Três voltas completas

Como Gui Khury, de 12 anos, tornou-se o primeiro a fazer manobra que Tony Hawk, lenda do skate, não conseguiu

Demétrio Vecchioli Do UOL, em São Paulo Fernando Moraes/UOL

Os canais por assinatura ainda chegavam a poucos lares brasileiros, a internet discada levava horas para fazer download de um vídeo e o PlayStation ainda nem era seguido por um número quando Tony Hawk virou lenda. Após seis tentativas erradas, o skatista norte-americano, então com 31 anos, conseguiu manter-se de pé sobre o skate depois de dar duas voltas e meia no ar com ele.

O dia, 27 de junho de 1999, marcou a primeira vez em que um skatista completou o "900", manobra que tem esse nome em referência ao giro de 900 graus. Para o skate, o que se viu naquela quinta edição dos X-Games, disputada em San Francisco, nos EUA, foi uma revolução equiparável ao primeiro passo do homem na lua.

Fitas VHS com a gravação passaram de mão em mão entre fãs do mundo inteiro. Introduzido como o homem dos 900, Tony Hawk virou nome de jogo de videogame e embaixador global de um esporte que começava a ser notado como tal. E o norte-americano passou a ser reverenciado em todos os cantos do planeta em que alguém andava em uma prancha com quatro rodinhas.

Gui Khury tinha cinco anos quando abriu o Youtube e assistiu à gravação da manobra pela primeira vez. O garoto, nascido na Califórnia, mas brasileiro de sangue e coração, decidiu naquele dia que seria um skatista. Passou a sonhar o sonho que já fora de tantos outros meninos: ser como Tony Hawk.

Em 16 de julho de 2021, lá estava ele abraçado com o ídolo para comemorar uma nova revolução no esporte: o primeiro 1080 em competição, também em uma edição dos X-Games. A manobra, que adiciona meia volta ao 900, segue inédita entre os homens, mesmo entre os imortais como Hawk. O único a acertá-la é, afinal, um garoto de 12 anos.

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Como foi o voo nos X-Games

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Precoce

Gui Khury se sobressai em um esporte marcado por talentos precoces. No Guinness World Records, já são duas citações sobre ele como "o mais jovem a":

  • participar dos X-Games;
  • acertar os 900.

No caso do 1080, ele é o primeiro a acertar a manobra em um half pipe, pista côncava em formato de U que é a mais tradicional para competições de skate.

O feito veio exatamente na primeira vez, desde 2003, em que Tony Hawk competiu nos X-Games. Mas não saiu por acaso. Gui já havia acertado a manobra duas vezes em treinos, em dias consecutivos, quando tinha 10 anos. Era o início da pandemia do coronavírus.

Eu sabia que ia acertar porque eu estava muito focado e era sempre um sonho para mim acertar essa manobra. E eu treinei muito. Na hora em que eu errei a sexta tentativa e fiquei muito perto, o cara que falou as palavras de incentivo para o Tony antes de ele acertar o 900 também deu uma ajudinha, disse: 'você consegue'."
Gui, falando da lenda Bucky Lasek, oito vezes campeão dos X-Games no vertical, que estava no half ao seu lado.

O brasileiro já viu "umas mil vezes" o vídeo em que Lasek, com uma regata preta sobre uma camiseta branca, usa as mãos para passar energia positiva para Tony Hawk no instante antes da volta histórica. Depois, o que se vê é uma catarse, que arrepia até quem assiste o vídeo pela milésima primeira vez.

Nascido oito anos depois daquela cena icônica, Gui ainda se está se acostumando com a ideia de ser íntimo de Tony, Bucky e Bob Burnquist, os três gênios da época. "Eu acho isso uma loucura, mas chega uma hora que, não sei, que acontece, e você fica acostumado. Um dia você vê e já está amigo deles", conta Gui, que comemora que, aos 12, chegando na pré-adolescência, conseguir dialogar melhor com caras que têm quatro vezes a idade dele.

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Sobrenome forte no Paraná

"O envolvimento da família Curi com o Paraná é uma grande e antiga história", diz a apresentação do site do deputado estadual Alexandre Curi (PSB-PR), vice-campeão de votos no estado há três legislaturas. Diferentemente do primo, Gui mantém a grafia original do sobrenome Khury, clã que impõe respeito no Paraná.

Gui é bisneto de Aníbal Khury, deputado estadual por 10 mandatos, interrompidos apenas por uma cassação durante a ditadura militar. O político, presidente do Atlhetico Paranaense na década de 70, chegou a ser conhecido como "vice-rei do Paraná", tamanha sua influência.

O skatista, porém, cresceu na Califórnia, para onde os pais Ricardo Khury Filho e Bianca Zardo se mudaram depois da morte do patriarca Ricardo Khury, filho de Aníbal. O casal até voltou para Curitiba para o nascimento dos gêmeos Guilherme e Rafaela, em 18 de dezembro de 2008, mas logo retornaram a San Diego, onde montaram um restaurante de comida italiana.

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Gui Khury na pista em Curitiba, onde treina

Bola? Skate foi o primeiro brinquedo

"Sempre teve skate em casa, desde pequeno, desde que o Gui nasceu. O primeiro brinquedo que eu comprei foi um skatinho. Mas ele começou mesmo a praticar com quatro anos, quando eu coloquei ele numa escolinha", conta Ricardo.

Quando Gui tinha 5 anos, no mesmo dia, segundo ele, viu pela primeira vez o vídeo do 900 de Tony Hawk e dropou um half pela primeira vez — desceu, de pé no skate, a pista de mais de 4 metros de altura. "Até aí era um desejo mais meu, que ele andasse de skate. Mas ele começou a fazer outras coisas que foram surpreendendo mais. Com seis anos ele já dava 540. Com sete, deu 720. Com oito, deu um 900", lembra o pai.

Ricardo foi skatista amador e, desde que entendeu que o filho tinha um talento fora de série, passou a investir pesado na carreira do menino. Quando a família fechou o restaurante em San Diego voltou a Curitiba, em 2015, Ricardo garantiu que Gui tivesse um half do nível dos que ele andava na Califórnia. Depois de visitar lendas como Sandro Dias e Rony Gomes, que têm seus próprios halfs, decidiu fazer uma pista coberta.

Assim, desde os 7 anos Gui tem à disposição um centro de treinamento coberto, com um half de primeiro mundo e um bowl, erguido no quintal da chácara onde mora a avó Leonor Khury em Campo Largo, na região metropolitana de Curitiba. As viagens à Califórnia, porém, são constantes. "Gosto dos dois lugares. A diferença é que em Curitiba eu me sinto em casa, e na Califórnia eu sinto que estou de férias", diz Gui, que estuda em uma escola internacional de Curitiba e tem aulas em inglês.

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Meta é desafiar a física pelo 1260

Gui tinha oito anos quando fez pela primeira vez o 1080. Foi a 16ª pessoa a alcançar o feito. Desde então, a meta passou a ser completar o 1260, manobra que havia sido acertada uma única vez, em 2012, por Tom Schaar, que então tinha 12 anos, mas em uma mega rampa, o que permite ao skatista pegar mais altura e, consequentemente, ficar mais tempo no ar.

No vert, a manobra seguia inédita. "Para acertar o primeiro 1080 foi aproximadamente oito, nove meses de treino. É uma manobra que machuca muito fácil. É uma manobra violenta", admite o pai, que acompanha de perto os treinos do filho. "O que manda é o treinamento. Ele é consciente do que ele faz, ele passa essa confiança para a gente", diz.

O garoto não tem um técnico oficial, mas recebe orientações esporádicas de nomes como os veteranos Marcelo Kosake e Roger Mancha, na casa de quem Gui treinou antes de ganhar os X-Games com o 1080 que, um ano antes, já havia saído duas vezes em treinos.

Com as aulas presenciais suspensas, o skatista, que estuda em período integral, passou a almoçar em casa e treinar mais descansado. Com acesso irrestrito à pista, acertou a manobra em maio do ano passado, quando tinha 11 anos e cinco meses.

Agora, o objetivo é ainda mais ousado, e talvez impossível: acertar um 1260, que consiste em três voltas e meia sobre o próprio eixo. O desafio é físico. Ao mesmo tempo que o corpo franzino e a estatura baixa ajudam a girar no ar, a falta de força atrapalha para que ele se mantenha sobre o skate após o movimento. O momento ideal para equilibrar as duas coisas é agora.

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"Prefiro não falar dessa pergunta"

Gui aprendeu nos vídeos, e nas diversas competições das quais participou, que um skatista apoia outro. O UOL Esporte acompanhou o jovem skatista em uma competição amadora em São Paulo, onde o menino de 12 anos fez questão de abraçar Wesley Mosquito para dar uma palavra de apoio ao adversário oito anos mais velho: "Confio em você, tenho certeza que você consegue".

Incentivado pelo campeão dos X-Games, Mosquito acertou sua linha e venceu a competição. Gui, que já havia acertado duas linhas e trocou a terceira por uma tentativa de mandar um 720 no bowl (algo raríssimo, que ele conseguiu quando já não valia para nota), ficou em terceiro lugar.

Ao ser anunciado com o bronze em uma competição contra adultos, Gui fechou a cara. Ficou visivelmente bravo com o resultado, que pareceu justo a este repórter. Nos falamos quatro dias depois, por videochamada, que teve a participação do pai e de um assessor de imprensa, e perguntei sobre pressão por resultados. "Prefiro não falar dessa pergunta", disse o menino, que já estava com a resposta — ou a falta dela — na ponta da língua.

Gui, que já é patrocinado pela fintech Ebanx há cinco anos e recentemente virou garoto-propaganda da Garoto, ainda é nominalmente um "amador" porque os regulamentos da Confederação Brasileira de Skate (CBSk) só admitem a profissionalização depois dos 14 anos. Até lá, o curitibano segue competindo entre os amadores. No fim de semana retrasado, ele venceu o Vert Battle, em Atibaia (SP), no quintal de Rony Gomes. Antes, visitou Sandro Dias em Vargem (SP) e acompanhou Bob Burnquist na inauguração de uma pista em Ribeirão Preto (SP).

Diferentemente da maioria dos skatistas, que se especializam em vertical, park ou street, Gui declara que pretende continuar se dedicando às duas primeiras. Assim, ele passa a ser um dos concorrentes por uma vaga nas Olimpíadas de Paris. "Para mim, não faz quase diferença nenhuma competir no vert e no park. Sempre quis ir pra Olimpíada, e vamos ver se consigo", diz o garoto, que já tem a fórmula: "Para conseguir, tenho que treinar mais que todo mundo e me divertir".

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