O bairro do Guerrero

UOL visitou o local em que o maior jogador peruano da história (e artilheiro do Inter) cresceu

Karla Torralba Do UOL, em Lima (Peru) Xinhua/Xin Yuewei

O motorista do Uber que leva a reportagem do UOL Esporte ao bairro de Chorrillos, em Lima, pergunta se as portas do banco traseiro estão trancadas. "Não é bom bobear, a violência tem aumentado por aqui", explica, enquanto o nosso destino começa a se aproximar.

Chorrillos é o oitavo distrito mais violento da capital peruana. Em 2017, o Instituto Nacional de Estatística e Informática do país apontou 33 homicídios no local. Além da violência, o bairro tem suas contradições em meio aos 335 mil habitantes que vivem por lá. Quem vai pela praia vê casas grandes e bonitas. Algumas modernas, outras tradicionais. As maiores são dos políticos.

Perto de lá também há o Morro Solar, famoso ponto histórico da cidade. Em suas encostas fica um assentamento popular que lembra as favelas brasileiras. O local é conhecido como Alto Perú e foi marcado pelo crescimento desordenado e construção de casas em locais de risco de desmoronamento.

Mas Chorrillos é mais conhecido por um personagem que você deve conhecer bem. Paolo Guerrero morou lá até os 17 anos. O atacante que deu o título mundial de 2012 ao Corinthians, defendeu Flamengo e hoje é artilheiro do Internacional surgiu na região central do bairro. Morava em uma faixa de terra em que famílias de classe média baixa vivem até hoje em casas grudadas umas às outras.

Por lá, descobrimos as origens do maior jogador de futebol do país que recebe os Jogos Pan-Americanos de 2019, que terminam no próximo domingo.

Juan Mabromata/AFP Juan Mabromata/AFP

"O que acha de Guerrero?"

A pergunta sempre vem. Qualquer peruano que descobre estar conversando com um brasileiro abre o sorriso para questionar a fama de Paolo Guerrero no país do futebol. É como se eles mesmos tivessem feito um gol em final de Copa do Mundo quando concordamos com os peruanos que o talento do jogador é único.

Guerrero é orgulho do povo por levar o nome do país para o mundo inteiro. Em Lima, o atacante é como um monumento turístico famoso: não se pode falar do esporte peruano sem citá-lo. Em uma viagem para uma das sedes de competições do Pan, o motorista que nos levava apontou: "Você sabia que a mãe de Paolo morou muito tempo aqui, né?! Subindo essa avenida", explica o motorista, como um guia turístico. "Ele é um ídolo nosso", completa, com um orgulho pensativo.

A reportagem foi recebida na antiga casa da família por um dos irmãos do atacante, Pablo Ganoza. O local foi comprado pelo próprio Guerrero com o dinheiro que recebeu em seu primeiro contrato na Europa. Na residência, dona Petronila Gonzales Ganoza, conhecida como "doña Peta", viveu com os filhos por mais de 15 anos.

Até rivais veneram

Guerrero é muito querido, embora nunca tenha jogado profissionalmente aqui. Aonde ele vai, faz questão de exaltar o Alianza, já disse que quer encerrar a carreira aqui. Você percebe que ele nunca esqueceu. No Corinthians, no Flamengo ou no Inter, o povo aqui acompanha tudo

David Alarcon, dirigente da Comando Sur, principal organizada do Alianza Lima

Se você considerar títulos, o Claudio Pizarro é o jogador peruano mais vencedor, ganhou Liga dos Campeões e tudo mais. Mas o êxito do Guerrero é diferente. Eu nunca senti uma conexão tão próxima com um jogador peruano quanto sinto quando o vejo jogar pela seleção

Abel Escalante, da Extremo Celeste, organizada do Sporting Cristal

Arquivo Pessoal

Família de jogadores

A infância de Paolo Guerrero foi em outra casa, menor, mas também em Chorrillos. Foi comprada por um dos irmãos, Julio Coyote Rivera, que também foi jogador de futebol, mas atuou apenas no futebol do Peru. Guerrero morava com os três irmãos mais velhos e a mãe.

Ali, onde a população de classe média baixa se concentra, as ruas eram campos de futebol. E o pequeno Guerrero, antes mesmo de entrar nas categorias de base do Alianza Lima, já se destacava quando jogava bola com os garotos. "Paolo era menino, como vocês falam. A gente via que ele sobressaia aos outros. Ele chutava melhor, se posicionava melhor e ele era um pouco mais alto que os outros meninos. Ele tinha também as qualidades técnicas. Vou te explicar o porquê", inicia Pablo.

"Vivemos em uma região mais central de Chorrillos e nesses tempos se jogava na rua e não havia traves. A gente colocava pedras e jogava contra as paredes. Nas casas e nas ruas. Isso fez com que ele adquirisse mais pontaria, percepção. Isso fez com que ele tivesse mais qualidade tanto para chutar, mas também para servir os seus companheiros, bom passe. Creio que isso é o motivo dele se destacar", completa.

Reprodução/Instagram

Alianza e escola

Guerrero sempre prometeu à mãe que daria uma casa a ela e uma vida tranquila. Doña Peta viveu sozinha com os quatro filhos depois que se separou do marido. "Nunca faltou pão em casa, mas tivemos uma infância humilde. Não tínhamos luxos. A prioridade era alimentação e os estudos. Doña Peta e os quatro meninos. Ela se separou e teve que criar os filhos. O melhor era que sempre teve carinho e respeito. A mamãe sempre nos ensinou a sermos educados e a respeitar", explica Pablo.

Foi durante a infância que, na base do Alianza Lima, Paolo chamou a atenção do diretor do colégio Reyes Rojos, que fica no bairro Barranco. A instituição tinha um lema: chutar com os pés e estudar com as mãos. Além de Guerrero, Jefferson Farfán, outra estrela do futebol peruano atual, também fez o mesmo caminho do atacante.

O contato com os amigos que chutavam bola na rua com Guerrero se perdeu quando o futebol virou profissional, mas a memória não é perdida.

Fabian Bimmer/Reuters Fabian Bimmer/Reuters

1º salário na Europa foi para casa da família

A casa com parede de pedras cinzas foi a que Guerrero deu à família. É discreta e não se destaca na rua de residências simples de Chorrillos. São três andares de um local espaçoso, mas com um ar familiar. "Aqui a gente colocava os presentes de Natal todo ano", apontou Adriano, o filho de Pablo de 12 anos que também recebeu a reportagem, para a área embaixo da escada onde se vê muitas imagens de santos - quase 90% da população é católica.

Estar na casa é como viajar no passado. Cada móvel, cada quadro, cada objeto foi colocado ali há pelo menos 15 anos. "Paolo que comprou essa casa quando foi pro Bayern [de Munique], com o primeiro salário. Tem um valor indescritível, está intacta. Parece que ainda vivemos aqui. Está tudo como se estivéssemos aqui ainda. Ainda tem todas as fotos e camisetas", explica o irmão.

Pablo conta que, com o sucesso, Guerrero virou celebridade no bairro. Todos sabiam que o atacante vivia no local e passava férias com a família - ao final das temporadas ou na folga de Natal. Era na data festiva que o jogador mais fazia festa. Sabendo que o ídolo se encontrava na residência, crianças do bairro se juntavam na rua, em frente à casa, para esperar Paolo sair. E ele saía. Soltava fogos de artifício com a criançada para divertir a todos.

Karla Torralba/UOL Karla Torralba/UOL

Tragédia com sobrinho fez família se mudar

Há pouco tempo, a relação da família de Guerrero com Chorillos se quebrou. O sobrinho do jogador, Julio Rivera Quispe, de 28 anos, foi morto em março de 2019. Ele foi arrastado por um carro em que estavam assaltantes que tentavam roubar o seu celular. Aconteceu no bairro em que todos os membros da família nasceram.

O episódio ainda causa emoção. "Minha mãe estava aqui e ele [Julio] estava vindo para ficar com ela. Queremos encontrar o culpado que fez essa desgraça. Estão fugidos do país, eram estrangeiros".

Julio estava próximo à casa da avó, a mesma em que a reportagem encontrou Pablo. O irmão mais velho de Guerrero conta que, depois da tragédia, Paolo quis levar toda a família para morar com ele no Brasil. Diante da negativa, todos deixaram Chorrillos para outro bairro de Lima.

"Por ele, estaríamos todos no país [Brasil] com ele. Ele sempre arruma uma casa grande porque pensa que a família vai pra lá. Viajamos e ele se sente mais em família. Tantos anos vivendo sozinho... Mas eu tenho minha família, meus irmãos também. Minha mãe tem toda a vida aqui. Não sei se Paolo vai querer ficar no Brasil, de repente. Ele tem casas lá. De repente ele fica".

Arquivo Pessoal

Um "museu" dentro de casa

No último andar da casa, um salão com as maiores memórias de Paolo Guerrero no futebol é uma atração. As primeiras camisas que usou em cada um dos times que defendeu estão emolduradas. Corinthians, Alianza Lima, seleção Peruana, Bayern de Munique, Hamburgo e Flamengo.

Uma porção da parede ainda está em branco. "Ainda não deu tempo de trazermos a do Internacional", conta Pablo. O preguinho, porém, está lá, na parede, para ser preenchido com a memória mais recente.

Do outro lado, uma parede só de diplomas. Guerrero é Phd em fazer gols. "Ele foi o goleador de todos os campeonatos que participou no Peru", diz o irmão orgulhoso. Há também lembranças tristes.

Um quadro de Paolo Guerrero ainda pequeno ao lado do tio, José Gonzalez Ganoza, que não viu o sucesso do sobrinho. O goleiro do Alianza Lima faleceu em 1987 na queda do avião da equipe. Ele era irmão da mãe do atacante e tinha o costume de levar o pequeno Guerrero aos campos de mascote.

A tragédia refletiu na carreira de Guerrero. Com trauma de avião, a mãe do jogador pouco ia visitá-lo quando se mudou para o futebol alemão com 17 anos. A vontade de voltar da Europa e seguir no Brasil, segundo o irmão, foi para conseguir ficar mais perto da família.

"Minha mãe não viaja muito, porque para ela a tragédia com o meu tio se transformou em um trauma. Viajar 17 horas pra Europa era muito para ela. O Paolo que vinha mais pra cá. Ele passou quase todo o tempo sozinho. Foi muito triste a tragédia. Era uma pessoa que chegava em casa, nos visitava, levava alegria. A gente olhava ele treinar no Alianza", conta.

O próprio Guerrero tem problemas com aviões. Quando jogava no Hamburgo, da Alemanha, voltou para férias no Peru e precisou de cinco tentativas para conseguir fazer a viagem até a Europa. Em uma das viagens abortadas, chegou a parar o avião já na pista de decolagem do aeroporto de Lima. A imprensa europeia também reporta que o jogador, pela tensão causada pelo medo de voar, já o fez piorar uma lesão na coxa.

Karla Torralba/UOL Karla Torralba/UOL

Família foi refúgio durante suspensão

Chorrillos também foi o refúgio no momento mais difícil da carreira de Guerrero. Suspenso por doping, o jogador voltou ao Peru. O atacante ficou 15 dias sem sair de casa, em depressão.

"Ele é uma pessoa que vive para o futebol, ele nasceu para isso. E para ele, não poder jogar e ir ao campo, não poder treinar, nem ver amigos, nem visitar as instalações, foi muito frustrante".

"Ele se deprimiu. Ele se preocupa mais com futebol que com ele. Ele se sentiu frustrado e não sabia como se defender. Então, optou por se refugiar. Ele ficava sentado", recordou o irmão, apontando para o sofá onde a reportagem estava sentada para a entrevista.

Ricardo Moraes/Reuters Ricardo Moraes/Reuters

"Alunos do futebol brasileiro"

Ter um jogador como Guerrero é orgulho para o Peru. Mas ter um atacante como ele e jogando no futebol brasileiro faz o orgulho crescer. "O futebol brasileiro, para nós, é como um maestro. Somos alunos do futebol brasileiro. No Peru, nos destacamos também pela habilidade e bom chute, mas como equipe nunca conseguimos conquistar o que o futebol brasileiro conquistou. Por isso temos respeito e admiração", explica Pablo.

A recepção no país é de ídolo. Uma reação até maior do que a que Neymar recebe no Brasil. "Ele tem o sangue do Peru, uma pessoa alegre. Às vezes ele não demonstra, mas ele é uma pessoa alegre. Ele tem muito carinho com o povo peruano e com as crianças. Ele viveu isso de criança e as crianças marcam muito ele", comenta.

Na imprensa, todo dia é dia de Guerrero e pelo menos uma notinha pequena citando o astro é publicada. "Sempre falam dele. Não temos muitos jogadores como vocês têm no brasil, vocês têm um universo. Aqui são muito poucos, então falam muito dele. Não só na seleção, mas também jogando no Brasil, ele fez o povo peruano se sentir orgulhoso de ver um peruano jogando e se destacando em um lugar muito difícil como é o Brasil".

Karla Torralba/UOL Karla Torralba/UOL

Irmão fez homenagem ao Imperador

O sobrinho de Guerrero tem 12 anos e sonha em ser como o tio. Ele joga nas categorias de base de um clube dos Estados Unidos há dois anos. O pai Pablo, porém, quer que ele seja não como o tio, mas como outro atleta: Adriano Imperador.

Pablo é fã do brasileiro e batizou o filho justamente com o nome do atacante. "O Adriano de vocês é muito bom. Eu era torcedor de Ronaldo e aí veio Adriano. Tinha o Rivaldo que jogava, mas quando vi a potência do Adriano, espetacular. Justamente nesses anos nasceu meu filho. Ele tinha que ser como ele", vibra Pablo.

"A mãe dele não queria muito, perguntava 'quem é esse Adriano?'. Ele tinha uma potência absurda e de onde chutava fazia gol. Por isso é Adriano. Ele chuta com a direita, mas eu fiz ele se acostumar com a esquerda por causa do Adriano", ressalta.

Enquanto isso, o pequeno Adriano ri, avisando: "Estou melhorando a minha esquerda".

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