À espera do campeão

Jovens esperam solução de impasse no Instituto Gabriel Medina, e ídolo diz que trabalha em opções para sua ONG

Demétrio Vecchioli Do UOL, em São Paulo Mariana Pekin/UOL

Desde que a família de Ayrton Senna homenageou o piloto com a criação de um instituto que leva seu nome, a fundação de uma organização de terceiro setor virou um mandamento no manual de construção da imagem de um ídolo. Discípulo dessa cartilha, Gabriel Medina encomendou um projeto a uma agência de talentos, cinco anos atrás, e o Instituto Gabriel Medina foi lançado com pompas no verão de 2017.

Enquanto do lado de fora, na praia de Maresias, milhares de pessoas se aglomeravam para ver de perto ídolos do esporte, da televisão e da música, subiram em um palco que estava voltado para os VIP's que estavam dentro do instituto nomes como Thiaguinho e Gabriel Pensador. Antes que a festa entrasse noite adentro, Gabriel sentou-se entre a mãe, Simone, e o padrasto, Charles, para falar à imprensa sobre o projeto familiar.

No telão foram exibidas mensagens parabenizando o surfista, entre elas, uma do amigo Neymar, que desejou que o clã Medina fosse tão feliz com o instituto quanto ele era com o dele. Também falaram o ex-judoca Flávio Canto, que, junto à mensagem de boas vindas ao terceiro setor, fez um alerta: "É um caminho sem volta".

Hoje, o Instituto Neymar Jr. está fechado por causa da pandemia, mas Neymar banca os salários de seus colaboradores e a volta das ações depende da liberação das autoridades sanitárias. O Instituto Reação, de Canto, está aberto, com restrições, também pela pandemia. O Instituto Gabriel Medina, não. Está fechado e o retorno das atividades não tem prazo. A história que você vai ler a seguir fala de quando as portas se fecharam, mas também dos jovens talentos que foram impactados por essa decisão.

Mariana Pekin/UOL
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Prédio do Instituto Gabriel Medina, que está à venda

Medina está descobrindo agora esse "caminho sem volta" citado por Flávio Canto. Sem nunca ter se envolvido diretamente com seu instituto, exceto para surfar e jogar videogame com os meninos e meninas atendidos, o tricampeão mundial assumiu a presidência da instituição há cerca de dois meses, ocupando o vácuo de poder deixado pela deposição da própria mãe.

Depois de investir mais de R$ 3 milhões (em valores de 2017) na compra e reforma do ponto que se tornou referência em Maresias, graças à localização central, com saída para a rodovia e para a praia, Gabriel perdeu o imóvel para a mãe. Era no nome dela que estava registrado o bem. Ficou só com móveis, documentos, equipamentos e troféus que eram ali expostos.

"Não foi minha escolha fechar o instituto. Nunca quis isso", disse Medina, com exclusividade, à reportagem, dizendo que "se viu obrigado" a lidar com um acordo judicial. O terreno onde funcionava o IGM, que não estava em seu nome, fez parte da divisão dos bens.

O espólio imaterial do Instituto Gabriel Medina, cerca de 60 jovens surfistas que tinham na entidade uma escola e também um trampolim para, um dia, serem como o ídolo, ainda não foi tocado. Foi atrás deles que o UOL Esporte se deslocou até Maresias, no litoral paulista, na semana passada.

Felipe Rodrigues/Click Surfing Felipe Rodrigues/Click Surfing

Xenofobia em Maresias

Fabrício Rocha (nas fotos acima) tinha 12 anos quando viu na televisão que Gabriel Medina estava selecionando jovens surfistas para o instituto que saía do forno. Com o sonho de ser profissional, faria de tudo para mostrar que merecia aquela chance, nem que tivesse que percorrer 3 mil quilômetros entre a periferia de Natal (RN), onde morava, e a praia de Maresias, em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, onde seriam as seletivas.

Nada que ele e o pai, Alexandre, não estivessem acostumados a fazer pelo sonho. Quando Fabrício tinha 7 anos, os dois viajaram até o Rio de Janeiro com passagem só de ida e planos de dormir debaixo do palanque para participar de uma competição. O dinheiro da família, que vinha da venda de salgados, sempre foi contado, mas era ganho em nome do surfe.

A gente sempre foi junto nessa vida. Eles estão comigo no sonho. Eles fazem a parte deles, e eu faço a minha, que é na água."

Fabrício Rocha

Felipe Rodrigues/Click Surfing
Fabrício Rocha

Fabrício não foi bem em nenhuma das duas seletivas, mas acabou convidado a fazer parte do instituto depois de fazer amizade com Sophia Medina. Irmã mais nova de Gabriel, ela também era atendida pela organização —agora, trabalha com Charles Saldanha, seu pai e antigo técnico de Gabriel, em busca de uma vaga na elite do surfe feminino.

Os Rocha então fizeram as malas, deixaram amigos e familiares no Rio Grande do Norte e se mudaram para Maresias. "A gente sofreu muita coisa, humilhação, porque aqui tem também muita xenofobia. Para mim foi mais mais fácil, eu era novo, sou bem solto, converso com todo mundo, mas para eles foi difícil", diz o surfista, que hoje está com 17 anos e, este ano, estreou com um 65º e um 81º lugares no circuito de acesso da WSL.

Potiguar como o campeão olímpico Ítalo Ferreira, ele não tem dúvidas sobre quem é seu surfista preferido: "Gabriel, fato. Ele é o melhor do mundo, não tem discussão sobre isso, é o que é mais difícil de se vencer. É também quem eu tenho mais intimidade, a gente joga videogame junto, temos uma intimidade", afirma Fabrício, cuja mãe, Patrícia, trabalha como empregada doméstica na casa do ídolo.

Divulgação
Fachada do Instituto Medina, antes do fechamento

Instituto para alto rendimento

Enquanto a maior parte dos projetos sociais ligados a atletas funciona no âmbito do esporte educacional, usando a prática esportiva como ferramenta de desenvolvimento social, o Instituto Gabriel Medina nasceu com espírito meritocrático. Em um ano eram atendidos no máximo 60 jovens, de 10 a 16 anos, selecionados a partir do talento no surfe, fossem eles ricos ou pobres.

Os escolhidos recebiam preparação de atletas de alto rendimento. Tinham aula de natação, apneia (para aguentar os caldos), movimentos acrobáticos, inglês e espanhol. Recebiam acompanhamento psicológico, odontológico e de preparação física, além das aulas de surfe em si, com vídeo análises dos treinos. A lógica de captação e lapidação de talentos é a mesma da natação, por exemplo, mas nunca havia sido aplicada no surfe.

O projeto ambicioso atraiu jovens como Gui Fernandes (nas fotos abaixo), que então tinha 11 anos. Natural do norte de Ubatuba, quase divisa com o estado do Rio, ele se mudou com a mãe para Maresias. Até achar um local para morar, e em um período em que ela precisou se ausentar, chegou a viver na casa dos Medina.

Marcelo Cedeño/@m.cedeno Marcelo Cedeño/@m.cedeno

Eu não tenho nada para reclamar da Simone, do Charles, do Gabriel, Sempre me trataram muito bem. A Simone sempre me recebeu bem, o Charles também."
Gui Fernandes

Assim como no caso de Fabrício, a mãe dele também trabalhou na casa de Gabriel, deixando a função no início da pandemia. Nalva e Gui voltaram para a praia de Prumirim, em Ubatuba, onde o surfista agora tenta recomeçar. Seu pai, Cláudio, leva o filho todo dia até o centro da cidade, em um trajeto de 64 quilômetros, para que ele tenha aulas de surfe e faça preparação física.

"Quando eu voltei para cá, dei uma desandada. É difícil, quando você tem uma rotina, sair dela. No instituto tinha natação, funcional, técnico. Agora não, tem que correr atrás, achar um lugar para fazer preparação, correr atrás de um técnico", lamenta Gui, que tem 15 anos e segue tendo Medina como inspiração: "tanto dentro quanto fora da água".

Mariana Pekin/UOL
Pôster de Gabriel Medina em Maresias ao lado do prédio do instituto

Patrocínios e treinos de manhã, tarde e noite

Um mês antes de ser inaugurado, o Instituto Gabriel Medina já tinha mais de R$ 700 mil, em dinheiro público, em suas contas. Enquanto a sede era construída, o Ministério do Esporte aprovou a captação de R$ 3,7 milhões na Lei de Incentivo ao Esporte só para o primeiro ano de trabalho. Logo, empresas do porte de Samsung, Oi e Microsoft fizeram as primeiras doações e, na festa de abertura, 16 marcas já foram apresentadas como "parceiras".

Em pouco mais de quatro anos, a entidade captou quase R$ 6,5 milhões só via Lei de Incentivo, sem contar os apoios diretos. A verba pagava toda estrutura de treinamento, mas não remunerava atletas, que ganhavam pranchas, roupas de borracha e acessórios. Além disso, eles tinham taxas de inscrições de competições pagas e, nos primeiros anos, recebiam hospedagem, transporte e alimentação nos torneios.

"Eu não tive essa estrutura que estou podendo colocar hoje para essas crianças. Se tivesse, teria facilitado e sido muito bom. Isso aqui é uma boa oportunidade para todos esses moleques, que sirva de exemplo e seja o início de uma grande mudança", disse Medina no lançamento do seu instituto.

Mariana Pekin/UOL Mariana Pekin/UOL

Por três anos, essa mudança de fato aconteceu. "Eu não tinha tempo. De manhã era escola, saía da escola direto para o instituto, almoçava lá, fazia todos os treinos e às 18h ia para casa, chegava 'cansadasso', só tomava um banho, jantava e dormia para ir para a escola outro dia", conta Cauã Gonçalves (nas fotos acima), um dos surfistas naturais de Maresias que fizeram parte do projeto.

No Instagram, ele ainda se apresenta como um atleta do IMG, mas à reportagem admitiu que o sonho acabou. Esta é uma impressão que Cauã tem ao passar em frente ao prédio vazio, que agora tem uma placa de vende-se, não exatamente porque em algum momento alguém tenha dito que o fechamento por causa da pandemia seria definitivo. "Não tem notícia, não teve nada. Ninguém nunca falou nada, nunca ninguém deu satisfação."

Em nota à reportagem, Medina pela primeira vez afirmou que pretende solucionar o problema: "Estou em busca de um formato de gestão confiável e profissional — como tenho feito com a minha carreira—, que possa garantir segurança às famílias. Essas pessoas merecem isso, esse é um compromisso que eu tenho e que irei cumprir."

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Chandler Ribeiro

Quem ficou busca campeonatos. Que não acontecem

Os ex-atletas do IGM ouvidos pela reportagem são unânimes em colocar a ONG de Gabriel Medina (nas fotos abaixo, também) como um divisor de águas na vida deles. "O que eu sou hoje, a cabeça a que eu tenho hoje, foi graças ao instituto. Se eu hoje dou aula, vou trabalhar para ter um bom equipamento, conseguir viajar, competir, é por causa do instituto. Lá, a gente tinha todo suporte físico e mental. Quem passou por lá não vai ter do que reclamar. Quem eu sou é graças ao instituto, às pessoas que estavam lá", afirma Chandler Ribeiro.

Nascido e criado na praia de Cambury, que fica a cerca de 10 quilômetros de Maresias, ele chegou à instituição convidado por Charles Saldanha, e é da geração que estaria em seu último ano no grupo da entidade, agora que tem 16 anos.

Chandler — cujo nome não tem relação com o personagem de Friends — também não foi avisado sobre o fim do instituto e agora dá aulas de surfe para conseguir se manter e bancar os custos que antes eram cobertos pela ONG, especialmente com equipamentos. O natural seria, nessa fase de sua carreira, começar a se sustentar com premiações, mas a pandemia paralisou os campeonatos de base, que já estavam escassos.

Mariana Pekin/UOL Mariana Pekin/UOL

Se o surfe brasileiro quer formar novos Medinas, esse é o primeiro gargalo a ser superado. "Estão faltando competições da WSL (World Surf League) no Brasil e mais patrocínios para a galera do Brasil", reclama Cauã, um dos poucos com patrocinador grande, a Nicoboco.

Sem um circuito nacional júnior, os surfistas não têm rotina de competição, não ganham dinheiro, não passam pelo funil natural do esporte e têm que se contentar com os "surfe treinos", eventos locais, de cada praia, quase sempre semanais.

"Todo campeonato regional a gente tenta ir para estar preparado para uma competição grande. Mas não tem competição", lamenta o ex-integrante do instituto de Medina.

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