Eles vieram pra ficar

Influenciadores ligados aos times ganham destaque dando voz ao torcedor, mas despertam pé atrás

Bernardo Gentile, Gabriel Carneiro e Vanderlei Lima Do UOL, no Rio de Janeiro e em São Paulo

Eles são torcedores e ao mesmo tempo comunicadores. Produzem conteúdo sobre o time do coração para outros torcedores, mas circulam em meio a jornalistas que não se manifestam sobre o assunto. Alcançam grande público com desabafos viscerais, mas na maioria das vezes sabem o peso das palavras.

Se você não acompanha ou ouviu falar, prazer: eles são tendência da comunicação, uma nova vertente do jornalismo esportivo como influenciadores digitais. Ou, se preferir, blogueiros, vloggers, youtubers, influencers... produtores de conteúdo que se conectam aos usuários de plataformas e redes sociais e conquistam esse público falando sobre um tema em que são, alegadamente, especialistas.

Neste caso, os times que torcem.

"Não me imagino numa bancada do SporTV ou ESPN falando com o público, não. É um papo de igual para igual e eu acho que isso cativa o torcedor. Se o cara quer ver uma análise tática ele vai ver o PVC. No meu canal ele quer ver o ignorantão, o cara que fala com a mão, que fala cuspindo", diz Rogério Barolo, influencer são-paulino.

A conversa direta com o torcedor é um mérito — e os seis representantes dessa nova vertente da comunicação que conversaram com o UOL Esporte a valorizam muito. Mas os perigos caminham ao lado, como a credibilidade do conteúdo e até tipo de reação que um vídeo mais enraivecido pode causar. Como em todo novo fenômeno, reflexões são fundamentais, o que não vale é ignorar sua existência.

Choque no mercado de trabalho

Gabigol desabafou poucos minutos depois de ser bicampeão brasileiro pelo Flamengo, em fevereiro: "Aquele episódio da torcida [protestos no CT em janeiro] me deixou muito triste, principalmente blogueiros que nem vocês que falaram muita merda (...) Vocês que fazem live, que têm o poder da fala, têm que ter muito cuidado, não agir com o coração e sim com a sabedoria."

Em seguida, mais bem-humorado, ele se virou para o celular com o qual o jornalista Gustavo Henrique gravava a entrevista: "Você corneta bem também a gente, hein?". Todos riram.

Para ele [Gabigol] é muito fácil falar isso. Quero ver estar no nosso lugar com o número de merdas que os jogadores fazem em campo. Aí você fica calado e é taxado como passador de pano. A crítica é normal, o coração nesse tipo de trabalho sempre vai falar mais alto. Influenciar a torcida não é uma coisa que eu faça da minha cabeça, mas se tem um jogador que joga muito mal várias vezes é normal que ele seja jogado contra a torcida, são ossos do ofício."

O canal "Gustavo Henrique Dando Choque" superou 420 mil inscritos no YouTube. No Instagram já são 178 mil pessoas acompanhando as postagens diárias sobre o Flamengo. O influencer alvo da brincadeira de Gabigol hoje tem equipe contratada, com editor de vídeo, social media e comercial. Uma volta por cima para quem foi dispensado da Rádio Globo em 2019, após quase dez anos de trabalho.

"Eu fiquei no rádio 18 anos, mas sempre tive na cabeça o desejo de cobrir o Flamengo do jeito que eu sou, com disposição, alegria e paixão. Hoje o torcedor quer acompanhar o cara que é identificado com o clube. Cada vez mais é pancada, muita coisa negativa em cima do Flamengo, então é bom que a torcida saiba que comigo não vai ter sacanagem porque eu tenho o mesmo objetivo que ela, de ver o Flamengo campeão."

Quando o objetivo de colocar para fora a paixão pelo Flamengo se cruzou com o sustento financeiro deu match: "Empresas de comunicação se acostumaram a escravizar seus profissionais e o YouTube vem no sentido contrário. Hoje eu não tenho patrão."

Viral na crise

"Não me considero influencer de porra nenhuma."

Apesar de negar o rótulo, o jornalista Rogério Barolo, 51, é hoje um dos nomes mais conhecidos pelos torcedores do São Paulo na internet. Ele criou o canal "Barolo Vídeos" em 2017, depois que seu time perdeu de 3 a 0 para o Palmeiras Dudu fez um golaço por cobertura naquele dia: "Eu fiquei passando mal e falei que precisava fazer alguma coisa para colocar para fora essa raiva. Criei o canal para não enfartar."

No começo eram vídeos de 30 segundos para 200 amigos no Facebook. Hoje são mais de 312 mil inscritos no YouTube e quase 72 mil no Instagram ansiosos por suas reações à flor da pele: "Estou gravando e a cachorra passa embaixo do tripé, o tripé cai, chega o entregador de pizza e não paro de gravar. Acabou o jogo, eu ligo a câmera e é um abraço. Não posso perder espontaneidade. É o papo do bar do torcedor."

Barolo viralizou em ano de briga do São Paulo contra o rebaixamento e sua maior audiência até hoje é o vídeo da eliminação do Campeonato Paulista para o Mirassol em 2020. Dois momentos de revolta dos torcedores, representados pelo influenciador. Mas também não é incomum que tal discurso firme e furioso crie uma atmosfera de ódio entre os fãs.

"Eu fui ameaçado de morte pelo WhatsApp. Chamei o estádio do Corinthians de Itaquerão e recebi: 'não é Itaquerão, seu animal, é Arena não sei o quê, eu vou te matar, eu sei aonde você mora'. É assustador isso. Tem outro caso: minha mãe morreu faz dois anos. Fiquei uma semana sem gravar e as pessoas ficaram preocupadas, mandando mensagens. Fiz um vídeo explicando e teve comentário: 'bem feito que a sua mãe morreu, assim você para de falar merda do São Paulo'. Pô, um ser humano está feliz porque a minha mãe morreu?".

Muito torcedor sente falta de se sentir representado. Na imprensa a gente sabe que existem jornalistas travestidos de torcedores, mas essa linguagem da internet é mais direta. No meu caso o são-paulino se sentiu representado porque também queria desabafar numa fase ruim que o time estava vivendo. Eu não gosto dessas coisas, 'ah, o Barolo representa'. Eu não represento porra nenhuma, eu não tenho esse direito. Tenho minha maneira de torcer e pensar e não quero que você pense igual."

Rogério Barolo, Influencer ligado ao São Paulo

Por exemplo, eu acho o Hudson um dos maiores cabeças de bagre da história do São Paulo. Uma vez um moleque falou: 'você tem que respeitar, ele honra o manto'. Eu falei: 'tá bom, véio, eu respeito. Acho que você tem problema mental, mas respeito'. Falei brincando, mas de uma maneira geral não gosto de ser fiscal de torcedor, nunca cheguei no canal e falei 'esse cara é um bosta'. Tem que ter o respeito, minha crítica é sobre desempenho. A única coisa que eu quero é que o meu time seja campeão."

Sobre seu discurso na internet

"Influência digital pode ser para o bem e para o mal", diz especialista

Sandra Turchi é especialista em transformação e marketing digital e tem uma conhecida palestra no TEDxSP com o seguinte tema "Digital: para o bem ou para o mal?". Uma de suas abordagens é sobre o poder da influência digital.

Num contexto em que cerca de 80% dos usuários de internet brasileiros consomem produtos ou serviços após indicação de influenciadores digitais, o debate sobre os discursos também é relevante. "Acredito que hoje a responsabilidade sobre o conteúdo que é produzido é maior devido a esta proximidade com seu público. Ou pelo menos deveria ser, porque vivemos na era da transparência."

Quem é influenciador é porque consegue causar impacto, mudar opiniões e também comportamentos. Isso é parte dos pilares de construção da influência no meio digital. Não dá para ser considerado influencer se você não causar impacto, não conseguir mudar algo no outro, por isso é importante debater esse assunto, tendo em vista que pessoas com menor poder de reflexão e decisão estão sendo influenciadas."

Sandra Turchi alerta para a possibilidade de um "torcedor com microfone" inflamar torcedores e alimentar sensação de violência dentro do futebol — um contraponto válido no debate sobre essa nota vertente sincerona da comunicação: "Costumo dizer que a influência digital pode ser para o bem e para o mal. Isso já acontecia com o público insatisfeito com uma marca, por exemplo. Neste caso, torcedores são como seguidores, consumidores de uma marca [times], e se veem no direito de reclamar e se posicionar. Há quem se posicione de forma correta, mas também há casos extremos."

Tem mulher na área

A inspiração para produzir conteúdo de futebol na internet foi Luana Maluf. Já o nome é ideia do pai, a quem define como "o maior santista que eu conheço". Foi assim que a radialista Isabel Nascimento decidiu criar o canal "Imparcialmente Santista" em setembro de 2017. A plataforma hoje tem quase 35 mil inscritos no YouTube.

"Fui na possibilidade de ver uma mulher falando sobre o time dela, vi que não tinha algo assim no Santos e achei que daria certo. Já o nome é para passar uma sensação mais leve, mesmo. Óbvio que [o canal] é clubista, mas nunca com desrespeito. Há uma necessidade de ser clubista em se tratando de Santos, porque você sabe que todos os grandes portais e TVs não vão falar, então ali é uma casa do Santos, só vai ter coisa do Santos falada por alguém que conhece, que não vai errar nome de jogador."

O lado do "desrespeito" é motivo de reflexão para quem, por ser mulher, já ocupa posição de vulnerabilidade num meio dominado por homens.

Qualquer deslize pode colocar um processo de anos em xeque: "No começo do canal eu fiz um vídeo em que xinguei um jogador de burro. Ele fez uma falta e foi expulso com três minutos de jogo. Na hora de postar meu pai falou: 'Bel, não posta, você tá xingando'. Eu não tinha noção, tinha achado burro mesmo, a gente fala assim quando assiste ao jogo. Mas daí pensei o quanto isso é absurdo e o quanto precisamos ter responsabilidade para não jogar ninguém contra ninguém. Os influenciadores têm poder de inflamar torcedor e não podemos fazer isso."

O "Imparcialmente Santista" hoje tem braços. Isabel escreve uma coluna no portal segmentado "Diário do Peixe" e comanda o podcast semanal "Alvinegras da Vila" com a jornalista Anita Efraim. Ela também faz MBA em marketing digital "para evoluir o canal".

No começo do canal eu fiz um vídeo em que xinguei um jogador de burro. Ele fez uma falta e foi expulso com três minutos de jogo. Na hora de postar meu pai falou: 'Bel, não posta, você tá xingando'. Eu não tinha noção.

Isabel Nascimento, Criadora do canal "Imparcialmente Santista"

Fora da caixa

Outras vertentes da influência digital no futebol

"SCCP Scouts"

O torcedor corintiano mais ligado à tática já conhece o trabalho realizado em Twitter, Instagram, YouTube e portal. É como se fosse um setor de análise de desempenho, que lida com estatísticas e números, mas focado em falar com a torcida de modo acessível: "As grandes mídias estão muito voltadas para o entretenimento. Já o nosso foco é sempre o jogo. Enquanto dizem na TV que faltou raça ou boa arbitragem, falamos do campo", diz Iúri Medeiros, um dos colaboradores do SCCP Scouts. Os responsáveis dizem já ter sido criticados por "quererem ensinar o torcedor a torcer" ou "elitizar a análise", mas não ligam.

"Parmera Mil Grau"

O humor é a ferramenta de influência digital do projeto criado em 2012, num contexto em que o rival Corinthians dominava dentro de campo: "Eles ganhando tudo e o Palmeiras sendo rebaixado, então a gente começou a fazer humor", diz Erlan Aparecido de Jesus, um dos administradores da página. Os pós-jogos são os conteúdos que mais rendem interação: "O Rony fez um gol e já colocamos ele recebendo a Bola de Ouro." Erlan diz que entende a responsabilidade do "Parmera Mil Grau", o que ajuda a evitar perseguição a jogadores e até piadas discriminatórias: "Tentamos deixar a zoeira dentro do futebol."

"Querem que eu seja torcedor o tempo todo"

Thiago Franklin, responsável pelo "Canal do TF - Tudo sobre o Glorioso" no YouTube, vive na pele a certeza de que a influência digital pode ser também um ambiente hostil. É que além de opiniões e lives pós-jogo, ele apura informações sobre o Botafogo. Deu o furo de reportagem da contratação do goleiro Douglas Borges no mês passado, por exemplo.

"Alguns torcedores não me enxergam como jornalista, mas como um influenciador. Então se der uma notícia que a torcida não goste eles vão reclamar, dizer que eu deveria segurar. Sou um setorista independente, mas ele [torcedor] quer que eu seja torcedor o tempo todo. Tenho minha função de jornalista e algumas notícias que dou geram problema", diz, antes de completar:

"Se a pessoa trabalha em um grande portal e dá uma notícia, não recebe as críticas que eu recebo. Essa é a parte complicada."

O influencer botafoguense ganhou notoriedade no Orkut. Em 2010, ele antecipou a contratação de Maicosuel — era uma notícia muito aguardada pelo torcedor, o que fez sua popularidade bombar na internet. Depois investiu em Twitter e blog e até virou blogueiro do globoesporte.com, mas só há pouco tempo engrenou (financeiramente): "Foram nove anos dedicados ao jornalismo sem receber nenhum dinheiro. Isso só mudou quando migrei para o YouTube."

Hoje são 127 mil inscritos. Ele já chegou a bater quatro milhões de visualizações num mês. "Sobre o futuro? Acredito que o público vai definir quem vai continuar ou não. Quem é bom vai ter audiência e poderá seguir independente."

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