Futebol raiz

No momento em que mais circula dinheiro dentro e fora de campo, tem torcedor que não se encaixa. E nem quer

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Futebol de botão

Ligas competitivas, arenas modernas, marcas universais, craques midiáticos e clubes de uma dimensão que nem dá para calcular. A forte entrada no futebol de empresas, mídia e marketing (dinheiro, para resumir) criou um modelo comercial do esporte de algumas décadas para cá. É claro que tudo isso traz muitos benefícios e hoje é impossível imaginar algo diferente do que existe.

Só no Brasil, direitos de TV, publicidade e patrocínio, transação de atletas, bilheteria, estádio e programas de sócio-torcedor fizeram os clubes faturarem R$ 4,930 bilhões no ano de 2017, segundo o relatório "Análise Econômico-Financeira dos Clubes de Futebol Brasileiros". 

Circula muito dinheiro, mas na realidade poucos podem tocar. É tipo um futebol "gourmet", porque as camisas de futebol estão mais caras, os ingressos estão mais caros (em 2017, média de R$ 32 por jogo, 3,5% do salário mínimo brasileiro) e até ver jogo na TV está ficando caro com a proliferação dos serviços de streaming. Esse fenômeno distancia muitos amantes de futebol que haviam se aproximado justamente pela ligação com a essência do esporte, sua simplicidade. O sentimento de insatisfação com o tal futebol comercial está crescendo.

É justamente essa mercantilização do esporte que faz com que surja um movimento contrário e crescente: a onda retrô. "O futebol como negócio cresceu muito. E, na mesma medida, há uma tendência ao afastamento do futebol de raiz, da pelada, da rua, das praias, dos campos de várzea, praças públicas, subúrbios. Esse afastamento, quando fica mais agudo, cria uma tendência ao retorno às raízes para uma espécie de recuperação das identidades originais. As culturas coletivas muitas vezes vivem isso, e no caso do futebol é o que acontece", explica o sociólogo Maurício Murad, da Universidade Salgado de Oliveira e ex-coordenador do Núcleo de Sociologia do Futebol da UERJ. 

À medida que o sentimento de retomada das raízes ganha força entre o público consumidor, o mercado, é claro, acompanha. As empresas de material esportivo estão voltando a fabricar chuteiras pretas, o futebol de botão está conquistando as crianças, o futebol de várzea retomando espaço, os álbuns de figurinhas batendo recordes de venda e até a internet incentivando o culto ao que é antigo. O futebol raiz é um fenômeno porque tem gente que prefere não seguir a "moda atual". 

Lucas Lima/UOL Lucas Lima/UOL

Futebol de botão é mais real

Esse fenômeno de culto ao passado está cada vez mais presente no cotidiano, a ponto de influenciar a criação de estabelecimentos comerciais e mudar a rotina das pessoas. Desde março, por exemplo, um monte de gente está se reunindo em um bar na Zona Oeste de São Paulo para jogar botão. Lembra desse jogo? Com ajuda de uma palheta, os jogadores movem botões de plástico em uma mesa retangular de madeira até fazer gol. É um esporte criado no Brasil que foi muito tradicional antigamente - estourou nos anos 60 e 70, quando havia peças vendidas até em banca de jornal e produtos muito difundidos como o "Estrelão", mesa fabricada pela Estrela, e os botões da Gulliver (além do Futebol Pelé). 

O futebol de botão perdeu espaço. A popularização do futebol na TV e as tecnologias deixaram as mesas abandonadas. Enquanto os videogames cresceram, o futebol de mesa virou coisa de museu. Mas nem todo mundo abandonou completamente a tradição... "Eu descobri que os nichos ainda continuavam, mas muito fechados. Era um clube do bolinha, turmas que jogavam de velhos amigos de sempre, um grupo que nunca crescia e que um dia poderia acabar", diz o designer Luciano Araújo.

É ele o dono de um bar chamado "Arquibancada Botões Clássicos", um lugar temático para reunir esses jogadores de botão do clube do bolinha e cativar mais gente para o esporte, inclusive crianças. Já houve dois torneios infantis de botão no bar, com 32 e 24 times comandados por crianças entre 7 e 12 anos. "Os pais falam que é legal, porque não imaginavam que jogariam futebol de botão com os filhos. E a molecada pira, é legal o envolvimento, os pais explicando. O futebol de verdade está ficando cada vez mais chato, e o futebol de botão é que traz um calor, diversão. É mais real do que o futebol das paredes de mármore", aponta o agora empresário.

Lucas Lima/UOL
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Toda preta

A chuteira preta deve ser o maior símbolo deste conceito de futebol raiz. Nos primórdios do futebol ela era a única opção dos jogadores por conta da fabricação em couro. No Brasil, foi a partir dos anos 50 que saíram os primeiros modelos que não eram pretos ou marrom escuros. Casagrande, hoje comentarista da TV Globo, inovou ao jogar de chuteira branca pelo Corinthians, mas naquela época era considerado coisa de jogador mascarado. Então a indústria foi se aperfeiçoando, mas, pelo menos até a Copa do Mundo de 1994, a cor que dominava era mesmo o preto. Depois disso, ali em meados da década de 90, as empresas se especializaram nas chuteiras multicoloridas.

Na era dos craques midiáticos e do futebol comercial as cores ganharam força. Azul, amarelo, rosa, verde, laranja, vermelho, de oncinha, de zebra e até um pé de cada cor. Teve de tudo. E a chuteira preta, tradicional, raiz, perdeu espaço no pé dos jogadores e nas prateleiras de lojas. Quer dizer, tinha perdido. Em tempos de nostalgia, ela voltou a dar as caras, ainda que discretamente. Para 2019, são esperados pelo menos dois novos modelos e mais ações das empresas fabricantes de material esportivo para valorizar a essência do futebol.

"Hoje estamos presenciando uma volta aos anos 90 em todas as frentes, seja nos tênis, nas roupas e na volta de acessórios, como a pochete. No futebol não é diferente, uma parte do público quer usar algo próximo do que se usava naquela época, no caso, as chuteiras pretas. O modelo não necessariamente tem que viver para sempre. Entendemos como um ícone e a demanda aumenta ou diminui de acordo com as diretrizes da moda e o desejo do público. Acredito que esse fenômeno sempre existiu", diz Fábio Kadow, diretor de marketing da Puma.

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Adidas

"A partir de meados dos anos 2000, usar modelos mais coloridos se tornou algo natural para as novas gerações, mas jamais esqueceremos da cor preta e de como ela ainda é referência para consumidores clássicos. Para o futuro temos um novo pack de chuteiras totalmente preto em vista. O lançamento deve acontecer no início de 2019, com versões escuras das já conhecidas Predator, Nemeziz, X e Copa", diz André Campos, Sr. Manager da Categoria Futebol.

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Nike

"A última vez que o mundo viu um jogo em que os 22 usavam chuteiras pretas foi na final da Copa de 94. Metade usava a Nike Tiempo Premier, primeira chuteira da Nike. Estamos empenhados em desenvolver produtos da mais alta tecnologia e inovação para o nosso consumidor, e é claro, o design é peça fundamental. A Nike continua a desenvolver chuteiras pretas, brancas e coloridas, dependendo da coleção, da estação do ano e dos pedidos dos atletas"

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Penalty

"O universo retrô está em alta, as marcas buscam inspiração nas décadas passadas e isso se reflete no futebol. Os jogadores estão mais antenados nas tendências e a volta da chuteira preta é prova desse apelo. Para 2019, teremos novidades, entre elas uma coleção da Linha Manifesto que terá como tema o futebol raiz. Traremos um reforço de produtos na família Brasil 70, já conhecida por itens totalmente clássicos", diz Simone Procopio, coordenadora de produtos/calçados

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Puma

"Sempre tivemos as chuteiras mais tradicionais no nosso portfólio, como a Puma King, em couro preto, que foi lançada na década de 70 e nunca saiu de linha. No Brasil este modelo não estava sendo vendido, mas volta em 2019. Outro exemplo foi quando lançamos a Puma One, em 2017, em que fizemos um modelo todo na cor preta. Isso não significa que chuteiras raiz estejam tomando o lugar das coloridas e modernas, todas têm seu espaço", diz Fábio Kadow, diretor de marketing.

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Trabalhamos com camisas antigas

Sabia que tem gente que vai em loja de futebol só para comprar camisa antiga? Temporada atual? Esquece! Mesmo em tempos de tecnologia avançada na indústria têxtil e no desenvolvimento de camisas de futebol ainda há espaço para essa onda nostálgica. "Tenho cliente nascido em 2000 que só compra camisa dos anos 90 ou coleção retrô. Os jogadores dessa época também estão muito em alta, tipo Ronaldo e Romário, então o pessoal procura. E se a camisa está personalizada, eles vêm mais sedentos ainda", diz o empresário Renato Martins, proprietário da "Atrox Casual Club", uma loja de futebol em São Paulo.

Renato se especializou neste público raiz e diz que há procura: "A memória afetiva de quem vivenciou outras épocas influencia muito. As camisas eram mais bonitas, né? Hoje é tudo feito no mesmo template, só muda a cor. Antigamente havia design diferenciado, modelos, variedade. E uma coisa importante: camisas mais largas. Hoje é tudo fit. O pessoal mais gordinho fica p... da vida porque os modelos novos ficam agarrados. Aí mesmo quem não vivenciou essa época acaba comprando porque serve."

A loja repõe o estoque de camisas antigas com viagens anuais à Europa, onde há venda de itens de futebol em brechós, e até comprando coleção de pessoas que não têm mais interesse, precisam da grana ou mudaram o foco da coleção. A ideia é ter só produtos internacionais, originais e em bom estado de conservação. É bom que a camisa seja velha, mas deteriorada já é demais.

Rafael Roncato/Folhapress Rafael Roncato/Folhapress

Tem figurinha do Allejo aí?

Os tempos são digitais. Mas mesmo assim foram produzidos por dia mais de 45 milhões de figurinhas para o álbum da Copa do Mundo durante as semanas que antecederam a realização do torneio na Rússia - número maior que o da edição no Brasil, em 2014. Segundo Marcelo Adriano da Silva, gerente de marketing da Panini, o culto à nostalgia não deve mudar, mesmo em tempos de informatização e abundante conteúdo online: "Há um envolvimento do público em colecionar o álbum físico e o produto permite a aproximação de pessoas, que se encontram para trocar figurinhas e colar nos álbuns."

A editora ainda aposta no álbum anual do Campeonato Brasileiro, além de outros esportes como basquete e futebol americano e cards colecionáveis sobre grandes jogadores de 16 times - o Grêmio é o representante brasileiro em 2019.

Outra nostalgia em tempos de midiatização é dos videogames. Mesmo em meio ao lançamento de jogos sofisticados como o Fifa 19 e PES 2019 há uma onda de valorização aos consoles antigos e gerações anteriores. "Videogames se tornaram 'mainstream' nos últimos anos, talvez seja natural que as pessoas que vivenciaram games na época de infância e adolescência e largaram depois comecem a sentir falta e voltem a jogar. A indústria, percebendo esta onda retrô, começou a impulsionar isso lançando diversos produtos relacionados com as épocas", diz Cadu Bogik, que comanda um site chamado "Gamer Caduco".

Cadu joga games de futebol desde a época do Atari 2600. Passou pelo Mega Drive, com World Cup 90 e 92, o primeiro Fifa e até a versão do International Superstar Soccer Deluxe que saiu para o console. Depois houve os dois International Superstar Soccer do primeiro Playstation, o do Nintendo 64 e até a geração seguinte, do Winning Eleven. No lançamento do Novo Super Nintendo, em outubro do ano passado, o International Superstar Soccer foi eleito por jogadores como o game que mais faria falta.

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Torcidas lutam contra "torcer sentado"

Um dos benefícios deste "futebol comercial" é a modernização dos estádios, inclusive no Brasil. Impulsionados pelos investimentos na Copa do Mundo de 2014, clubes e empresas apostaram na construção de arenas modernas e, até certo ponto, padronizadas. Setores demarcados para facilitar o fluxo, digitalização da venda de ingressos, acessibilidade e conforto são algumas das mudanças. Por outro lado, tudo isso causou impressão de um novo modelo de estádio, com sensação de limitação dos movimentos dos torcedores. Tipo um teatro. Para muitos, o conceito de "torcer sentado" não caiu bem.

Palco da abertura da Copa, a Arena Corinthians retirou ainda em 2014 as cadeiras do Setor Norte, onde ficam as organizadas, e da área de visitantes. A ideia era adequar o estádio à demanda dos torcedores que queriam assistir aos jogos de pé - e também evitar novos quebra-quebras como havia rolado em clássico contra o Palmeiras, em junho. A Arena do Grêmio adota o mesmo princípio, com a existência de setores que privilegiam a forma de torcer à moda antiga. O Internacional também atendeu sua torcida em um projeto para que 5 mil torcedores possam ver o futebol de pé no Beira-Rio.

A Vila Belmiro não recebeu Copa do Mundo e está longe de ser considerado um estádio moderno. Mas o Santos também atendeu aos pedidos de seus torcedores para uma mudança estrutural. O estádio tinha um camarote no andar térreo atrás do gol oposto ao placar eletrônico, e a crítica era que o setor diminuía a pressão característica do estádio. Em junho, o clube decidiu demolir o setor VIP e construir uma arquibancada de concreto, com vidros baixos e ingressos a preços populares. A reforma, que aumentou em mais de 300 pessoas a capacidade da Vila, foi inaugurada em novembro.

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Locais de culto

A nostalgia virou combustível para reunir pessoas em ambientes completamente fora do convencional. Enquanto os grandes clubes e estádios coíbem a liberdade dos torcedores em temas como demarcação de setores e até venda de bebidas alcoólicas, algumas organizações de menor expressão ganham força justamente pelo culto à essência do futebol. No maior estilo "ódio eterno ao futebol moderno", o Juventus é pioneiro deste movimento. Modesto clube da cidade de São Paulo, conhecido por incomodar os grandes clubes do Estado no passado e por isso apelidado assim, o "Moleque Travesso" reúne torcedores e simpatizantes no Estádio Conde Rodolfo Crespi, na Rua Javari.

É um lugar de culto ao futebol raiz, em que muita gente vai para dar rolê. É claro que há uma torcida fiel e preocupada com os rumos do time, mas também virou um local de turismo da cidade de São Paulo. E a mesma coisa acontece em outros lugares, como Curitiba, Fortaleza, Santos com a Portuguesa Santista e até Vila Velha, no Espírito Santo, com o Tupy. O clube fundado há 80 anos não tem muitos títulos ou glórias, sobrevive na base do esforço, mas abraçou essa condição de ser um local para reunião entre amigos.

"Aqui nunca teve uma briga e as torcidas dos times adversários elogiam, porque é lugar gostoso para sair no domingo. É simples, mas tradicionalmente temos a melhor cerveja dos estádios, nosso espetinho de frango não pode faltar, nossa panela de siri e nossa moqueca também. Tem gente que nem vem para assistir jogo, vem para encontrar os amigos, trocar ideia e tomar uma cervejinha. É um ponto de encontro mesmo", diz Rogério Pedrini, presidente do clube capixaba e que hoje luta contra uma interdição imposta pelo Corpo de Bombeiros ao estádio do Tupy, conhecido como Toca do Índio: "Nossa comunidade não pode ser privada do que temos aqui."

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Diego Padgurschi /Folhapress Diego Padgurschi /Folhapress

A várzea vive!

O futebol de várzea, outro destes ambientes de culto à essência do esporte, mantém suas tradições. Disputado em bairros e campos geralmente sem gramado de muita qualidade, estrutura ou qualquer semelhança ao padrão Fifa, é uma manifestação cultural com muitos adeptos. No já citado Espírito Santo, por exemplo, a várzea tem quase tanta repercussão e às vezes alcança mais público que o futebol profissional, que tem clubes sem expressão nacional. A ideia de resgatar a emoção perdida nos gramados profissionais leva até algumas empresas a investirem mais na várzea.

A marca de cerveja Kaiser, por exemplo, organizou durante quase duas décadas uma competição de futebol amador em São Paulo por onde passaram jogadores como Elias, Ricardo Oliveira, Zé Roberto e Leandro Damião. O torneio foi disputado pela última vez em 2014 - não por acaso, o ano considerado por muitos como auge da "gourmetização" do esporte. A boa notícia para o futebol raiz é que vai voltar em 2019. O formato e o nome são outros: agora é Taça Kaiser e a empresa só patrocina, não mais organiza.

"A competição acontece em Curitiba nos dias 19 e 20 de janeiro entre os campeões da edição deste ano dos torneios amadores regionais patrocinados pela marca, que são a Copa Corujão (MG), a Liga Amadora da Capital (PR), o Campeonato Regional da Liga Blumenauense de Futebol (SC) e a Copa Cidade Master de Santa Cruz do Sul (RS). Investir no futebol amador é aproximar ainda mais a empresa do público", explica Gustavo Hila, gerente de marketing da Kaiser.

A volta do torneio tem a ver com uma campanha de marketing da empresa, que tem o mote "Pela volta do futebol de verdade". "Queremos estimular uma reflexão sobre o que era o futebol de antigamente e estimular a volta da autenticidade, objetividade e simplicidade aos gramados. O futebol hoje passa por um momento de questionamento, não só pelo formato dos campeonatos, mas até a postura dos jogadores dentro de campo", explica o especialista da marca. 

Até o tradicional Desafio ao Galo, sucesso até a década de 90, está voltando repaginado.

Essa simplicidade, característica do futebol da várzea, é o que fez com que a modalidade tivesse tantos adeptos no Brasil e fora. "O futebol tem uma raiz muito popular, muito simples, um jogo de regras claras de se entender, material esportivo simples, todos os tipos físicos que podem jogar, culturas, classes sociais... tem uma base muito grande no chão, na origem, no dia a dia das pessoas", diz o sociólogo Maurício Murad.

Diego Padgurschi /Folhapress Diego Padgurschi /Folhapress
Tony Duffy/Allsport Tony Duffy/Allsport

"Ódio ao futebol moderno" é movimento organizado

"Tenho 47 anos. Há uma explicação para eu não gostar dos Neymares."

A declaração irônica é de Carlos Vieira Reis. Nascido em Portugal, ele vive no Brasil e é criador de um conceito chamado "Camisa 14", em tributo ao holandês Johan Cruijff, um dos jogadores mais clássicos da história do futebol. A base do projeto é uma loja online de camisetas com estampas de ex-jogadores (Garrincha, Carlos Alberto Torres, Sócrates e Eusébio são alguns), frases (há várias de Neném Prancha e uma escrito "No pyro no party", algo como 'sem fogos, sem festa' na tradução do inglês), além de grandes lances do futebol. É tudo em exaltação ao futebol raiz.

E o mais curioso é que o "Camisa 14" não está sozinho. Há vários projetos que valorizam a essência do futebol e estão cada vez mais próximos em feiras, eventos, rodas de debate e encontros. Há os grupos que têm projetos para estudar o futebol, outros que vendem itens, páginas na internet, enfim, várias implicações. O Contra-ataque, Sem firulas, Peleja, Ludopédio, Doze, Ludens (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas da Universidade de São Paulo), Futebol Café, Casual Football e vários outros. É um movimento organizado, que discute e divulga o futebol raiz.

Quando faço eventos, me perguntam se tenho coisa do Corinthians e do Flamengo. Eu respondo que isso já tem muito no mercado. Então um dos nossos lemas é 'sem clubismo'. Eu foco nas histórias, nos personagens. E como hoje é tudo tão vendido, os produtos estão feitos, as histórias do Neymar e do Mbappé são iguais, o PSG e o Barcelona são a mesma coisa. Nós temos que olhar para trás. Não há jogadores, há artistas. Em breve vão matar os torcedores. E o fato de tudo ser muito igual é propulsor da nostalgia

Carlos Vieira Reis, Do Camisa 14

Nosso lema é combater o futebol moderno. Tudo aquilo que se tornou o futebol através dos anos intensificado por conta de o jogador de futebol ter se tornado uma estrela de cinema. O futebol, que se consagrou graças ao povo, está abandonando a massa e se tornando um negócio muito lucrativo, com uma exposição grande. Por isso valorizamos questões de revival, clubes fora do mainstream, futebol nacional, histórias de jogadores, trabalhos além do campo e bola. O futebol é microcosmo da sociedade, não está à margem

Clayton Fagundes, Do Casual Football

Humor incentiva torcedores

Discussões acadêmicas não são a única maneira de difundir a exaltação à essência do jogo. O movimento do futebol raiz também é incentivado por páginas de humor na internet. Já ouviu falar da comunidade "Cenas Lamentáveis"? Fundada em 2014, tem mais de 600 mil seguidores no Facebook e 300 mil no Instagram. Também tem a página "Esse Dia Foi Louco", curtida por mais de 120 mil pessoas no Facebook e 1 milhão no Instagram. Ambas apresentam conteúdos semelhantes, com valorização de craques do passado, grandes jogadas de ilustres desconhecidos, lembranças de tretas históricas, memes e sátiras.

Carter Batista, advogado brasiliense de 40 anos, é o administrador da página "Esse Dia Foi Louco". "Tudo começou depois da Copa do Mundo de 2014, no auge daquela frase 'o 7 a 1 foi pouco', nossa autoestima muito arrasada por aquela derrota. Falávamos muito do 7 a 1 no começo da página para remeter a um tempo que o futebol brasileiro não sofria humilhação, exaltando os craques de 1994, 2002. Acabou sendo um processo natural esse resgate do passado", diz o influenciador.

Túnel do tempo também carrega perigos

Há benefícios na "gourmetização" do futebol. E talvez você mesmo já tenha aproveitado alguns deles, como possibilidade de reserva de ingressos pela internet, transmissões em alta definição e nos dispositivos móveis ou diferentes modelos, cores e tamanhos de camisas de times. Nada disso faz parte do futebol raiz, mas veio para melhorar o consumo do esporte.

Da mesma forma que pode exaltar ingredientes obsoletos, o conceito também disfarça preconceitos da sociedade. O que é chamado de "cultura da arquibancada" muitas vezes pode excluir mulheres e gays do futebol, por exemplo. Há quem diga que o grito de "bicha" direcionado aos goleiros adversários na batida do tiro de meta não é homofobia, é "cultura de estádio". Isso porque o "futebol raiz" banca uma espécie de caráter imutável do esporte, como se nenhuma definição pudesse ser alterada. Como se algo que não é condenável hoje não pudesse ser considerado abusivo amanhã. 

Avener Prado/Folhapress Avener Prado/Folhapress

"Hoje tem sido comum ouvir essa coisa de que "o futebol está ficando chato", porque não pode mais gritar 'bicha' quando o goleiro bate o tiro de meta, não pode cantar as torcedoras na arquibancada, não pode chamar são-paulino de 'bambi', cruzeirense de "maria", etc. Só que, na verdade, o futebol sempre foi chato para as mulheres e para homossexuais, por exemplo, por conta dessas 'brincadeiras'. Para elas, sempre houve restrições na ida ao estádio. Nessa parte, esses saudosismos não podem ser chamados de 'futebol raiz'. É futebol preconceituoso mesmo e, nesse sentido, não podemos ter resistência para evoluir. Que bom que hoje passamos a questionar tudo isso. Espero que a gente chegue a gerações que sequer saibam que um dia isso existiu, assim nem vai dar para ter saudade de um tempo em que o futebol excluía mais do que incluía. O preconceito é uma raiz que precisa ser cortada."

Renata Mendonça, jornalista, do blog "Dibradoras"

Suzanna Tierrie/Divulgação Suzanna Tierrie/Divulgação

Não é só no futebol

Já reparou que esse fenômeno de nostalgia está por todos os lados, não só no futebol? Nas últimas seis semanas, o filme "Bohemian Rhapsody", biografia do vocalista da banda Queen, Freddie Mercury, esteve na lista de três filmes mais assistidos do Brasil de acordo com o portal "Exibidor". Também chama atenção entre os mais vistos do país o título "Chacrinha - O Velho Guerreiro", que revisita a história do antigo apresentador de TV. E, na última semana, foi a vez de "Robin Hood: A Origem". O que há em comum entre eles é o retrô, o culto ao passado.

No teatro estão em cartaz produções como "Gonzaguinha, o Eterno Aprendiz", "70? Década do Divino Maravilhoso", "Com Amor, Vinícius" (sobre Vinícius de Moraes) e "Carmem, a Pequena Grande Notável". Novamente, o que há em comum entre eles? O retrô. De acordo com estudo da Universidade de Chicago, publicado no "Journal of Consumer Research", as pessoas estão mais propensas a gastar dinheiro quando o produto ou serviço cause essa sensação de nostalgia. E, por isso, o mercado aproveitou para capitalizar em cima deste sentimento. Como o que acontece com o futebol raiz hoje em dia.

"É uma forma de as culturas coletivas tentarem sobreviver diante da avalanche da modernidade, recolocando a cultura geral no sentido de uma volta às suas raízes. Isso recupera o contato do público, porque por todos os recursos multimídia e modernidade eletrônica que há, o antigo ainda faz sucesso. Isso acontece na música, na arte, no teatro, na televisão e no futebol também. É um esporte, mas é uma forma particular de arte popular e uma manifestação cultural das mais fortes do Brasil. O retrô é a forma de colocar a identidade original mais próxima das pessoas", explica o sociólogo Maurício Murad. 

Lucas Lima/UOL Lucas Lima/UOL

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