"Ainda falta muito"

Isaquias Queiroz discute racismo, baianidade e metas na caminhada para virar o maior atleta olímpico do país

Demétrio Vecchioli Colaboração para o UOL, em São Paulo Adriano Vizoni/Folhapress

Isaquias Queiroz já chegou onde nenhum outro brasileiro havia chegado antes. Com três medalhas nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, duas de prata e uma de bronze, o canoísta se tornou o primeiro atleta do país a ir tantas vezes ao pódio de uma só edição olímpica.

O que para tantos é muito, para o baiano é pouco. "Ainda falta muito para me tornar um ídolo nacional", analisa. Não por falta de resultados. Só em Campeonatos Mundiais, são 12 medalhas em seis anos. Na temporada passada, pela primeira vez, sagrou-se campeão mundial no C1 1.000 m, prova olímpica. "Diferente de anos passados, hoje o reconhecimento pelos resultados é grande, isso não tem como negar".

Aos 26 anos, Isaquias usa como parâmetro para medir seus feitos não o que fizeram outros atletas antes dele, mas o que ele pode alcançar nos próximos anos. Com mais três Olimpíadas, se tudo der certo, sua coleção de medalhas pode ser maior do que a de qualquer outro. "Tenho muita medalha para conquistar para poder me tornar um grande atleta brasileiro", diz.

E ainda falta o legado. "Depois da carreira, preciso ajudar principalmente a Bahia. Pretendo ir para lá desenvolver um projeto para ensinar a garotada a remar", conta, acrescentando mais essa responsabilidade à longa lista de objetivos a serem alcançados antes de se aceitar como um ídolo nacional.

Ao UOL Esporte, Isaquias falou desses objetivos, das metas já alcançadas, da ausência do espanhol Jesus Morlán, de negritude e de preconceito.

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"Ele é mais ídolo do que eu"

Quando coloca na balança duas referências da canoagem velocidade brasileira, Isaquias desconsidera o peso de suas muitas medalhas para valorizar a formação de atletas. Nessa conta, o verdadeiro ídolo da modalidade no país não é ele, mas o conterrâneo Jefferson Lacerda.

"Ele é mais ídolo do que eu. Além de ser atleta, ele formou campeões, como eu. Se não fosse ele, eu não seria campeão. Para ser melhor que ele, eu preciso fazer isso, ajudar a desenvolver a canoagem e ajudar outros atletas. Ele foi atleta e, graças a ele, não só eu como o Erlon nos tornamos esses atletas que somos hoje", justifica — Erlon Souza foi o parceiro de Isaquias na conquista da medalha de prata no C2 1000 nas Olimpíadas de 2016.

Canoísta de Ubaitaba (BA), Jefferson fez parte da primeira equipe brasileira a disputar uma Olimpíada na modalidade, em Barcelona-1992. Já aposentado, de volta à cidade, virou treinador no programa Segundo Tempo, do Governo Federal. O projeto durou oito meses na cidade, mas as aulas foram mantidas por Jefferson e por seu colega Figueiroa Conceição. Do grupo de dez garotos que começou a treinar em 2005, saíram Isaquias e Erlon.

"Depois que terminar minha carreira, quero desenvolver um projeto social para tentar aparecer novos atletas e ajudar bastante", diz Isaquias. Se Jefferson foi pioneiro em participações nos Jogos Olímpicos, ele abriu a porteira das medalhas. "Hoje em dia, todo mundo vê que não é tão complicado ganhar medalha. Dá para treinar e ganhar."

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Baianidade brasileira

Isaquias se incomoda quando a imprensa o trata como "o baiano". "Não, eu sou brasileiro. Por que, quando vai fazer uma matéria com o pessoal do sul, é 'o brasileiro não sei o que'? Por que quando é baiano tem que ser baiano? Tenho que ser Brasil", justifica.

O desconforto com a referência usual à Bahia não é falta de orgulho de sua origem. Isso Isaquias tem de sobra. O problema é o preconceito que muitas vezes vem associado à baianidade. "Tenho raiva quando o pessoal fica com piadinha com baiano, que é preguiçoso. Dou logo a piadinha na cara: 'Baiano é preguiçoso, mas o campeão do mundo de uma prova de velocidade é um baiano, e sou eu'".

"Eu vejo que as pessoas da Bahia são pessoas felizes. É nosso jeito de viver. A gente gosta de ser feliz, gosta da festa, gosta da Bahia. A gente é feliz, o nordestino é feliz. É um dom que Deus deu pra gente."

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A casa e a mãe

Ele tenta se desapegar dos clichês, das generalizações, mas cai em uma ao explicar por que sente que a mãe não consegue ficar muito tempo fora de casa. "Acho que nós, baianos, temos esse problema de não conseguir ficar longe da Bahia", diz.

Seja por ter puxado a mãe ou por ter nascido na Bahia, Isaquias também tem essa característica. Atualmente morando em Lagoa Santa (MG), onde o Comitê Olímpico do Brasil (COB) montou um centro de treinamento para a canoagem velocidade, o medalhista olímpico deixa claro que está ali como uma etapa da sua vida profissional. Seu lugar é na Bahia.

"Estou quase vivendo a metade da minha vida na seleção. Às vezes, sinto saudade da Bahia, de estar com meus amigos. Hoje eu estou aqui por causa da seleção, mas quando falar 'chega', minha casa é na Bahia, minha vida é na Bahia, então vou partir para a Bahia de novo para voltar para onde gosto de morar", explica.

Com o que ganhou na canoagem, Isaquias comprou uma casa "boa" para ele e para a mãe em Ubaitaba. Mas o dinheiro pode até comprar uma nova residência, mas não novos hábitos. Dona Dilma não consegue ficar muito tempo longe da antiga casa, mais humilde. Isaquias também não.

"Meu objetivo era comprar uma casa para a gente morar junto, mas ela não gostou muito, porque tem escadas. E ela gosta de ficar na outra casa dela, onde tem todos os vizinhos do antigo bairro que a gente morava. Ela gosta de estar no meio do pessoal. E quando vou para a Bahia, eu também vou para lá, que é o pessoal que eu cresci".

Com aplicações bancárias e estudando investir em Bolsa de Valores, Isaquias se orgulha do que conseguiu construir. "Hoje, graças a Deus, eu tenho uma condição física bem melhor do que meus pais tinham", diz, ressaltando que sua família não era "pobre", mas "humilde". "Lógico que meu pai faleceu novo, mas nunca chegou a faltar nada dentro de casa. Minha mãe trabalhava na rodoviária, varria lá, às vezes vendia amendoim. Sempre tive orgulho do trabalho dela."

Reprodução/Instagram

Treinos, sonecas e Sebastian

Isaquias mora hoje numa casa de cerca de 3 mil metros quadrados, com piscina, academia de ginástica e vários quartos. Mas não há luxo. Hoje atleta do Time Petrobrás, patrocinado pela estatal, e contratado do Flamengo, o canoísta segue colocando sua vida esportiva acima da vida profissional. A casa é o alojamento de toda a equipe que treina em Lagoa Santa, incluindo equipe técnica.

O 12 vezes medalhista mundial tem privilégio por ter um filho. Assim, ele, a esposa e o pequeno Sebastian dividem um chalé dentro do terreno onde fica a casa principal, que tem cinco quartos. A alimentação é contratada pelo COB junto a um buffet.

Por causa do adiamento da Olimpíada, a comissão técnica optou por dar um descanso à seleção. "Em relação ao que eu treinava, eu digo que estou fazendo atividade física ao ar livre. Nessa altura do campeonato eu estaria treinando intensamente. Acho que mais tô praticando atividade física do que treinamento, que para mim é mais intenso", explica.

Com ou sem pandemia, a vida é pacata. Envolve correr em volta da lagoa, remar, comer, malhar e dormir. "Sempre fui tranquilo em relação à concentração. Sempre vivi mais descansando, fazendo meu treinamento. Quando é final de semana fico mais em casa", conta.

Num bairro pacato, a única dificuldade é tirar a soneca da tarde. O pequeno Sebastian, dois anos e meio, é elétrico como o pai e não o deixa dormir. "Minha esposa tem que levar ele para fora. Ele é muito alegre, muito feliz. Espero que ele possa praticar um esporte e, se for canoagem, vou ficar muito feliz."

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O novo técnico

Em entrevista ao UOL Esporte em julho do ano passado, Isaquias contou que o técnico Jesus Morlán, morto em novembro de 2018 depois de perder a batalha contra o câncer, havia deixado 700 horas de treinamentos para serem aplicados até os Jogos Olímpicos de Tóquio. Foi isso que foi contado à época ao canoísta, ainda que não seja bem assim.

"Foi uma coisa mais para deixar a gente motivado. Depois, vim a saber que não era verdade. Ouvi alguns comentários na TV da Espanha e eu percebi que não tem como deixar um treinamento programado para o ano inteiro. Você tem como deixar planejamento de quantas semanas máximas, quantas semanas fracas, quantas sessões de força, de corrida, mas o treinamento diário não tinha", revela.

Jesus era extremamente sistemático e adotava um modelo de treinamento baseado na repetição. O programa de treinamento de Isaquias em 2019 seria idêntico ao de 2015, que por sua vez seria idêntico aos anos pré-olímpicos do espanhol David Cal, ouro em Atenas-2004, que também foi treinado por Jesus.

O que varia é o detalhe do treinamento, definido no dia a dia. Para que confiasse no trabalho de Lauro de Souza, o Pinda, que era assistente de Jesus e virou treinador principal, Isaquias recebeu uma informação imprecisa. Por causa dela ou não, fato é que o medalhista olímpico está à vontade com o novo técnico.

"O Lauro aprendeu muito com o Jesus. Todo mundo viu o resultado que deu em 2019, que a gente ganhou um ouro e um bronze no Mundial. Eu não sei se tinha ou não um treinamento já pronto para 2019, mas se tinha ou não o Lauro aprendeu muito bem com o Jesus e soube administrar muito bem a canoa. Tanto que eu fui campeão mundial pela primeira vez nos mil metros", comenta.

Eduardo Knapp/Folhapress Eduardo Knapp/Folhapress

A décima medalha de Morlán

Classificado para a Olimpíada no C1 1.000m e no C2 1.000m, quando mais uma vez vai remar com Erlon Souza, Isaquias está em busca da 10ª e da 11ª medalhas, não da quarta e quinta, respectivamente. É que, na cabeça dele, o resultado é o fruto do trabalho de Jesus, que chegou ao Brasil já com seis medalhas no currículo, todas treinando David Cal, maior atleta olímpico espanhol em número de medalhas.

"A nossa briga em Tóquio não vai ser para ganhar a minha medalha, do Erlon, mas a décima medalha dele. O projeto todo foi dele, o desenvolvimento foi dele, acreditar na gente e no Lauro foi (coisa) dele, então o mérito todo é dele", justifica.

O brasileiro, porém, reconhece a participação de Lauro. Afinal, foi ele quem, há 13 anos foi buscá-lo na rodoviária de Cascavel em seu primeiro Campeonato Brasileiro de categoria e que hoje é o treinador responsável por levá-lo ao primeiro título mundial no C1 1.000m, prova olímpica.

"Acho que o Mundial do ano passado foi muito importante para valorizar nosso trabalho com o Lauro. Era muita pressão em cima dele, em relação a ser o primeiro ano sem o Jesus", afirma.

O problema é que, se Jesus sempre adotou a tática de esconder o jogo, agora que é campeão mundial, Isaquias chega à Olimpíada como favorito. "É ótimo, mas a mídia vai ficar em cima. Eu gosto dessa pressão, mas a gente também prefere ficar um pouco mais oculto. É muito melhor você ganhar medalha sem ninguém estar acreditando em você. É melhor ficar oculto para chegar na hora agá e ganhar a medalha", diz o brasileiro, acreditando, porém, numa disputa sem favoritos.

Adriano Vizoni/Folhapress Adriano Vizoni/Folhapress

Morando e treinando em Lagoa Santa, Isaquias faz parte de uma estrutura que supervaloriza a seleção brasileira. Mesmo assim, no começo do ano passado ele acertou sua volta ao Flamengo, clube que defendia quando foi campeão mundial júnior, e pelo qual vai competir raríssimas vezes.

O acerto, segundo ele, não foi pelo dinheiro, mas pela chance de deixar um legado no clube rubro-negro e em uma cidade como o Rio de Janeiro. "Minha ida ao Flamengo foi para ajudar a desenvolver a canoagem no Rio. Não só no Flamengo, mas quem sabe outros clubes aproveitarem essa oportunidade de ingressar a canoagem nos clubes dele", explica.

"O Rio tem estrutura boa para pegar atleta. Dá para pegar atletas do remo, que são enormes e podem querer praticar canoagem. O Rio vê muito o remo, falta ver a canoagem. Meu objetivo quando fui para o Flamengo era fazer meu nome no Flamengo a ajudar a desenvolver a canoagem lá. Tem tudo. Estrutura, material, tem um local bom, então é só questão de tempo para começar a garotada começar a praticar."

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