Resenha forte e volante raiz

Folclórico, Gilmar Fubá colecionou amigos e resenhas, desafiou media training e morreu lutando

Ana Flávia Oliveira, Arthur Sandes e Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Zanone Fraissat/Folhapress

Dentro de campo, o ex-volante Gilmar Fubá, que morreu ontem (15), aos 45 anos, não era nenhum grande craque. Longe disso. Segundo suas próprias palavras, era do tipo que fazia o "serviço sujo": sua função era marcar duro e não deixar de pé os jogadores mais talentosos dos times adversários. Fora das quatro linhas, Fubá também tinha sua marca registrada, essa um pouco mais refinada. Um grande contador de causos que também fazia os ouvintes caírem — dessa vez na risada.

Ídolo do Corinthians com 131 jogos e quatro títulos (Paulistão de 1997, Brasileirão em 1998 e 1999 e o Mundial de Clubes de 2000), ele também jogou no Fluminense e teve passagens pelo futebol da Coreia do Sul e Qatar.

De origem muito humilde — a ponto de o apelido Fubá estar relacionado à mamadeira com água e farinha à base de milho dada pela família na falta do leite —, o ex-jogador foi destinado a romper os padrões. Levava humor às entrevistas, algo impossível pela padronização do media training (um treinamento para que o jogador consiga lidar com a imprensa, mas que acaba levando os entrevistados a, muitas vezes, darem apenas respostas ensaiadas) dos dias atuais. Fubá vai ficar marcado por visões de mundo muitas vezes controversas..

O UOL Esporte conta como foi o fim da vida de Fubá, que morreu lutando contra o câncer, conversa com seus amigos e relembra algumas das passagens do volante que tão bem representou o clichê "bola pro mato que é jogo de campeonato".

Zanone Fraissat/Folhapress

Gilmar foi um cara muito importante porque participou do início daquela equipe vencedora [do Corinthians], um cara muito querido por todos e deixa muita saudade. Até por estar indo muito cedo, cedo demais. É uma pena, é lamentável. Estou muito triste com essa notícia, é uma pessoa que a gente conviveu em momentos importantes."

Oswaldo de Oliveira, treinador, dirigiu Fubá em Corinthians, Fluminense e Al Ahly-QAT

Gilmar é um cara inesquecível. Um cara que era fora da curva, amado mesmo. Era um dos caras que nunca fez mal a ninguém, nunca quis o mal de ninguém. As histórias dele faziam todo o mundo rir, a gente dava muita risada com ele. Infelizmente o que aconteceu com ele é muito triste, uma doença dura. É muito triste."

Luizão, ex-atacante e ex-companheiro de Fubá no Corinthians

Rodrigo Coca/Agência Corinthians

Início e fim no Corinthians

Gilmar Fubá defendeu o Corinthians como jogador por quatro temporadas, entre 1996 e 2000, ganhou títulos e virou ídolo. Não tinha como ser melhor: nascido no bairro de São Mateus, na zona leste de São Paulo, sempre torceu pelo time. Alguns anos após pendurar as chuteiras, foi contratado pelo clube novamente. Foi em 2017 que ele virou auxiliar de captação de jogadores para as categorias de base do Corinthians —de onde ele mesmo havia saído anos antes.

"Fubá era um cara ímpar, participava de todas etapas na observação e avaliação de atletas, desde viagens e visitas técnicas em São Paulo e fora do Estado, até o momento em que recebíamos os atletas no Parque São Jorge. E participava com uma energia e alegria que tornavam o processo de avaliação mais leve para todos", conta Sandro Silva, coordenador de captação do Corinthians.

Por causa da doença e da fragilidade física em meio ao tratamento do câncer —descoberto em 2016— nos últimos anos, as funções se limitaram à região do Parque São Jorge. Sandro Silva lembra que os meninos queriam tirar foto com Fubá, que nunca deixou de atendê-los. Durante os treinamentos, não se furtava de dar orientações e, na hora das escolhas, sabia ser direto.

"Nesse último período, quando já estávamos na pandemia, ele ainda participou de algumas reuniões virtuais da captação, mesmo com muita dificuldade e sempre arrancando risos de todos que participavam", contou Silva.

Arquivo pessoal/Instagram

"Esse tipo de câncer é muito severo"

O diagnóstico veio sem aviso prévio. O mieloma múltiplo, um tipo de câncer na medula óssea, danifica os ossos, os rins e o sistema imunológico. Gilmar Fubá teve todos os sintomas: fez cirurgias seguidas por não conseguir se recuperar de um braço quebrado, mas só descobriu que os rins estavam parados ao ser tratado para pneumonia, em 2016. Ele ficou mais de um mês internado e só terminaria as sessões de quimioterapia no ano seguinte.

"Nos exames, descobrimos que, da cintura para cima, eu não tinha nenhum osso inteiro. O câncer já tinha comido tudo", contou Gilmar Fubá à ESPN em janeiro de 2020, quando celebrava sua melhora.

Acompanhando o caso de perto, o médico Joaquim Grava (que dá nome ao CT do Corinthians) chegou a avisar os amigos de Fubá que ele estimava que o ex-jogador teria apenas mais seis meses de vida. A previsão não se cumpriu e o ex-jogador chegou a melhorar. O retorno do câncer, porém, foi avassalador.

"A doença foi extremamente severa na primeira vez. E é um câncer muito difícil de erradicar. De alguma forma, a melhora dele foi até uma surpresa, mas agora veio novamente muito agressivo. Foi atingindo os órgãos até que houve a falência múltipla, e ele faleceu."
Joaquim Grava

Mesmo doente, Fubá não perdeu o bom humor. Em 31 de dezembro de 2020, internado, tirou foto sorridente com os profissionais da saúde e agradeceu. "Gratidão a todos os enfermeiros e técnicos de enfermagem que me aturam há cinco anos", escreveu na legenda.

Politicamente incorreto com a imprensa

Zanone Fraissat/Folhapress

Perrone

"Certa vez, quando eu trabalhava no jornal 'Notícias Populares', tive a ingrata missão de informar que ele [Gilmar Fubá] tinha sido eleito por seus colegas o jogador mais feio do time. Na sequência, perguntei sua opinião sobre o resultado. O volante me olhou bem nos olhos e disparou: 'Quem precisa se preocupar em ser bonito é você, que ganha mal. Eu não. Eu ganho bem, não preciso ser bonito'. Resposta incorreta politicamente para uma pergunta igualmente incorreta politicamente. Em seguida, Fubá caiu na gargalhada."

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Arquivo pessoal/Instagram

Menon

"Trabalhei no jornal LANCE! de 1998 a 2000. Ali, fiz uma das minhas melhores matérias: 'Eu venci a fome'. Gilmar Fubá contou que ele e um amigo adoravam um doce chamado de 'teta de nega'. Sem dinheiro para comprar, se escondiam perto de uma padaria e esperavam alguma mulher comprar. Então, saiam do esconderijo, gritavam com força e, se o pacote com doce caia, pegavam rapidamente e comiam tudo. E explicou o apelido: sem dinheiro para leite, sua mamadeira era de fubá com água. Gilmar superou tudo."

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Matthew Ashton/EMPICS via Getty Images

Histórias e irreverência

As histórias que contava ao longo de anos em entrevistas consolidaram uma imagem irreverente de Gilmar Fubá. Uma das mais icônicas diz respeito aos dias seguintes ao título mundial de 2000, pelo Corinthians, quando cada jogador recebeu um depósito de R$ 190 mil como premiação pela conquista.

Em entrevista à Band, em 2011, ele contou que sacou todo o dinheiro e foi até uma loja para comprar um carro de luxo. "Cheguei lá de calção e Havaianas e disse: 'quero comprar aquela BMW'. O cara enrolou e perguntou como eu ia pagar. Abri a mala cheia de dinheiro e ele falou: 'fecha isso aí, fecha isso aí'. Paguei a BMW e levei embora", relembra Gilmar Fubá.

"Chegou em São Mateus e não tinha nem garagem para ela [BMW]. Minha mãe ficou preocupada e disse: 'E agora, onde vai por esse carro?'. Eu disse para deixar ali na rua mesmo, mas a minha mãe ficou dormindo lá dentro. 'Toma conta aí então', eu falei. Eu tinha que descansar direito para treinar. Mas a BMW era confortável", divertiu-se o ex-volante.

Reza a lenda que a mãe dele ficou uns bons meses dormindo no carro para ninguém roubar. Ninguém jamais confirmou, porque essa história também já foi contada como sendo posterior ao título do Campeonato Paulista de 1997. O que fica é a lenda, a verdade que lute.

Zanone Fraissat/Folhapress

Sem medir palavras

A irreverência de Gilmar Fubá não poupava ninguém, o que às vezes dava aos "causos" e ao humor autodepreciativo um tempero preconceituoso. Em uma participação em programa de TV, no ano passado, emendou três "piadas" sobre uma pessoa fanha, uma tribo indígena e uma suposta sensibilidade dos jogadores atuais aos casos de racismo.

A primeira explorava o que seria uma confusão entre as palavras "feia" e "freia"; a segunda caçoava do pai de um ex-companheiro no Corinthians, o lateral Índio; e por fim o ex-jogador arrematava com uma anedota sobre uma injúria racial de que teria sido vítima. "Na delegacia, o delegado me disse 'fala, negão'. Aí desisti do processo. Vou processar o delegado também?", perguntava entre risadas.

Como produto de seu meio, Gilmar Fubá foi adorado no vestiário e na resenha e se tornou um baluarte do "futebol raiz". Dono de sorriso e coração enormes, mas que escorregava no humor duvidoso. "E hoje os caras ganham quatro, cinco milhões e ficam chorando [por ofensa racial]", comparou o ex-volante naquela mesma ocasião.

Ormuzd Alves/Folhapress Ormuzd Alves/Folhapress

Trabalho espiritual em banheira com rosas

Religião também foi um tema espinhoso tocado sem cerimônia. Fubá causou risadas ao contar sobre um trabalho espiritual que teria sido feito a pedido do então técnico do Corinthians, Vanderlei Luxemburgo, antes da final contra o Cruzeiro no Brasileiro de 1998. O treinador teria mandado o jogador entrar em uma banheira com pétalas de rosa, alfazema e sal grosso por orientação de Robério de Ogum, conhecido por previsões e orientações espirituais a diversas celebridades.

"Eu mergulhei de roupa e tudo, mas ele pediu para eu não falar para ninguém. Voltei para o quarto todo desgraçado, molhado, cheiro de perfume velho. O Vampeta perguntou o que aconteceu. Eu disse que só ia contar para ele. No café da manhã, já estava todo mundo sabendo", contou Fubá em entrevista à ESPN.

Segundo Vampeta, "a macumba" para ajudar o ex-companheiro a não deixar o atacante cruzeirense Müller "andar no Mineirão" não teria dado muito certo.

Ao UOL, Robério de Ogum negou a história. "Isso que o Vampeta fala não é verdadeiro, não é o caminho do trabalho. Eu trabalhei com um monte de treinador. Eu nunca trabalhei com jogador, nunca mandei um jogador tomar um banho."

Em dez minutos de jogo, o Müller foi para lá e voltou [drible]. Eu fui [marcar ele], e o joelhão pá [rompeu o ligamento]. Eu fiquei [gritando de dor], e o Vampeta [falou]: 'professor, deu errado a macumba, hein'. E ele [Vanderlei]: 'Você foi contar'."

Gilmar Fubá, em entrevista à ESPN em 2020

O próprio Gilmar resolveu contar isso para mim e para o Edilson. Aí no domingo, chega o jogo no Mineirão, primeira bola do Müller, ele dá aquela ameaçada, balançada para um lado, e o Gilmar foi na primeira ameaçada [e levou o drible]. Aí o cruzado [do joelho] do Gilmar arrebentou na hora".

Vampeta, em entrevista à ESPN em 2012

Rodrigo Coca/Agência Corinthians Rodrigo Coca/Agência Corinthians

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