O papa é pop

Maior narrador do país, Galvão Bueno faz 70 anos mais flamenguista e mais relax do que nunca

Do UOL, em São Paulo Memória Globo: Rogério Fernandes/Globo

O caminho que levou Galvão Bueno a se tornar o principal narrador de esportes da televisão brasileira lhe exigiu algumas adequações à liturgia do cargo. Uma delas foi sufocar a paixão clubística que ele alimenta desde que, ainda criança, frequentava as arquibancadas do Maracanã.

Galvão Bueno sempre tratou seu amor pelo Flamengo com discrição até na frente dos filhos. Ou ao menos tentou, embora possam discordar torcedores rivais que viam, e ainda veem, maior animação na narração de gols e títulos rubro-negros.

Mas hoje, no dia em que completa 70 anos, o narrador já anda se permitindo certas liberdades. Está mais relaxado para expor ao mundo seu "flamenguismo" e falar abertamente sobre o assunto.

"Eu só me abri que sou torcedor do Flamengo recentemente. O Armando Nogueira me ensinou que, depois de uma certa idade, você ganha o direito de falar algumas coisas. Então decidi falar. E o pessoal me respeita", disse o narrador em uma entrevista de abril ao também flamenguista Zico.

Memória Globo: Rogério Fernandes/Globo

"Sou católico-apostólico-rubro-negro"

No tricampeonato do Flamengo de 53, 54 e 55, meu tio Antônio me levava no Maracanã. Eu ia no Maracanã desde os cinco anos de idade, e eles faziam festa comigo. Quando você começa a trabalhar, você deixa isso de lado. Já narrei grandes títulos do Flamengo, mas nunca entreguei meu clube de coração

Galvão, em entrevista ao canal de Zico no Youtube em 2020

Memória Globo: João Miguel Júnior/Globo Memória Globo: João Miguel Júnior/Globo

Apesar de flamenguista, Galvão tem filho tricolor

O piloto Cacá Bueno não puxou ao pai. Torcedor do Fluminense, ele costuma dizer que Galvão não é tão rubro-negro assim. "Eu falo que ele é meio de araque. Quando eu era criança, eu não lembro de ele ser flamenguista", afirmou Cacá em entrevista ao UOL Esporte.

Esse tipo de comentário já provocou uma intervenção bem-humorada de Galvão. Convidado de um programa do SporTV, Cacá disse que o pai era um torcedor "light" do Flamengo. O narrador telefonou ao programa e, ao vivo, interpelou o filho:

Queria perguntar pro Cacá: que história é essa de 'Flamengo light?'. Flamengo light não existe. Que porra é essa de Flamengo light?"

Piscina e comandante de festa: 5 vezes que Galvão brilhou fora da TV

70 anos: paz, amor e curtição

Depois de cinco décadas de carreira, Galvão Bueno parece estar curtindo a vida mais do que nunca. Seus perfis na internet mostram cenas de uma vida social agitada, recheada de muito bom humor. Em quarentena em sua casa em Londrina, no norte do Paraná, Galvão apareceu narrando um hipotético jogo de futebol cujos jogadores eram as garrafas de vinho de sua vinícola.

Em outro flagra da vida privada, o narrador foi filmado numa piscina em Balneário Camburiú (SC) se arrastando como um cobra sobre objetos infláveis, como se participasse de uma corrida maluca aquática. Seus amigos narraram seu desempenho repetindo os bordões clássicos que Galvão Bueno deixou gravados na cultura popular.

O vídeo foi alvo de críticas, que o narrador rebateu no SporTV, mostrando que não abdicará de seus momentos de descontração. "Foi uma brincadeira e, essa brincadeira, colocaram como uma coisa ridícula. Disseram que estava todo mundo bêbado. Ninguém estava bêbado. Será que as pessoas não podem mais brincar na vida?"

Memória Globo: Geraldo Modesto/Globo

Protestou contra a ditadura e defendeu o casamento gay

O narrador sempre evitou se envolver com política e foram poucas as vezes em que manifestou qualquer opinião sobre os acontecimentos sociais ou históricos do Brasil. Mas como estudante da Universidade de Brasília, o jovem Carlos Eduardo chegou a participar de manifestações contra o regime militar. Em 1968, ano em que a ditadura instaurou o AI-5, Galvão foi às ruas e apanhou da polícia.

"Quem reclama de gás lacrimogêneo agora, não sabe o que era em 1968. Era duro de respirar. São momentos da vida em que você, quando jovem, se entrega de corpo e alma", lembrou, quando foi entrevista no programa Grande Círculo, do SporTV. O futuro narrador costumava discursar em assembleias do movimento estudantil. Um de seus colegas de militância, o estudante de geologia Honestino Monteiro Guimarães, acabaria sendo morto pelo regime.

"A gente ia defender aquilo que entendia ser o correto", disse Galvão.

"Com o tempo, você até vai mudando, vai ficando, vai se equilibrando mais, vai vendo as coisas de forma um pouco diferente. Porque eu acho que todo o extremo é ruim. Qualquer radicalismo é ruim. Era uma coisa muito do jovem. O pior de tudo era o jato d'água, quando pegava na boca do estômago a gente não conseguia respirar direito. Fez parte da minha vida."

É absolutamente normal. É uma opção das pessoas. Acho um absurdo quem é contra. As opções sexuais fazem parte de todas as outras que um cidadão toma na vida pra se tornar cidadão. A coisa mais importante é que a pessoa se torne um cidadão, que seja ajudada a ter escola, educação, a aprender as coisas para se tornar um cidadão

Galvão, sobre casamento gay ao ser questionado pelo humorista Marcelo Adnet

Getty Images Getty Images

Ameaçou sair da Globo por ser preterido na Copa

Quando Galvão foi contratado pela Globo, em 1981, ele já tinha participado da cobertura duas Copas do Mundo, pela TV Gazeta e pela Bandeirantes. No Mundial da Espanha em 1982, Galvão narrou alguns jogos, mas o titular da Globo era Luciano do Valle.

Com a saída de Luciano para a Record, Galvão achou que se tornaria o principal narrador da emissora na Copa de 86, no México. Mas não foi isso que aconteceu. O escolhido para narrar os jogos do Brasil foi Osmar Santos, que havia ganhado notoriedade nos protestos das "Diretas Já".

"Foi uma opção do Boni [o diretor José Bonifácio de Oliveira Sobrinho]. O Osmar Santos era o gênio do rádio, da comunicação, era o cara das Diretas", disse Galvão, que se irritou por ter sido preterido. "Avisei que ia fazer a Copa, mas que quando terminasse eu ia embora [da Globo]. Acabei ficando, mas negociei sério pra sair. Voltei para avisar que estava saindo. Mas aí o bom senso acabou prevalecendo e acabei permanecendo", disse, também no Grande Círculo.

O narrador sairia de fato da Globo apenas em 1992 para comandar o departamento de esportes da Rede OM, uma empresa paranaense que chegou a ter os direitos de transmissão da Libertadores. Na emissora, Galvão participou da cobertura de rodeios e de luta livre, o popular telecatch. Mas no ano seguinte, acabou voltando para a Globo, onde se tornaria um ícone das transmissões esportivas do país.

De 1974 para cá foram 12 Mundiais com a voz de Galvão, que confirmou presença no 13º, no Qatar, em 2022. Só não se sabe se narrando ou em outra função.

Reprodução/Globo

O 'tio Senna' na casa do amigo Galvão

As carreiras de Galvão Bueno e Ayrton Senna caminharam quase paralelamente quando se pensa em sucesso. O locutor passou ser a voz da Fórmula 1 na Globo em 1981, enquanto o piloto brasileiro iniciava na categoria. Sua voz eternizou as vitórias do ídolo do automobilismo. Longe do microfone e do volante, a relação de amizade já era forte, e começou antes que os dois ficassem famosos.

Senna ia jantar na casa de Galvão, e suas famílias se reuniam nos finais de semana. O filho Cacá Bueno lembra do "tio Senna" em sua casa antes de o piloto se tornar o "Ayrton, Ayrton Senna do Brasil", na fórmula criada por Galvão.

"Era uma relação de olhar e chamar: 'Oi, tio'. Eu lembro muito dele na minha casa, mas muito com o meu pai. Aí, quando eu comecei a andar de kart, em 88, 89, o Senna já era campeão mundial de Fórmula 1, e a gente já tinha menos contato. O Senna tinha mais contato com a gente quando ele não era tão famoso", conta Cacá.

"Ele ia jogar tênis com o meu pai e a gente ficava doido de ir na casa do Senna pra usar os jet skis que ele tinha. Uma interação de criança com o tio, e que a gente estava começando a ver na TV e falar: 'Caraca, aquele cara da TV tá próximo'. Mais pra frente, a partir de 89, de 90, o Senna já não tinha muito mais tempo pra isso. Quando tinha o GP Brasil de Fórmula 1, ele tinha inúmeros compromissos, não dava mais pra ir jantar lá em casa. Não tinha mais esse contato tão próximo."

Reprodução/Instagram

Viagens e coberturas impediram proximidade maior com filhos

Em entrevistas ao longo da carreira, Galvão já disse que gostaria de ter estado mais próximo de seus filhos, que viveram momentos importantes da infância e da adolescência longe do pai. Em viagens para a cobertura da Fórmula 1 e dos jogos da seleção brasileira, o narrador chegou a passar mais tempo fora do que dentro do Brasil em um ano.

A distância do pai já foi mencionada pela primogênita Letícia, no quadro "Arquivo Confidencial" do "Domingão do Faustão", da TV Globo, em 2002.

"Até pela profissão, ele não pôde estar muito presente na criação dos filhos", disse a empresária. "Ele procurava compensar quando estava no Brasil, mas é complicado porque você chega cansado, no dia seguinte tem que trabalhar. Ele não foi muito presente na minha criação, mas depois conseguiu compensar quando a gente já estava maior e ele deu uma parada no ritmo de trabalho."

Além de Letícia, Galvão é pai dos pilotos Cacá e Popó — os três, frutos do casamento com a ex-jogadora de vôlei Lucia Costa. Com a empresária Desirée Bueno, Galvão teve Luca, que mora nos Estados Unidos. Ele também se considera pai de Leonardo Salgado, fruto de um antigo relacionamento de Desirée.

João Miguel Júnior/Globo João Miguel Júnior/Globo

Arnaldo: "O Galvão precisa da Globo e a Globo precisa do Galvão"

Galvão Bueno e Arnaldo Cezar Coelho formaram dupla nas transmissões de futebol da Globo por quase 30 anos. O entrosamento na frente das câmeras rendeu boas risadas e a consolidação do bordão "a regra é clara". Amigo de tantos anos, hoje aposentado, o ex-árbitro conversa com o narrador toda semana. Em entrevista ao UOL Esporte, Arnaldo contou como tirava o companheiro de transmissão do sério de propósito.

"Quando eu via o Galvão muito calmo, era porque não seria boa a transmissão. O Galvão tem que estar tenso. Na hora que chegava na cabine e estava tudo calmo, ele pegava a escalação, o cara passava o time. Então eu me metia no meio e falava: 'Vamos testar o áudio' e entrava no ouvido dele".

"Ele dizia: 'Arnaldo, cala a boca! Porra, Arnaldo!'", conta o ex-árbitro, aos risos.

Mesmo de home office por causa da pandemia, Galvão continua trabalhando muito, conta o amigo. "Ele falou que na pandemia está gravando mais que antes. Gravando muita coisa e entrando ao vivo nos programas. Ele está fazendo a barba todos os dias", brincou. Uma das "regras claras" de Galvão Bueno é sempre entrar no ar de barba feita.

Sobre especulações de que Galvão se aposentaria após a Copa de 2018, Arnaldo ressaltou que não vê o amigo pendurando o microfone. "A Globo precisa do Galvão e o Galvão precisa da Globo. Ele é um cara viciado no trabalho. A Globo pode usá-lo de forma interessante. Ele é uma figura pública que pode fazer muitas campanhas ligadas ao esporte. Eu acho que vai se achar um meio termo pro Galvão não ter mais certas responsabilidades, mas encontrar outra atividade. Os clientes admiram o Galvão. Ele pode reunir o útil ao agradável".

Reprodução / Instagram

Galvão para Reginaldo: "Se for a última, quero que saiba que foi uma história linda"

Reginaldo Leme e Galvão Bueno começaram juntos na Globo com as transmissões da Fórmula 1, na temporada de 1982, e desenvolveram uma grande amizade desde então. O ex-comentarista do canal se emocionou ao contar ao UOL Esporte como foi sua última corrida ao lado do amigo.

"O GP do Brasil de 2019 foi a última corrida que transmiti pela Globo. Estavam falando que eu ia sair. Não havia confirmação de lado nenhum. Eu contei pro Galvão. A gente jantou, ele quis saber como estava a situação. No dia da corrida, faltavam 30, 35 segundos, pra entrar no ar, quando recebemos o aviso no fone: '35 pra vocês'. Ele virou pra todo mundo no estúdio, mandou desligar os microfones, virou pra mim e pediu pra eu tirar o fone. Eu tirei o fone, ele virou no meu ouvido e falou:

'Eu não sei o que vai ser, mas se for a última sua, eu quero que você saiba que foi uma história linda. Maravilhosa'."

REUTERS/Nacho Doce

Narrador também cultivou relações perigosas com cartolas

Galvão Bueno foi próximo de empresários como J. Hawilla e de Ricardo Teixeira, ex-presidente da CBF, ambos ligados ao escândalo de corrupção da Fifa, que estourou em 2015. Hawilla, jornalista que virou empresário e enriqueceu com o futebol, era amigo do narrador.

Hoje Galvão se arrepende principalmente de sua relação com Teixeira.

"Não cheguei a ser amigo do Ricardo. Tive um relacionamento. Talvez tenha me aproximado um pouco demais de pessoas que me decepcionaram. Alguns dirigentes. O Ricardo é um deles. Me arrependo, às vezes, de certa profundidade. Do Hawilla eu fui amigo mesmo", disse ao SporTV.

Peter Robinson - EMPICS/PA Images via Getty Images Peter Robinson - EMPICS/PA Images via Getty Images

Admite que pegou pesado com tetracampeões

Galvão cobra dos outros a perfeição que ele mesmo se dedica a entregar a cada jogo. Muitas vezes, no entanto, seu jeito de falar feriu os personagens de suas narrações. É o caso de alguns tetracampeões de 1994. O ex-meia Zinho, por exemplo, continua magoado até hoje com as críticas durante a transmissão da final da Copa, contra a Itália. O ex-atleta disse que viu a reprise recente daquela partida com a TV no mudo.

"Eu vi o jogo com volume baixo pra não ouvir a narração. Eu sabia que o Galvão Bueno ia me cornetar o jogo todo. Então, eu falei assim: 'Não tem necessidade. Eu vou assistir ao jogo sem volume", disse Zinho em participação no Fox Sports. Em 1994, o jogador foi muito criticado por segurar a bola demais.

No "Esporte Espetacular" do último domingo (19), o narrador pediu desculpas a Zinho. "Eu cheguei a pedir desculpas ao Cafu por alguns comentários feitos na decisão do tetracampeonato. Queria aproveitar aqui para pedir desculpas ao Zinho também, porque acho que, em alguns momentos, peguei pesado com alguns atletas. Mas sem nenhum sentimento de diminuir a capacidade deles".

Entre as polêmicas do narrador, há também a famosa discussão com o ex-amigo Renato Maurício Prado em 2012, ao vivo, após uma brincadeira feita pelo comentarista levada a sério pelo narrador. Os dois nunca mais se reaproximaram.

"Não me sinto à vontade de julgar ou analisar atitudes do Galvão. Tem a carreira dele, é inegável, o cara mais importante da imprensa esportiva brasileira, e se tornou com méritos. Se isso subiu à cabeça ou não, não sou eu que vou dizer. Só lamento que, amigo meu de 30 anos, não se mostrou disposto, interessado, depois de iniciativa dele, de sentar, conversar e zerar a pedra. Até os deuses têm amigos", disse Renato em 2018, ao UOL Esporte.

O Renato é pavio curto, eu também sou. Houve um desentendimento. Eu fiquei bravo mesmo, ele ficou mais bravo. Falei vamos parar com isso, dei a mão e ele não me deu a mão. Tivemos tanto bate-boca durante a vida. Mas a rede transformou isso numa briga de juramento de morte que não existe

Galvão , sobre Renato Maurício Prado, em 2019

Zanone Fraissat/Folhapress

Amigos e rivais: "Competimos na audiência, mas sempre amigos"

Galvão Bueno chegou à Globo em 1981 numa época que a emissora já tinha o seu titular absoluto da narração. Era Luciano do Valle, três anos mais velho, a voz dos principais jogos e também da seleção brasileira. Novato e veterano primeiro estabeleceram uma relação de amizade e, com o crescimento de Galvão, dividiram grandes feitos do futebol como o título do Flamengo da Libertadores de 1981 — cada um narrou um jogo.

Com a ida de Luciano do Valle para a Record após a Copa de 82, Galvão ganhou mais espaço na Globo e os dois se tornaram rivais, ou melhor, adversários.

"Luciano foi um dos grandes gênios da comunicação. Éramos os rivais que um puxa o outro, porque competimos na audiência, mas sempre amigos. Mas quando eu vim [para a Globo], ele ficou com a seleção, eu fiquei com a Fórmula 1 e outros jogos dividimos. Foi uma honra. Eu me lembro que o Luciano passou na Globo, numa decisão de Campeonato Brasileiro, o que eu passei em 86 [Copa]. Eu me lembro que fui na cabine dele e falei 'Bolacha, vem pra cá. A gente faz meio tempo cada um'. Existia o respeito profissional de um com outro", contou Galvão ao SporTV.

A declaração sobre Luciano, que morreu em 2014, emocionou a filha do narrador, Alessandra. Após o programa, ela enviou a Galvão uma mensagem de agradecimento. "Ele te amava. Gratidão por você sempre falar dele e respeitá-lo. Por você vejo meu paizinho", escreveu ao locutor da Globo.

Memória Globo: Estevam Avellar/Globo Memória Globo: Estevam Avellar/Globo

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