Máscara e apito

Benevenuto passou 7 meses na linha de frente contra covid: "Via 100 pessoas e sabia que quase todas morreriam"

Brunno Carvalho Do UOL, em São Paulo Thiago Ribeiro/AGIF

O árbitro Igor Benevenuto balançou pela primeira vez diante de uma ambulância que transportava uma idosa já morta por complicações da covid-19. Dentro do veículo, o neto desesperado tentava, em vão, reanimar a avó que o criou. Graduado em enfermagem em 2012, Benevenuto trabalhou por sete meses na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) de Sete Lagoas, em Minas Gerais, e testemunhou muitas mortes, mas aquela o marcou porque atingiu sua memória afetiva.

"Eu me vi na situação dele, porque também fui criado pela minha avó. Ele ficava se culpando, dizendo que não a trouxe a tempo, que a culpa era dele. Foi meio traumatizante."

Conhecido do grande público por apitar partidas do Brasileirão, Benevenuto decidiu encerrar o hiato de seis anos longe da enfermagem no final de março do ano passado, quando o futebol foi paralisado por causa da pandemia. Ele largou o emprego de assessor parlamentar e distribuiu currículos para atuar na linha de frente do combate à covid. Foi contratado como temporário pela UPA de Sete Lagoas.

No combate à doença que já matou quase 250 mil pessoas no Brasil, Benevenuto chorou, se sentiu sozinho e cansado — física e psicologicamente —, aprendeu que, muitas vezes, palavras não bastam para confortar alguém que acaba de perder um ente querido. "Tem que compreender o momento da pessoa. Não adianta arrumar subterfúgios. Deixa desabafar. É muito importante. Foi o que eu fiz: fiquei sentado o tempo todo ao lado daquele rapaz até os familiares chegarem. Isso ficou bem marcado para mim."

Thiago Ribeiro/AGIF
Arquivo pessoal

Sem tempo para chorar

O árbitro também aprendeu que chorar era algo que a rotina não permitia. Não é que as mortes não lhe tocassem. Mas em meio a uma pandemia, um pequeno momento de tristeza pela perda de um paciente pode ser crucial para evitar mais um óbito. "Tem hora que você nem consegue pensar porque já tem outro paciente para cuidar. Depois, sozinho, a ficha cai e você fica mais melancólico".

Em agosto de 2020, a rotina de Igor Benevenuto ficou ainda mais no automático. O Brasil ultrapassava a marca de 120 mil mortos, e os quinze leitos disponíveis na UPA de Sete Lagoas não davam mais conta do tanto de gente que chegava.

"Eu lembro de plantão com os leitos tudo lotado e um monte de gente lá fora ainda para ser atendido. E era aquele trem: transferia gente para o hospital, dava antibiótico para outro e mandava para casa, outros mais leves ficavam ali. E só chegando gente, chegando gente. Dali pra frente foi só assim."

Igor estima ter acompanhado a morte de seis pacientes nos sete meses em que ficou na UPA. O número não foi maior porque os casos mais graves eram transferidos para o hospital central da cidade.

Isso [pandemia] levou todo mundo a um nível de estresse que ninguém conhecia. Você olhava para dentro, via 100 pessoas e sabia que praticamente todas iam morrer. Isso deixa a pessoa emocionalmente muito abalada. Muitos profissionais da área da saúde vão ter que fazer um tratamento psicológico depois."

Igor Benevenuto

Arquivo pessoal

Muito sangue frio

Além de segurar as lágrimas diante das mortes, Benevenuto teve que ter muito sangue frio para lidar com algumas situações de violência que presenciou ou foi vítima na UPA. Certa vez, a familiar de um paciente quis entrar no espaço reservado para o tratamento da covid-19, no qual acompanhantes não eram permitidos.

"Aqui, a senhora não entra", disse Benevenuto, enquanto se posicionava entre ela e a porta como quando aparta as brigas dentro de campo. A fala despertou a ira da mulher, que, segundo o árbitro, desferiu tapas nele e pegou o celular para fazer uma transmissão ao vivo nas redes sociais. "Me xingou de tudo quanto foi nome. Falei: 'não vai entrar, não pode'."

A cena durou pouco tempo antes de a mulher desistir, mas o enfermeiro precisou respirar fundo para aguentar. "Dá vontade de virar a mão na orelha da pessoa, mas tem que ter muito sangue frio. Nessa hora tem que respirar e contar até 10."

Benevenuto também presenciou ataques a colegas. Ele conta que, uma vez, um homem cuspiu no rosto de uma técnica de enfermagem de plantão. "Ele a chamou de vagabunda, piranha, um monte de palavrão. Eu queria matar esse homem. Eu ia para bater, mas respirei e falei 'vamos resolver seu problema'."

Um policial havia acabado de chegar na unidade e foi acionado para levar o agressor.

Pexels Pexels

Vacina e fake news

A rotina na linha de frente ficava ainda mais cansativa quando Benevenuto lia alguma notícia falsa envolvendo a doença. As informações que mais o incomodavam faziam referência a supostos remédios capazes de curar a covid-19.

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) defendeu abertamente o uso da cloroquina (usado no tratamento da malária) contra a covid-19, apesar de não haver comprovação científica. O antiparasitário ivermectina e o antibiótico azitromicina também foram citados para uso em "tratamento precoce" — como a cloroquina, esses medicamentos não têm eficácia comprovada no tratamento da covid e seu uso pode até fazer mal para o paciente em alguns casos. "Se esses remédios fossem solução, não tinha morrido esse tanto de gente, né?"

Diante das mortes, das fake news e do que via diariamente na UPA, cuidar de pacientes com covid já não era suficiente, e Benevenuto queria ajudar ainda mais. O trabalho como enfermeiro o credenciou a se voluntariar para os testes da vacina Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan, em São Paulo, que já teve seu uso emergencial autorizado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Poucas semanas após enviar um email se colocando à disposição, foi chamado para participar do experimento. "Fico muito feliz de ter contribuído para essa história."

A gente se sentia um zero à esquerda. Era um sentimento de impotência porque infelizmente muita gente acreditava nessas fake news. E até gente da área da saúde começou a falar algumas coisas e ter alguns comportamentos que você não sabe de onde vem"

Igor Benevenuto, sobre notícias falsas em relação à covid

Alessandra Torres/AGIF

Três meses intensos

O enfermeiro Benevenuto se dedicou exclusivamente ao combate à covid-19 por cerca de três meses. Fazia turnos de 12 horas e voltava para casa em que mora com seu cachorro para descansar. Em agosto, a rotina, que já era puxada, acelerou de vez com a volta dos campeonatos estaduais, e o enfermeiro/árbitro passou a fazer jornada dupla. Foram 90 dias desse jeito. O desgaste físico e psicológico era cada vez maior.

"O corpo ficava arrebentado. Eu saía do plantão 8 horas da manhã e dormia até as 3 horas da tarde. Almoçava e ia para o plantão das 7 horas da noite. Não tinha contato com ninguém, não fazia nada da minha vida."

Apesar de fazer testes da covid antes de cada partida, a atuação de Benevenuto como enfermeiro poderia ser considerada um risco ao protocolo criado pela CBF para evitar a proliferação da doença nos jogos. Por isso, nas viagens em que fazia para apitar, ele permanecia isolado no quarto do hotel e mantinha o mínimo de contato possível com outras pessoas antes e depois das partidas.

A jornada dupla só era possível porque Igor tinha liberdade para trocar os plantões na UPA. Tinha dias em que ele trabalhava 24 horas direto para conseguir a folga para atuar como árbitro ou árbitro de vídeo. Em novembro, a administração da unidade limitou as trocas a três plantões por mês. Igor teve que escolher entre a enfermagem e a arbitragem. "Não ia largar meus 22 anos de futebol."

Volmer Perez/AGIF Volmer Perez/AGIF

O primeiro jogo

Mesmo com todos os cuidados, Benevenuto não escapou de fazer parte das estatísticas que até agora atingiram mais de 10 milhões de brasileiros: foi infectado pela covid-19 em meados de novembro.

Os primeiros quatro dias da doença foram marcados pela intensa falta de ar e a perda total do paladar e do olfato. Depois de 15 dias em isolamento, o teste deu negativo e ele foi liberado para voltar a trabalhar. Mas o preparo físico ainda era uma dificuldade. "Fui andar um quarteirão com meu cachorro e parecia que tinha corrido 10 quilômetros."

A primeira atuação como árbitro principal depois do afastamento foi em 13 de dezembro, em uma partida entre Brasil-RS e Guarani, pela Série B do Brasileirão. "Estava com receio de não dar conta, mas corri bem. Tive que me esforçar um pouco mais para estar mais próximo dos lances, mas não deu muito problema.". Ao longo dos 90 minutos, ele ficou próximo de percorrer 13 quilômetros.

Definitivamente 2020 foi um ano desafiador para todo mundo. Benevenuto só não imaginava que a decisão que tomou no começo do ano passado, de apitar menos jogos e se especializar para comandar o VAR (árbitro de vídeo), facilitaria a jornada dupla com a enfermagem e o levaria ao quadro da Fifa, o topo da carreira.

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