Racismo em campo

Futebol brasileiro foi moldado nas bases do racismo estrutural, que até hoje permeia campos e arquibancadas

Ana Flávia Oliveira e Eliana Alves Cruz Do UOL Domínio público

Quando Nelson Rodrigues pensou no título do seu livro de crônicas "A pátria de chuteiras", resumiu em quatro palavras o que o futebol representa para a sociedade brasileira. Usou o esporte como metáfora para descrever certa brasilidade moldada pelas quatro linhas. Neste dia 20 de novembro, voltemos no tempo para investigar como este aparentemente inocente jogo pôde traduzir todo o racismo que até hoje é uma das mais pesadas chagas nacionais.

Um apaixonado por futebol, Nelson Rodrigues costumava se referir a Pelé, a quem ele deu o apelido de Rei, como "crioulo", como uma forma "afetuosa", apesar de marcar o discurso racista do escritor. Pelé, que quando chegou ao Santos era chamado pelos colegas de time de "Gasolina", em derivação do negro petróleo, e foi alvo de inúmeros episódios racistas, não se pronunciou sobre o tema ao longo da carreira.

No Brasil, o futebol, assim como as bases do país, foi moldado em uma estrutura racista, que impedia, por exemplo, que negros o praticassem. Os jogadores pretos provaram que eram bons no jogo inventado pelos ingleses, e a entrada deles, assim como a de operários, nos campos passou a ser tolerada. Neste período, começa o processo de profissionalização, evidenciando as questões relacionadas à classe e raça no esporte. Ao longo da história, inúmeros jogadores negros sentiram na pele o peso racismo no esporte. Exemplos não faltam, desde o goleiro Barbosa, responsabilizado pela derrota da seleção brasileira na Copa de 1950, passando por Pelé, até casos mais recentes como os do goleiro Aranha e do atacante Neymar.

Voltando ao livro de Nelson Rodrigues que abre esta matéria, foi na publicação que ele cunhou a expressão "complexo de vira-lata", ou seja, aquele sentimento de que tudo o que vem de fora é melhor do que o que temos aqui. Muito deste sentimento é consequência da não valorização de nossas origens, da recusa da potência de nossa negritude tão combatida desde sempre e que o futebol exemplifica e escancara. Considerando que o racismo ainda é um fantasma a nos assombrar, Nelson poderia incluir uma quinta palavra em seu título. Somos a pátria excludente de chuteiras.

Domínio público
Arquivo/Ponte Preta

Início de tudo

Era uma vez um garoto chamado Charles Miller que, aos 10 anos, foi para a Inglaterra estudar e voltou mais tarde, no final do século 19, sem imaginar que os itens que trouxe em sua bagagem entrariam para a história: duas bolas de futebol gastas, um par de chuteiras e um livro de regras do esporte. Há controvérsia se começa aí a história do futebol por estas bandas, pois há outros registros. No entanto, Miller foi pioneiro em, como dizem os baianos, "organizar o bába", organizar a pelada e botar a prática dentro dos clubes. E é neste ponto o foco da nossa viagem.

O Brasil tinha acabado de abolir a escravidão oficialmente, e a República ainda era uma criança. As tensões da convivência entre negros e brancos estavam todas lá. Ninguém apostava que a elite brasileira, confinada em seletas agremiações onde a população negra só podia entrar pela porta dos fundos, voltaria seus olhos, apostas e dinheiro para a bola.

Segundo o livro "O negro no futebol", do jornalista Mario Filho, irmão de Nelson Rodrigues, o primeiro jogador brasileiro negro de que se tem notícia foi Miguel do Carmo (1885 a 1932), que, aos 15 anos, junto com outros garotos e rapazes do bairro da Ponte Preta, em Campinas, no interior de São Paulo, fundou, em 1900, o clube com o mesmo nome e que hoje é um dos mais antigos em atividade no país.

Por permitir jogadores negros, a Ponte Preta era frequentemente hostilizada nos jogos no interior paulista. A torcida, que assim como elenco, era composta em sua maioria por negros e operários, acompanhava o time nessas excursões. Os adversários passaram a chamá-los — time e torcida — de macacos e macacada, origem do apelido e da mascote do clube: macaca.

Reprodução

As regras e proibições

No Rio de Janeiro, o Bangu Athletic Club foi fundado em 1904 por ingleses que trabalhavam na Companhia Progresso Industrial do Brasil, a fábrica de tecidos do bairro. No ano seguinte, em 1905, o time era formado por cinco ingleses, três italianos, dois portugueses e um operário negro — tecelão da fábrica — de nome Francisco Carregal. Pronto, estava formada a confusão.

O Bangu, não satisfeito em misturar os estrangeiros com negros e brancos operários no time, ainda aboliu a proibição dos "pobres e mal vestidos" assistirem aos jogos na arquibancada, antes destinada apenas aos brancos "distintos", numa época em que não privilegiados só podiam frequentar os campos de futebol na chamada "geral".

Fundada em 1905, como forma de organizar e controlar do futebol, definindo, por exemplo, que o regulamento do foot ball inglês seria o único permitido, a Liga Metropolitana de Futebol do Rio de Janeiro protestou. Em 1911, determinou a proibição do registro de pessoas negras como atletas:

Comunicamo-vos que o Diretório da Liga, em sessão de hoje, resolveu por unanimidade que não sejam registradas como atletas pessoas de cor".

O Bangu não aceitou a imposição, manteve os jogadores e foi, no mesmo ano, o primeiro campeão com negros em seu elenco. O time venceu a segunda divisão carioca com quatro negros e seis operários na equipe. É possível, hoje, imaginar a guerra que não foi a inclusão destes jogadores. A palavra "unanimidade" no comunicado da Liga chama a atenção. Era opinião de todos os caciques do esporte da época, que o campo de futebol era lugar onde pessoas negras poderiam entrar sim, mas para aparar o gramado. O time chegou a ser excluído da liga.

Divulgação

Pó de arroz fluminense

Nesta época, o Botafogo Futebol Clube, um dos antepassados do atual Botafogo de Futebol e Regatas, também chegou a colocar um jogador negro em campo. Mas após protestos de Fluminense, Payssandu e Rio Cricket, o alvinegro cancelou sua inscrição.

Um tempo depois, em 1914, o próprio Fluminense colocou um negro em campo pela primeira vez. No entanto, Carlos Alberto, por medo de ser rejeitado pelos torcedores aristocráticos do clube, passou pó-de-arroz sobre a pele negra. Durante a partida, porém, o suor fez a maquiagem escorrer e o disfarce ser descoberto. A partir desse episódio, torcedores de outros clubes cariocas passaram a chamar os apaixonados pelo Fluminense de "pó-de-arroz", apelido que o time carrega até hoje.

Recentemente, o Fluminense contestou a versão e informou que a torcida do América criou o apelido para ofender Carlos Alberto, que havia trocado o clube pelo Flu. Como o jogador tinha o hábito de usar talco na barba, os torcedores americanos, durante uma partida entre os dois times, passaram a chamá-lo de "pó-de-arroz" para provocá-lo.

Domínio Público

"Los macaquitos"

Em 1920, a seleção brasileira fez um amistoso na Argentina. Foi recebida com uma charge racista assinada pelo jornalista uruguaio Antonio Palacio Zino, com ilustração do argentino Diógenes Taborda e publicada no jornal "A Crítica". A manifestação tinha o título: "Monos em Buenos Aires: um saludo a los 'ilustres huespedes'", traduzindo, "Macacos em Buenos Aires: uma saudação aos nossos 'ilustres hóspedes'". Isso mesmo, com aspas, marcando a ironia da frase. No desenho, macacos representavam a seleção brasileira.

"Já estão os macaquitos em terra argentina. Esta tarde teremos que acender a luz às 4 da tarde para vê-los. [...] Se há uma gente que nos parece altamente cômica é a brasileira. São elementos de cor que se vestem como nós e pretendem se misturar à raça americana, gloriosa por seu passado e grande por suas tradições".

O escritor negro Lima Barreto, autor de "Triste Fim de Policarpo Quaresma", respondeu à provocação por meio de uma crônica intitulada "Macaquitos", publicada em 23 de outubro daquele ano, na revista Careta. "Não há nenhum insulto em chamar-nos de macacos. O macaco, segundo os zoologistas, é um dos mais adiantados exemplares da vida animal; e há mesmo competências que o fazem, senão pai, pelo menos primo do homem. Tão digno 'totem' não nos pode causar vergonha".

Apesar da defesa de Barreto, por interferência do próprio presidente Epitácio Pessoa, o Brasil formou uma seleção apenas com jogadores brancos (foto que abre essa reportagem) para disputar um Sul-Americano do ano seguinte, também Argentina.

Vasco: plantel de pobres, operários e negros

Neste mesmo período, o Vasco da Gama, conhecido como "camisas negras", protagonizou um dos momentos mais belos de enfrentamento ao racismo no esporte brasileiro. Foi o primeiro dos quatro grandes cariocas a conquistar um título, o de 1923, com um plantel formado por negros, pobres e operários. O futebol era um esporte amador, e o time provocou um rompimento nas relações com os clubes aristocráticos que formavam a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (Amea).

A instituição deu um ultimato ao Vasco alegando que a equipe incentivava o profissionalismo ao pagar prêmios por vitórias a jogadores de origem humilde. Exigia a demissão dos 12 atletas pobres, maioria de negros, prontamente recusada pelo presidente cruzmaltino José Augusto Prestes, que cunhou um manifesto histórico em 1924.

Um trecho: "São esses doze jogadores jovens quase todos brasileiros no começo de sua carreira. O ato público que os pode macular nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles com tanta galhardia cobriram de glórias. Nestes termos, sentimos ter de comunicar a V. Exa. que desistimos de fazer parte da Amea".

Reprodução

Friedenreich: cabelo alisado para entrar em campo

Arthur Friedenreich mereceria muito mais honras do futebol brasileiro do que recebeu ao longo deste pouco mais de um século do esporte no Brasil. Jogador da categoria dos extraordinários, as estatísticas dele impressionam. Em seus 25 anos de carreira no início do século 20, passou por dez clubes, foi peça fundamental em dois títulos Sul-Americanos, quatro brasileiros e sete paulistas. Cobrou mais de 500 pênaltis sem perder nenhum e, há controvérsia, mas alguns creditam 1.319 gols em toda a sua longa trajetória. Friedenreich foi, sem sombra de dúvida, o primeiro grande craque do futebol brasileiro.

Estaria tudo bem se ele não fosse um dos protagonistas de um velho filme de terror brasileiro: o racismo. Filho de um neto de alemães — Oscar — com uma mulher negra — Mathilde —, para transitar nos elegantes clubes que defendeu não bastavam seus belos olhos verdes. Ele tinha que parecer "menos negro". Fried (como era conhecido) até foi aceito no clube em que o pai era sócio, o Germânia, onde apenas brancos jogavam. Mas entrava com uma touca nos cabelos crespos, engomados e alisados. Dava trabalho disfarçar sua origem africana, e ele era sempre o último a entrar em campo, mas conseguia, pelo menos para alguns, se passar por branco.

Assim como a ascendência germânica e os olhos verdes não o pouparam dos preconceitos, ter sido o autor do gol da vitória do primeiro grande título da seleção brasileira — o Campeonato Sul-Americano de 1919, atual Copa América — no final da segunda prorrogação também não o livrou da segregação.

Dois anos mais tarde, em 1921, Fried seria barrado na seleção para a mesma competição —no episódio descrito acima. O Brasil perdeu o Sul-Americano para a Argentina em 1921. Só voltou a vencer em 1922, quando, suspenso o veto, Fried e outros foram convocados. Placar da final contra o Paraguai: 3 a 0. A goleada no racismo foi maior.

Reprodução

Leônidas da Silva, o Diamante Negro

Leônidas da Silva, apelidado de "Diamante Negro", que depois deu nome ao famoso chocolate, foi um dos jogadores que conquistaram ascensão no início da profissionalização do futebol, em meados da década de 1930. Criador do gol de bicicleta e autor de 37 gols em 37 partidas pela seleção brasileira, o jogador está na memória de amantes de futebol até hoje, mesmo que poucos o tenham visto jogar.

A Leônidas é atribuída a responsabilidade de fazer de Flamengo e São Paulo equipes grandes. Mas, apesar de todo o talento com a bola nos pés, ele também não escapou da sanha racista que persiste até hoje no esporte. Era uma afronta que um jogador negro frequentasse espaços considerados de elite e fosse garoto-propaganda de diversas marcas.

Em 1939, Leônidas convivia com uma lesão no joelho, mas o então presidente do Flamengo, Gustavo de Carvalho, queria que ele viajasse com a equipe para uma excursão à Argentina. Ele foi acusado de fazer "corpo mole" em campo e de ser mercenário, já que participava de anúncios publicitários. Aliados ao preconceito, o talento e o sucesso de Leônidas ajudaram a reforçar o estereótipo do negro, pobre e bom de bola, que ainda permeia o imaginário de meninos sonhadores em campinhos de terra espalhados pelo Brasil. O futebol é, até hoje, um dos poucos meios que um garoto preto e pobre tem de ascender socialmente, como explica Marcelo Carvalho, diretor-executivo do Observatório racial do Futebol.

Crianças negras, meninos negros acreditam que seu espaço, as suas possibilidades de ascensão social estão atrelados ao futebol. Ao mesmo tempo, o futebol se vende como um espaço democrático, um espaço onde todas as raças e pessoas são bem-vindas, mas que não é uma verdade. As pessoas negras estão ali apenas para dar lucro".

Folhapress

Sina de Barbosa

Moacir Barbosa foi considerado um dos grandes goleiros da sua época. Jogador do Vasco da Gama, era conhecido por sua serena segurança nas defesas, bom posicionamento debaixo das traves e pelas saídas rápidas. Mas não é por essas características que o goleiro ficou marcado na memória do povo brasileiro. Escalado para defender o Brasil na Copa de 1950, a ele e a outros dois negros em campo (Juvenal e Bigode) é atribuída a culpa pela derrota para a seleção do Uruguai diante de quase 200 mil pessoas no Maracanã — o famoso "Maracanazo". O Brasil jogava por um empate, mas perdeu a final por 2 a 1.

"Uns acusavam [o técnico] Flávio Costa. Mas quase todos se viraram era contra os pretos do escrete. Assim três pretos foram escolhidos como bode expiatórios: Barbosa, Juvenal e Bigode. Mas ao mesmo tempo que se observava esse recrudescimento de racismo, o brasileiro escolhia um ídolo às avessas: Obdúlio Varela, mulato uruguaio, de cabelo ruim", escreveu o jornalista Mário Filho no livro "O Negro no Futebol Brasileiro".

Após a derrota, criou-se o mito entre torcedores, imprensa e cartolagem que ter um goleiro negro não dava sorte. Tanto é que depois de Barbosa, a seleção brasileira só teve três goleiros negros em mundiais: Manga, em 1966, Dida, em 1998, 2002 e 2006, e Jefferson, em 2014.

O caso do goleiro Barbosa não foi um incidente, não foi um insulto, foi uma perpetuação do racismo em relação às pessoas negras, em dizer que elas não podem estar em posições confiáveis. O racismo está presente na falta de confiança no goleiro negro, no jogador negro, que é sempre tachado por usar a força e velocidade, mas que nunca está atrelado a sua habilidade de pensar e distribuir um jogo, em pensar o jogo

Marcelo Carvalho, diretor-executivo do Observatório de Discriminação Racial do Futebol

Schirner/ullstein bild via Getty Images

O silêncio de Pelé

Pelé, o maior jogador de futebol de todos os tempos, foi ele mesmo vítima de diversas situações de racismo ao longo da carreira e vida pessoal. Muitas vezes, foi cobrado por um posicionamento, mas preferiu se calar diante dos insultos.

Em 2014, quando foi procurado para comentar o episódio em que o goleiro Aranha foi alvo de racismo (veja mais abaixo), o Rei disse que o então goleiro santista havia se precipitado e que se ele próprio tivesse parado o jogo todas as vezes em que foi chamado de "macaco" ou "crioulo" por algum torcedor, teria que ter interrompido todas as partidas de que participou.

Na ocasião, em entrevista ao UOL, a escritora Angélica Basthi, autora do livro "Pelé: estrela negra em campos verdes", analisou a fala: "Pelé passou a vida negando que tivesse sofrido racismo. É a primeira vez que admite ter sido chamado várias vezes de macaco ou de crioulo em campo. Pode-se dizer que é um pequeno avanço contar com esse reconhecimento do Pelé no debate sobre o racismo no futebol, ainda que o contexto utilizado por ele não contribua com a luta por igualdade racial. Mais uma contradição resultado do racismo produzido em nosso país".

Para Marcelo Carvalho, essa suposta omissão de Pelé também é fruto do racismo estrutural do futebol e da sociedade brasileira. "Acho que a gente precisava revisitar a história do Pelé, entender como ele foi utilizado pela mídia, que também não queria que o Pelé fosse uma referência para o povo negro. Afinal de contas, se 56% da população tivesse um líder, o Brasil poderia ter mudado. A gente precisa entender que Pelé também não estava preparado para ser, naquele momento, esse líder. Mas que também não foi esse cara totalmente omisso e silencioso".

O talento e a trajetória do Pelé foram fundamentais para arrancar o espaço e o reconhecimento para o negro no futebol brasileiro, mesmo que ele nunca tenha se envolvido diretamente no combate ao preconceito racial.

Angélica Basthi, escritora

O silêncio do Pelé foi visto de forma errada. Foi montada uma armadilha midiática para gente acreditar que ele nunca se manifestou. Se a gente pesquisar, vai achar diversas falas do Pelé em relação ao racismo e também contra a ditadura.

Marcelo Carvalho, diretor-executivo do Observatório de Discriminação Racial do Futebol

ARQUIVO/Estadão Conteúdo/AE

O punho cerrado de Reinaldo

Um punho cerrado no alto e uma vida de consequências. Assim poderia ser resumido o episódio no qual atacante José Reinaldo de Lima, ídolo do Atlético-MG, comemorou com o famoso gesto dos Panteras Negras seu gol na estreia do Brasil na Copa do Mundo de 1978, realizada na Argentina. O Brasil perdia por 1 a 0 para a Suécia quando, aos 45 minutos do primeiro tempo, o mineiro, então com 21 anos, recebeu o cruzamento de Toninho Cerezo, não tomou conhecimento do zagueiro Roy Andersson e pôs a bola no fundo da rede sueca, fazendo o Brasil explodir em uníssono num grito de gol.

A inspiração era os atletas estadunidenses John Carlos e Tommie Smith, que, dez anos antes, reproduziram o gesto do grupo de defesa dos diretos civis da população negra dos EUA no pódio dos Jogos Olímpicos do México. Tudo muito correto se o Brasil não estivesse em plena ditadura militar e jogando em um país onde igualmente uma ditadura tratava de calar vozes dissonantes.

Reinaldo era uma pedra talentosa no coturno da ditadura e já estava na mira dos militares, pois já havia protagonizado outros episódios de rebeldia. Antes de desembarcar com a camisa da seleção brasileira em solo argentino, o presidente Ernesto Gaisel em pessoa recebeu os jogadores e comissão técnica (toda formada por militares). Reinaldo relata um recado nada amistoso. Geisel teria dito: "Vai jogar bola, garoto. Deixa que política a gente faz".

A preocupação era tanta que André Richer, chefe da delegação, foi à concentração dizer que tanto a CBD (Confederação Brasileira de Desportos, antiga CBF), quanto o regime militar achavam o gesto "revolucionário demais". A ditadura não gostava do movimento negro, pois é da natureza das ditaduras não gostar de movimentos por liberdade. Reinaldo ignorou a ameaça e sofreu as consequências. Isolado, deixou de ser convocado e foi perseguido. No Atlético-MG, marcou 255 gols em 475 jogos. Mas entrou para história não só pelo seu talento com a bola, mas por ser um símbolo para os que não se deixam subjugar jamais.

Pedro H. Tesch/brazil photo press/estadão conteúdo

O caso do Goleiro Aranha

O episódio de racismo do qual o goleiro Aranha foi vítima repercutiu no mundo inteiro. Em 2014, quando atuava pelo Santos, foi xingado de "macaco" durante uma partida do time contra o Grêmio, em Porto Alegre, pela Copa do Brasil. Um grupo de torcedores foi flagrado proferindo os insultos racistas. Embora tenha emitido nota de repúdio para evitar ser responsabilizado pelo episódio, o Grêmio, que foi excluído da competição naquele ano, nunca se assumiu como culpado pelo episódio.

Na época, quatro torcedores foram indiciados pela polícia e ficaram impedidos de frequentar estádios em jogos do clube. Em entrevista coletiva, uma das agressoras, identificada como Patrícia Moreira, pediu desculpas ao Grêmio, pela exclusão na Copa do Brasil, e ao goleiro Aranha.

"Eu quero pedir desculpas ao goleiro Aranha. Perdão de coração. Eu não sou racista. Perdão. Perdão. Peço desculpas. Aquela palavra macaco não foi racismo de minha parte, foi no calor do jogo, o Grêmio estava perdendo. O Grêmio é minha paixão, minha paixão mesmo. Eu vivi sempre indo ao jogo do Grêmio. Largava tudo para ir ao jogo. Peço desculpas para o Grêmio, para a nação tricolor. Eu amo o Grêmio. Desculpas para o Aranha. Perdão, perdão, perdão mesmo".

Reprodução/Instagram

"Somos todos macacos"

Outro episódio que marcou a crônica racializada do futebol brasileiro ficou conhecido como "Somos Todos Macacos". Em 2014, um torcedor do Villareal atirou uma banana em campo em direção a Daniel Alves, então no Barcelona. O lateral recolheu a fruta do gramado e deu uma mordida.

Neymar saiu em defesa do amigo e postou uma foto segurando bananas ao lado do filho Davi Luca. E escreveu: "Toma, bando de racistas. Somos todos macacos, e daí? É uma vergonha que em 2014 exista o preconceito. Está na hora da gente dar um chega nisso! A forma de me expressar para ajudar que um dia isso acabe de uma vez por todas é fazer como o Daniel Alves. Se você pensa assim também, tire uma foto comendo uma banana e vamos usar o que eles têm contra a gente a nosso favor".

O apelo do craque foi atendido por diversos famosos, como os jogadores Mario Balotelli, Luis Suarez, Sérgio Agüero, Marta e Roberto Carlos, além de celebridades como Ivete Sangalo, Claudia Leitte, Michel Teló, Angélica e Luciano Huck. Mas também recebeu muitas críticas, principalmente após Huck colocar à venda uma camiseta com o slogan da campanha, que foi idealizada por uma agência de publicidade.

Na época, Daniel Alves disse, em entrevista ao programa Altas Horas, que o gesto de comer a banana foi "intuitivo". "A gente não acredita que vão fazer isso dentro de um campo de futebol e foi uma surpresa a repercussão que deu. Eu estava até um pouco triste com essa situação, porque já havia denunciado em outras ocasiões e não tinha dado em nada. Tentei dar uma resposta positiva a uma ação desafortunada".

O choro de Marinho

E chegamos a 2020. O racismo, porém, ainda permeia o universo do futebol — assim como a sociedade brasileira. No Campeonato Paulista deste ano, o atacante Marinho, do Santos, foi alvo de ofensas racistas durante jogo pelas quartas de final contra a Ponte Preta. Durante transmissão da partida para a Rádio Energia 97, o comentarista Fábio Benedetti comentou a expulsão do jogador em uma partida em que o Santos acabou eliminado.

"Você é burro, você está na senzala, você vai sair do grupo uma semana para pensar sobre o que você fez'", disse o comentarista, que após a repercussão negativa do caso se desculpou e foi demitido.

Como resposta, o atacante postou em seu Instagram um vídeo em que aparece chorando. "Passo por isso na pele. A gente não pode deixar passar isso. É horrível", disse ele. "Eu sei o que eu sou. Sei o valor que eu tenho. Eu brigo pela causa porque tenho voz. E isso só mostra que quem não tem voz passa por coisa pior. A gente tem aceitado muito ainda. Justiça não pune os preconceituosos, vermes. Mas Deus perdoa, cara. Fica em paz".

Revolta de Neymar

Neymar, que no passado declarou que não é negro, também foi vítima de racismo neste ano. Em setembro, o atacante do PSG acusou o zagueiro Álvaro González, do Olympic de Marselha, de chama-lo de "macaco". Ele se exaltou e foi expulso em meio a uma confusão generalizada em que agrediu o adversário.

No dia seguinte, o brasileiro falou sobre a situação nas redes sociais: "Sou sou negro, filho de negro, neto e bisneto de negro, tenho orgulho e não me vejo diferente de ninguém".

Na ocasião, Neymar foi criticado por pessoas que lembraram a negação de sua negritude no passado. Para Marcelo Cavalho, do Observatório de Discriminação Racial do Futebol, o caso de Neymar é importante para entender as consequências do racismo. "Neymar foi criado dentro de um espaço esportivo. Desde muito cedo, Neymar já era um atleta que ganhava seus milhares de reais. Ele viveu sempre de um espaço onde diz que a meritocracia vence qualquer coisa, que não existe racismo. A gente precisa entender que ser negro no Brasil é também se descobrir negro, e Neymar vai se descobrir negro a partir do momento em que ele sai do Brasil".

Racismo não vai acabar, mas pode diminuir

Diante de tantos exemplos, é possível notar que o preconceito racial nunca deixou o futebol. Nos primórdios, o racismo era escancarado, depois tentou-se vender o mito da igualdade racial e que ser preto era sinônimo de ser bom jogador. Ultimamente, casos de racismo têm sido apontados e duramente criticados, mas não deixaram de existir. Segundo dados Observatório da Discriminação Racial do Futebol, entre 2014 e 2018 foram registradas 148 denúncias de racismo em 23 estados e no Distrito Federal.

Marcelo Carvalho afirma que o racismo não vai acabar no Brasil, mas aponta caminhos para uma diminuição dos casos. "A mudança não vai acontecer partindo única e exclusivamente de jogadores negros. Eles podem levantar a voz, podem tentar fazer um boicote, mas o poder de decisão tanto contra os casos de racismo quanto uma campanha de combate ao racismo está nas mãos dos dirigentes, está nas mãos dos donos dos clubes, está nas mãos dos presidentes das federações, do presidente da CBF e da Justiça Desportiva, de quem dependem as punições".

Alguns jogadores estão fazendo a parte deles. Talles Magno, revelação do Vasco, publicou no Twitter a frase famosa da ativista norte-americana Ângela Davis: "Não adianta não ser racista, temos que ser antirracistas". Igor Julião, do Fluminense, também questionou seus seguidores nas redes sociais: "Já separou um tempo para estudar e entender a influência africana em nosso país?". Grêmio, São Paulo, Corinthians e outros grandes também estão repensando políticas, regras, comunicação.

Tudo isso dá esperança de que se aproxima o dia em que possamos ver em campo apenas uma bola e, como diz a letra do chorinho de Pixinguinha, "onze de lá e onze de cá", sem nada que diferencie os atletas além do escudo da camisa.

+ Especiais

Divulgação/Ponte Preta

Tiãozinho, da Ponte Preta, é hoje o único presidente negro nas séries A e B do Brasileirão.

Ler mais
Folhapress

Dia do goleiro comemora a profissão mais ingrata do futebol. E ela é pior para quem não é branco.

Ler mais
Arquivo Pessoal

Luiz Alano é o 1º negro a narrar Libertadores em rede nacional na TV aberta

Ler mais
Jeff Bottari/Zuffa LLC via Getty Images

Racismo, perda da filha e enquadro: quem é o homem antes da lenda do UFC

Ler mais
Topo