizer que assumiu a Fifa já com o começo do processo de globalização, aquilo que o canadense Marshall McLuhan chamou de aldeia global. Ele pega a Fifa em um momento em que a Copa do Mundo era transmitida para o planeta todo e, ali, ele tem o descortino do tamanho do negócio que tem nas mãos. E faz deste um excelente negócio para poucos. Para poucos patrocinadores", analisa Juca Kfouri.

Foram nos anos Havelange que a Fifa viu inaugurada a cultura de corrupção em contratos diversos ligados ao jogo. A relação íntima do brasileiro com a agência de marketing esportivo ISL foi o ponto por onde escoaram milhões em propinas e desvios financeiros de várias modalidades.

Com as infrações descortinadas, Havelange chegou ao final da vida desmoralizado, afastado da presidência de honra da Fifa. O dirigente morreu aos 100 anos em 2016 em meio à Olimpíada no Rio de Janeiro, mas sem qualquer louvor por parte do Comitê Olímpico, órgão do qual também foi membro atuante por muito tempo.

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Jorge Araújo/Folhapress

Como Havelange consolidou poder contra europeus

Durante o episódio de Futebol Bandido, o blogueiro Rodrigo Mattos cita como João Havelange conseguiu consolidar seu poder na presidência da Fifa, mesmo inicialmente com o antagonismo dos cartolas europeus, que até então sempre haviam dominado a entidade.

Foi principalmente levando o futebol para nações da África, então excluídas da comunidade do futebol. Eram países que passariam a ter direito a voto dentro da entidade, engrossando a base política do brasileiro.

"A troca de favores com dirigentes, no caso com federações nacionais periféricas, para combater a Europa. Ele promete um monte de benesses, e assim consegue derrubar a hegemonia europeia na década de 70 no poder na Fifa", afirmou Mattos.

Getty Images Getty Images

Transformando a Copa em máquina de fazer dinheiro

O episódio de Futebol Bandido resgata uma entrevista histórica de João Havelange, em que o cartola fala do crescimento de lucro da entidade a cada edição da Copa do Mundo. "Na Copa do Mundo da Argentina (1978), o valor bruto do resultado financeiro foi de 78 milhões de dólares. Quatro anos depois na Espanha, 82 milhões de dólares. Eu aí modifiquei o sistema, no México (1986) fomos a 500 milhões", afirmou Havelange.

"E quando eu saí da Fifa, na Copa do Mundo da França (1998), eu fui a US$ 3 bilhões e 800 milhões".

"Eu discordo da avaliação que ele foi um grande visionário que trouxe dinheiro e patrocínio ao futebol. Por quê? Porque já estava acontecendo isso com todos os esportes e se ele não tivesse feito isso, na verdade, teria sido um grande fracasso. O volume de dinheiro que rolava na época da Fifa com João Havelange [comparado] com o que acontece na NBA e nos esportes americanos... A Fifa, na verdade, fica para trás. Só para deixar muito claro. Ele fez o que tinha de ser feito, que era aproveitar a globalização, as transmissões ao vivo e as multinacionais que queriam uma plataforma única para promover seus produtos", comentou Jamil.

"Agora, onde ele foi visionário? Foi em entender que a descolonização da África e da Ásia estava acontecendo. Era uma nova realidade política e o mundo estava mudando. E essa mudança foi aproveitada da melhor maneira porque cada país novo significaria um voto novo [nas eleições da Fifa]. Cada país novo precisaria criar uma identidade nacional. E um dos melhores instrumentos para isso é uma camisa e uma seleção de futebol. Então, junto, o pacote vinha com voto, lugar em uma eventual eliminatória [para a Copa do Mundo] e, claro, um uniforme novinho com as novas cores do país", completou.

O Brasil é uma potência política desde Havelange por causa do desempenho da seleção. Quando ele chegou ao poder, o time já era tricampeão. Se você comparar o poder do Brasil na Fifa naquela época com o poder brasileiro em outras entidades transnacionais, como a ONU ou a OMC, o Brasil é muito mais relevante na Fifa. Por quê? Porque quem dá poder na Fifa são os jogadores. E os dirigentes brasileiros se aproveitam desse status

Rodrigo Mattos, blogueiro do UOL

O Havelange acabou ficando conhecido como a figura central da época de maior corrupção dentro da Fifa, mas era um alemão, Horst Dasssler, que era o principal parceiro dele, na criação da ISL, (na relação) com a Adidas. Havia participação de várias pessoas de outros continentes. O (Joseph) Blatter é suíço, o (Jêróme) Valcke é francês. Enfim, não é uma coisa só sul-americana

Rodrigo Mattos, blogueiro do UOL

Divulgação

Juca negou convite para visitar a Fifa com passagem paga

Em um dos trechos do episódio de Futebol Bandido, Juca Kfouri relata sobre a única vez em que esteve pessoalmente com João Havelange. O encontro aconteceu em São Paulo, em uma entrevista para a extinta TV Abril nos anos 90, ao lado de Carlos Maranhão, então editor da revista Placar.

Na entrevista, ao tomar conhecimento que os jornalistas não conheciam a sede da Fifa na Suíça, Havelanhe ordenou a seus assessores presentes que passagens fossem emitidas para Kfouri e seu colega. Então o jornalista brasileiro retrucou.

"Ao vivo, ali mesmo ano ar, eu disse: se os nossos veículos considerassem realmente necessário que nós fossemos à Fifa, eles mesmos tratariam de pagar a viagem. O Havelange ficou muito ofendido. Esse era o método dele, o método de comprar as pessoas", comentou Juca no podcast.

Outra cena que mostra esse perfil é relatada por Rodrigo Mattos. "O congresso que definiu as cidades sedes da Copa do Brasil foi feito nas Bahamas em 2009. A gente estava voltando no avião e como, nas Bahamas, os aviões são complicados, não tinha primeira classe. Ia todo mundo junto em um avião turbo hélice. O João Havelange estava na fila dos passageiros junto comigo, com outros repórteres e outros dirigentes. E a funcionária da alfândega das Bahamas, uma senhora corpulenta, fazia vistorias aleatória nos passageiros. E escolhia um ou outro para dar aquela dura, vamos dizer assim. E ela escolheu o Havelange", contou.

"Não sei por que motivo. Era um senhor de muita idade. Mas ela mandou que ele tirasse o sapato, o blazer, apalpou o João Havelange inteiro. E a cara que ele fazia para os colegas e para os assessores era uma cara de 'quem é essa pessoa que tem a impertinência de me colocar na figura de um simples mortal?'"

Uma coisa que era perceptível quando a gente tinha contato com o João Havelange era a forma imperial com que ele se dirigia às pessoas, sem admitir nenhum tipo de questionamento. Isso acontecia com repórteres, mas acontecia com quase todo mundo

Rodrigo Mattos, blogueiro do UOL

@FifaWWC/Twitter @FifaWWC/Twitter

Novos torneios, futebol feminino e burocracia importada

Um dos legados de João Havelange na Fifa é a criação de torneios. Foi em sua gestão de 24 anos que a entidade passou a organizar os mundiais de categorias de base a Copa do Mundo feminina, por exemplo. "Em paralelo, sofisticou também a cultura da corrupção dentro da Fifa", como lembrou Juca Kfouri.

Com Havelange, chegaram ao poder na Fifa, também, dirigentes de fora da Inglaterra, que até o ano de 1974 dominava a gestão da modalidade. "Quando essas pessoas chegam na Fifa, elas só repetem [tradições]. A Fifa é a repetição dessa burocracia brasileira, argentina, mas também de outros países do mundo, que se aliam para criar não uma entidade para gestão do futebol, mas uma entidade para explorar o futebol. Isso é que nos vimos no caso de Ricardo Teixeira e de muitos outros. É dessa forma. Na Fifa, os orçamentos são aprovados por eles mesmo [os dirigentes], beneficiando, antes de mais nada, a própria cartolagem antes de pensar em quanto de dinheiro iria para o futebol", explica Jamil.

Rodrigo Mattos lembra que esse modus-operandi seguiu com o sucessor Havelange, o suíço Joseph Blatter. "Para ilustrar, lembro de uma cena clássica no congresso de 2010. Durante o discurso do Blatter, todo mundo parecia dormir. E de repente ele falou que iria reajustar o repasse para as confederações nacionais. Acho que era de R$ 1 milhão para R$ 2,5 milhões. De repente, eles se levantam em euforia. Acorda todo mundo, se levantam e começam a aplaudir de pé. Aquilo durou uns dez minutos de ovação para o Blatter. Todo mundo, então, volta para os seus lugares e volta a dormir cinco minutos depois".

Ricardo Stucker/CBF

Pelé: de cabo eleitoral a figura desdenhada

Já no trecho final do episódio de Futebol Bandido, Juca Kfouri lembra que a imagem de Pelé foi usada por João Havelange para que o dirigente brasileiro chegasse ao comando da Fifa. Mas, no fim da vida, o cartola costumava menosprezar a figura do ídolo.

"Para que ele se elegesse presidente da Fifa, (na eleição) contra o inglês Stanley Rous, ele se valeu do Pelé como cabo eleitoral nos países africanos. O mesmo Pelé que ele impediu na Copa de 1994 nos Estados Unidos de participar do sorteio daquela Copa, para a perplexidade dos americanos, que tinham no Pelé a única grande imagem do futebol".

"Impediu porque numa entrevista Pelé denunciara a corrupção na CBF com o genro dele, Ricardo Teixeira. E lembre-se: João Havelange, no fim da vida, só se referia a Pelé como 'aquele negrinho'. Porque era isso que ele tinha como imagem do Pelé, o escravo que ele levava a tira-colo para ganhar votos dos africanos", concluiu.

Alexandre Durão/Folhapress Alexandre Durão/Folhapress

Desmoralizado aos 96 anos

O episódio do podcast termina com o relato do desfecho da carreira política de João Havelange, já aos 96 anos, quando o veterano dirigente foi envolvido na revelação de um escândalo de corrupção dentro da Fifa.

O caso ISL explodiu em 2012, quando o canal britânico BBC exibiu uma reportagem que afirmava que a empresa de marketing esportivo obteve os direitos para várias Copas do Mundo, antes da falência em 2001, pagando comissões a membros da Fifa.

Esse escândalo fez Havelange renunciar à presidência de honra da Fifa, para escapar de um vergonhoso processo de expulsão. O brasileiro ainda foi obrigado a se afastar de seu cargo no Comitê Olímpico Internacional.

Ainda sobre o mesmo caso, Havelange e seu ex-genro Ricardo Teixeira entraram em acordo com a Justiça suíça para evitar a prisão, devolvendo valores milionários de propinas.

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Futebol Bandido #3: A farra de 2014 no Brasil

Joseph Blatter quase teve um elevador privativo milionário em Itaquera. No Maracanã, as normas de placas de publicidade da Fifa desfiguraram o estádio mais importante do país. Essas e outras histórias absurdas sobre a Copa de 2014 no Brasil vão aparecer no episódio número 3 de Futebol Bandido, com Juca Kfouri, Jamil Chade e Rodrigo Mattos.

Acredite você: o sobrenome de João Havelange está na Copa de 2014. Com a inexperiente neta do antigo todo-poderoso da Fifa. Joana Havelange, um belo dia a sociedade brasileira fica sabendo, despencou como a principal executiva do comitê organizador local".

Juca Kfouri

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