Inacreditável 2.0

Como o Grêmio, com um time caríssimo, foi rebaixado à Série B? Renato e Felipão são atingidos

Jeremias Wernek e Marinho Saldanha Do UOL, em Porto Alegre Pedro H. Tesch/AGIF

Dezesseis anos depois da "Batalha dos Aflitos", o inexplicável volta à vida do Grêmio. Tão impactante quanto aquela vitória fora de casa contra o Náutico, para garantir o acesso com apenas sete jogadores em campo, o terceiro rebaixamento da história gremista era inimaginável, mas aconteceu mesmo após uma vitória sobre o Atlético-MG na última rodada.

Inimaginável, entre tantos motivos, por atingir um clube sem problemas financeiros. Se a ausência de dinheiro foi parte relevante do roteiro para a queda de outros grandes do Brasil, a versão 2021 do time gaúcho conseguiu algo inédito —até uma proeza. Sim, o Grêmio vai jogar a Série B depois de pagar folha salarial de cerca de R$ 15 milhões mensais, rigorosamente em dia, ao longo do ano. E o clube podia gastar. Afinal, nos últimos cinco anos, arrecadou mais do que gastou, com cinco superávits seguidos. No meio da temporada, além disso, a direção fechou a contratação de três reforços que custaram quase R$ 45 milhões.

Então, é verdade: o time que consumiu essa verba, com elenco formado por jogadores de seleção, recém-egressos da elite europeia —como Rafinha e Douglas Costa—, ou os icônicos Geromel e Kannemann, passou todo o Campeonato Brasileiro na zona de rebaixamento. E ficou lá, levantando questões sobre o trabalho de ídolos como Renato Portaluppi e Luiz Felipe Scolari durante esse processo de espiral.

A saída de Renato Gaúcho em especial deixou um buraco do tamanho da Arena do Grêmio. O desgaste com o ídolo no dia a dia já era grande, mas, sem ele, o vestiário campeão da Copa do Brasil, Libertadores e tetracampeão estadual ruiu. A diretoria não conseguiu contornar ou suprir a falta de liderança e gestão que afetou por completo o elenco. Tiago Nunes, Felipão e Vagner Mancini passaram pelo cargo, viveram altos e baixos, mas agora o inacreditável é outro. O Grêmio vai jogar a Série B novamente.

Pedro H. Tesch/AGIF

A gente vem de dois anos direto, sem férias, muita coisa na cabeça e ainda [tendo que] passar por um momento de turbulência desses. Num clube que não merece passar por isso. Num clube que te dá toda estrutura, com torcida. Mas no futebol, merecimento só [existe] dentro de campo. Esse ano foi um ano conturbado, apesar de ter disputado finais, da Copa do Brasil e Campeonato Gaúcho."

Diego Souza, artilheiro gremista nas últimas duas temporadas

São coisas do futebol. Infelizmente ninguém queria estar passando por isso. As coisas vão aparecendo, vão aparecendo. Cada um tem uma resposta, um jeito de pensar. No meu jeito de pensar, ela [razão para o time estar assim] vai aparecer. Temos que juntar forças para sair dessa situação. Aqui, nunca deixamos de trabalhar. Nunca olhamos um para o outro com safadeza, com desleixo. As coisas não deram certo."

Diego Souza, na mesma entrevista ao UOL Esporte

Fernando Alves/AGIF

Renato Gaúcho não deixou nada?

Se nas conquistas recentes do Grêmio houve a marca de Renato Gaúcho, é inevitável também o associar ao rebaixamento. O estilo centralizador do técnico funcionou durante pelo menos quatro anos, em uma estrutura que foi sendo moldada por ele no dia a dia. As pequenas trocas em cargos da comissão e do vestiário, a conexão direta, sem interlocutores com o presidente e a relação forte com os jogadores fizeram com que Portaluppi parecesse o "gestor perfeito". Até que deixasse de ser. Quando foi embora, Renato não tinha muito o que apontar como legado, já que toda a operação do futebol girava em torno dele.

Tendo assumido o cargo no final de 2016, seria natural um relato de fadiga nas relações com a alta cúpula gremista e incômodo do próprio ídolo com promessas da diretoria que não foram cumpridas. Ainda assim, a saída foi abrupta. Apenas 40 dias separaram a renovação contratual assinada em Atibaia-SP, às vésperas da decisão com o Palmeiras pela Copa do Brasil de 2020, da demissão após a eliminação na pré-Libertadores.

Quando Renato partiu, o Grêmio tinha um elenco montado sob encomenda, habituado ao seu jeito de agir, com amplo espaço para veteranos. Jovens da base esperavam por mais minutos, o vestiário aguardava por maior integração na tomada de decisão. Mas, no fim, vários profissionais se sentiam órfãos no dia a dia, sentindo falta da liderança de Portaluppi, da segurança passada por ele, principalmente, na relação com o ambiente externo, torcida e imprensa.

O Grêmio veio de quatro anos e meio com um treinador de estilo totalmente diferente da nossa tradição. Eu acho que o Renato demorou demais para ser substituído. Eu teria trocado o Renato em 2018. Não que eu não goste da continuidade. Eu não convivia no vestiário, mas o presidente Romildo é autocrítico. Sabe que errou ao manter o Renato no cargo e 'entregar a chave' do vestiário ao treinador."

Denis Abrahão, vice de futebol do Grêmio na reta final da temporada

RICARDO RIMOLI/ESTADÃO CONTEÚDO

O segundo rebaixamento de Felipão

Luiz Felipe Scolari não foi o primeiro nome pensado para substituir Renato Gaúcho, tampouco foi bancado pela diretoria até o final. Sua quarta passagem pelo clube, que em princípio parecia casual, ganha agora contorno histórico. O período entra para o currículo do multicampeão na forma do segundo rebaixamento da carreira. Em 2012, ele participou da campanha que terminou na queda do Palmeiras para a Série B.

No Grêmio deste ano, Felipão até conseguiu resultados de início —assumiu o time na oitava rodada sem nenhuma vitória ainda computada, na lanterna, e saiu com 21 pontos. Foi sacado do cargo apenas três meses depois, quando o placar parou de ser favorável. Agora, os relatos do dia a dia indicam desgaste dos auxiliares Paulo Turra e Carlos Pracidelli com o elenco. Como agravante, suas ideias e decisões também não agradavam à própria diretoria.

Entre as reclamações do grupo estava a forma de atuar da equipe. O Grêmio priorizava a defesa e apostava alto nos contra-ataques, alterando drasticamente os modelos anteriores que tinha atingido sucesso no clube. A diretoria, por sua vez, escolheu seu lado na disputa entre o elenco e a comissão. Preferiu apostar no grupo e não titubeou ao desligar Scolari.

O período de Felipão no CT Presidente Luiz Carvalho divide opiniões dentro do Tricolor, num capítulo à parte sobre a temporada de 2021. Uma ala da diretoria entende que faltou respaldo, de fato, ao seu trabalho. Outra, aposta que se a saída dele fosse definida rodadas antes, haveria tempo para reação maior e fuga do rebaixamento.

Felipão não agradou jogadores

Eu sempre aprendi que o futebol é para frente, então acho que jogar por uma bola prejudica. Acho que foi nessa linha que perdemos nosso caminho: jogando por uma bola e tomar o gol. Aí, com o psicológico mais abalado, não conseguimos reverter situações. E quem está na frente acaba pagando o pato. O Felipão sempre deu a cara para bater, nunca fugiu. Ele tem uma ideia de jogo que não casava com a de todo mundo."

Douglas Costa, jogador do Grêmio, ao Canal Pilhado, no YouTube

Pedro H. Tesch/AGIF

Eu vejo o futuro repetir o passado

Não foi só Felipão que durou pouco. No Grêmio de 2021, o futuro repetiu o passado. Tiago Nunes, que comandou a equipe após Renato Gaúcho, era descrito como "treinador do futuro" do Tricolor. E não teve tempo ou não superou a falta de resultados.

Nunes tinha deixado pavimentado seu retorno ao Grêmio quando comandou a base. A cada possibilidade de saída de Renato Gaúcho, era ele o predileto para assumir o time, mesmo antes do sucesso que teve no Athletico-PR.

A chegada cumpriu o enredo esperado, mas o desfecho da história passou longe do sonhado. Ainda que tenha conquistado o Gauchão, o início ruim de Brasileiro sepultou o projeto ainda nos primeiros passos. Sem tempo, depois de somente 70 dias, o Tricolor desistiu do projeto que mal tinha começado.

A parte de cada um

Os números gremistas sob cada técnico na temporada

Lucas Uebel/Grêmio FBPA

Renato: 12 jogos (7 vitórias, 2 empates, 3 derrotas)

Portaluppi comandou o Grêmio em 12 jogos, somando Gauchão e fase preliminar da Copa Libertadores. A despeito dos quase 64% de aproveitamento, o time jogou pouco. A relação desgastada e a queda para o Independiente del Valle-EQU, com derrotas na ida e na volta, motivaram a troca. E a partir daí, a bola e os números do time despencaram.

Lucas Uebel/Grêmio

Tiago Nunes: 16 jogos (8 vitórias, 4 empates, 4 derrotas)

O nome escolhido para suceder Renato durou 74 dias no cargo, com 58,3% de aproveitamento. Nem mesmo o título de campeão gaúcho diante do Inter ajudou. Tiago Nunes deixou o Grêmio depois de oito rodadas sem vitória no Brasileirão e um princípio de desgaste com o elenco, de modo bem precoce, repetindo sua passagem pelo Corinthians

Jorge Rodrigues/AGIF

Felipão: 21 jogos (9 vitórias, 3 empates e 9 derrotas)

Não só a relação, mas também os resultados fizeram o Grêmio novamente agir (47,6% de aproveitamento). O time chegou a esboçar reação ao vencer o Flamengo, no Maracanã, em setembro. Mas depois foram cinco jogos sem triunfo. Pesou ainda mais a derrota por 4 a 0 para os rubro-negros pela Copa do Brasil, em Porto Alegre. Foi muito até para Felipão

CARLOS COSTA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Vagner Mancini: 14 jogos (6 vitórias, 2 empate e 6 derrotas)

Em outubro, o Grêmio decidiu ir para o tudo ou nada. Escolheu Mancini pelo histórico recente de êxito contra o rebaixamento --por Atlético-GO, Corinthians e o próprio América-MG, do qual o tirou em momento de ascensão na tabela. Chegou a perder quatro jogos seguidos, mas reagiu. Ganhou fôlego com duas vitórias seguidas, mas não foi suficiente para o time engrenar

RICHARD DUCKER/FRAMEPHOTO/ESTADÃO CONTEÚDO RICHARD DUCKER/FRAMEPHOTO/ESTADÃO CONTEÚDO

Não teve um super Grêmio

Depois de longa novela, o Grêmio repatriou Douglas Costa, cedeu ao pedido de Renato por Rafinha e negociou para valer com Rafael Borré, então no River Plate, assim como tentou o volante Rafael Carioca. Houve até mesmo a especulação de Gonzalo Higuaín, ex-Real Madrid e hoje na MLS (Major League Soccer).

Foi por aí, entre fevereiro e março, que surgiu nas redes sociais a expressão "Super Grêmio". O termo bombou mesmo quando o youtuber Notag fez paródia da música "Disco Arranhado", de Malu Remix e Dj Lucas Beat: "O Super Grêmio tá demais nos trazendo alegria", diz a letra do vídeo publicado depois do título do Gauchão em cima do Inter.

No papel, o Grêmio nunca foi super. A diretoria chegou a pensar num investimento ainda mais substancioso, na comparação com anos anteriores —planos que ficaram no papel, devido à eliminação na Libertadores. Não que faltasse ao elenco restante, aliás. Pelo contrário.

O problema foi que, em meio a constantes trocas de comando, algumas lesões e a pressão crescente a cada rodada, o conjunto nunca se tornou tão forte quanto se poderia supor pela soma de suas partes —ainda mais depois da última leva de reforços, já à base de desespero. E aí restaram os memes.

Pedro H. Tesch/AGIF

Uma campanha no divã

Não foi fácil para a torcida ou mesmo pilares do grupo do Grêmio aguentarem tudo que aconteceu em 2021. Um elenco que se acostumou com as glórias bateu de frente com o fracasso e sofreu danos irreversíveis. A torcida, que esteve por cima e vibrou muito recentemente, quando se viu lutando contra queda reagiu instintivamente.

Houve muito picos de estresse ao longo da trajetória gremista. O maior reflexo no grupo, foi a saída de um símbolo da supremacia azul, branca e preta. Antes de seu nome, ele carregava o posto: o capitão Maicon.

A saída do volante aconteceu com rescisão de contrato, em agosto. Seu último jogo pode bem simbolizar a temporada gremista. Maicon reclamou muito com o árbitro após o gol do Corinthians pela 18ª rodada. Recebeu amarelo, e depois o vermelho por suas atitudes. Deixou o gramado da Arena para jamais pisar nele novamente como atleta gremista.

E se era visível o descontrole em campo, pior ficou na torcida. Depois de ver o time perder para o Palmeiras, já na 29ª rodada, um grupo de torcedores invadiu o campo da Arena, agrediu seguranças, cometeu atos de vandalismo, depredou a cabine do VAR. As reações, dentro e fora de campo, sempre foram extremadas, e completaram o cenário da queda.

Pedro H. Tesch/AGIF Pedro H. Tesch/AGIF

A rebeldia da torcida não foi contra os jogadores do Grêmio, nem contra a comissão técnica, nem contra a direção do clube. Eu acho melhor vocês averiguarem o que efetivamente aconteceu. Eu não vi, estava no vestiário."

Denis Abrahão, vice de futebol do Grêmio

Torcedor é fenômeno de massa, não individual. Aí entra cultura de grandes grupos, que tendem a ser mais instintivos. Freud fala isso em análises de massas, que o ser humano baixa alguns degraus em seu nível de civilização quando está em massa

Mauricio Pinto Marques, doutor em psicologia do esporte

Pedro H. Tesch/AGIF

Conta alta para pagar

O paraguaio Mathias Villasanti, 24, e os colombianos Jaminton Campaz, 21, e Miguel Borja, 28, chegaram ao Grêmio em meio à temporada, ainda com Felipão como treinador, para ajudar a mudar a cara do time. Na prática, nenhum deles emplacou de vez. O centroavante emprestado pelo Palmeiras começou bem, garantiu vitórias importantes, mas recentemente oscilou e viu Diego Souza voltar ao time titular. O meia paraguaio conquistou a torcida com disposição, contudo também perdeu espaço na reta final. A promessa colombiana fez o caminho inverso.

Badalado por custar cerca de R$ 20 milhões, uma das maiores contratações da história do Grêmio, Campaz chegou a Porto Alegre na semana em que houve depredação da torcida ao CT Presidente Luiz Carvalho. O ataque com pedras danificou carros e estrutura do clube. Em campo, o meia-atacante foi descrito como tímido no início. Com Vagner Mancini, no entanto, apareceu como titular e ganhou sequência.

Todos os negócios envolveram quase R$ 45 milhões. Nenhuma dessas transações foi quitada no ato. Ou seja, o Grêmio fica com contas para pagar. A tendência é que Borja, emprestado, seja liberado. Os outros dois estrangeiros, mais jovens, talvez possam ser negociados, mediante oferta do exterior que minimize os prejuízos.

De acordo com o site Transfermarkt, especializado em transferências, o elenco do Grêmio tem valor de mercado de 84,9 milhões de euros (cerca de R$ 535 milhões na cotação atual). A quantia se justifica pela valorização de jovens como Brenno, Gabriel Grando e Vanderson, além, claro, de Douglas Costa e das apostas sul-americanas.

Lucas Uebel/Grêmio

Agora vem o desmonte?

A resposta para o título acima é sim. O elenco do Grêmio vai mudar bastante depois do rebaixamento. A estimativa extraoficial é que a folha salarial caia para menos da metade em 2022. A meta é montar um elenco com despesa mensal de aproximadamente R$ 6 milhões. Para a conta fechar, muitos nomes vão precisar sair.

Rafinha, Paulo Miranda, Thiago Santos, Darlan, Jean Pyerre, Ferreira, Alisson, Diogo Barbosa e Diego Churín são nomes que devem ser liberados. A maioria em final de contrato e os outros autorizados a procurar clube.

Os jovens Gabriel Grando, Vanderson e Fernando Henrique são especulados como nomes que devem render dinheiro em negociações com a Europa. O lateral direito está na mira de clubes da Inglaterra e Espanha.

RODRIGO ZIEBELL/FRAMEPHOTO/FRAMEPHOTO/ESTADÃO CONTEÚDO RODRIGO ZIEBELL/FRAMEPHOTO/FRAMEPHOTO/ESTADÃO CONTEÚDO

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