O artista está faminto

Isaquias Queiroz se afastou da seleção, quase ficou sem vaga olímpica, mas agora está com fome de medalhas

Demétrio Vecchioli Colunista do UOL, em São Paulo Phil Walter/Getty Images

Quando penso em Isaquias Queiroz, a primeira coisa que me vem à mente não são as medalhas olímpicas que o vi ganhar no Rio e do outro lado do mundo, mas um pedido de entrevista.

Em Tóquio, as provas da canoagem ficavam em um lugar de difícil acesso, eu havia perdido a hora do ônibus de imprensa, e tomei um táxi para cobrir as eliminatórias. Chegando lá, descobri que só era possível entrar por um extremo da raia, o oposto ao que eu desci. Após meia hora andando no sol escaldante, perdi tanto a prova quanto a entrevista coletiva.

Cheguei cansado, esbaforido, derretendo, e vi Isaquias de longe, entrando na área restrita aos atletas. Fiz um sinal a ele e pedi uma palavrinha rápida. Ele voltou, expliquei minha situação, e pedi para fazer duas perguntas, para que eu não perdesse a viagem.

"Não tem pressa, não. Você tá fazendo o seu trabalho, respondo tudo que precisar", ele me disse. Voltou à zona mista e respondeu por 10 minutos às mesmas perguntas que provavelmente haviam sido feitas pelos colegas que chegaram na hora certa.

Isaquias não precisava ter voltado. Mas não só voltou como foi além. Desde então, me pergunto por quê e como um traço aparentemente banal de personalidade ajuda a construir a mente de um campeão.

É em busca dessas respostas que o UOL abre uma série de especiais com perfis de estrelas do esporte olímpico brasileiro que vão aos Jogos Pan-Americanos de Santiago. Boa leitura!

Phil Walter/Getty Images

Sumiço repentino

No começo deste ano, foi Isaquias Queiroz quem se atrasou para um compromisso. Mas, no caso dele, de forma proposital. Encerrada a folga de Natal e Réveillon, o baiano simplesmente não voltou para Lagoa Santa (MG), onde fica o centro de treinamento da seleção brasileira masculina de canoa.

"Até aquele momento, a gente não tinha tido nenhum tipo de discussão, atrito, nada. Ele não avisou que não voltaria", lembra Lauro de Souza Junior, o Pinda, técnico da equipe.

Isaquias havia chegado ao seu limite, depois de oito anos vivendo em regime de concentração na cidade próxima de Belo Horizonte. De início, a ideia de uma seleção permanente era divertida. O baiano era um molecão de 20 anos quando se mudou para lá, dividindo casa com os amigos.

Mas o tempo passa para todo mundo, até para os imortais. Isaquias construiu família e as relações pessoais se modificaram. "Eles deixaram de ser os garotos que jogavam videogame juntos. Agora cada um tem sua família. Ele foi ficando sozinho, e ele é um cara de grupo", diz a médica e amiga Ana Carolina Côrte, antes de completar: "O artista precisa do público"

Adam Pretty/Getty Images Adam Pretty/Getty Images

Centro das atenções

"No meio dos canoístas, ele é conhecido por todo mundo. Ele não fala uma palavra em inglês, mas para pra falar com todo mundo. Se tem alguém perto que fala inglês e sabe traduzir, ele puxa. Se não, fala em português mesmo. Ele não tem vergonha, ele é assim", conta Ana Carolina, que o acompanhou, entre outras competições, no Mundial deste ano, em Duisburg (Alemanha).

Médica da equipe de futebol masculino do Corinthians e antiga chefe da área médica do COB, ela já lidou diretamente com centenas de atletas, dos mais variados perfis. E vê em Isaquias características únicas.

"O Isaquias é um cara que domina. Ele é um artista, é um personagem diferente, ele gosta de aparecer. Ele é cativante. Onde ele está, ele é o centro. Se a gente está em uma mesa de restaurante com toda a equipe, ele é o centro da mesa. Ou o assunto é ele, ou é ele quem traz o assunto, mas tudo gira em torno dele, porque ele é assim. Ele é o artista".

Daí vem a explicação para minha pergunta: Por que ele voltou para falar comigo em Tóquio? "Porque todo artista precisa de palco".

Reprodução SportTV Reprodução SportTV

Fora de forma

A necessidade de um palco ajuda a explicar também por que Isaquias não voltou das férias na Bahia. Se por um lado pesou muito a vontade da esposa, então grávida do segundo filho do casal, de ficar perto da família, de outro havia o interesse do campeão olímpico de estar próximo dos seus maiores fãs: a mãe, os irmãos e os amigos de infância.

E uma indiscutível saturação de oito anos de uma vida dedicada exclusivamente à canoagem em Lagoa Santa. "Ele estava há mais de 10 anos longe de casa, vivendo onde não tinha por perto os amigos", diz Pinda, antes de iniciar uma explicação que não cita o nome de Isaquias.

"O atleta começa a ter sucesso, ganhar dinheiro, a ver que ele pode ter outros prazeres na vida. Esses prazeres começam a competir com a vida de atleta. De repente o atleta começa a ter uma certa liberdade, financeiramente ele está bem, todo local que ele vai as pessoas querem tratar bem, ele tem a falsa sensação de liberdade, que ele pode tudo. Mas não pode querer fazer tudo e ser campeão."

Adaptando esse relato ao caso Isaquias: sem um ano pós-olímpico de maior relaxamento, uma vez que este ciclo olímpico é mais curto, e após longos cinco anos de um ciclo de incertezas, o baiano fez uma lista de sacrifícios que topava fazer pelo ouro em Paris-2024, e deixou "morar em Lagoa Santa" de fora.

"Ele precisava de uma pausa, como todos os campeões olímpicos precisam depois de uma grande conquista. Ele precisava vivenciar isso, saborear essa conquista", diz uma pessoa próxima.

Dono de quatro medalhas olímpicas, considerou que merecia ficar mais perto de casa. Ficou treinando em Ilhéus, em estrutura muito precária. Não deixou de cair na água, mas não se manteve como atleta de ponta. Quando o técnico da seleção foi ao seu encontro na Bahia, Isaquias estava não pouco, mas muito fora de forma. Faltavam três meses para o Mundial.

Um atleta com as qualidades do Isaquias a gente não encontra todo dia. Surge um desses a cada 20, 30, 50 anos?

Lauro de Souza Junior, técnico de Isaquias

Pelé da canoagem

Fosse no futebol, Isaquias receberia o carimbo do termo da moda: "geracional". Pelé chutava bem com a direita e com a esquerda, cabeceava bem, driblava bem, lançava bem. Até pegar no gol ele pegava bem. Mas como medir o talento extraordinário na canoagem, onde a única ação é remar?

Pinda explica: "Ele é mentalmente muito bom, é muito inteligente na hora da competição, sabe o que precisa fazer durante a prova, tecnicamente ele é muito bom e fisicamente ele é muito bom. A gente encontra atleta que tem uma dessas qualidades, duas, mas nas outras nem tanto. O Isaquias é bom ou excelente em todas. Ele está no topo do mundo em quase todas".

O treinador detalha o "controle corporal" como um diferencial do campeão olímpico. "Tem atletas que eu estou há três anos tentando corrigir um gesto técnico. Com o Isaquias, é só falar: eu quero que você faça assim, e na primeira vez ele já vai lá e faz".

Jesus Morlán, técnico que levou Isaquias à Olimpíada do Rio, e que morreu em 2018, contava que Isaquias impressionava os engenheiros da fábrica que produzia os barcos utilizados pelo Brasil. Sentava nos protótipos, remava por alguns minutos, e voltava apontando detalhadamente o que estava errado. Os profissionais checavam e Isaquias estava sempre correto.

Fome em Paris

Todo esse talento, porém, não é nada sem treinamento, ainda mais em um esporte cíclico. E o de Isaquias é, desde os tempos de Jesus Morlán, meticuloso e repetitivo. São de 44 a 48 semanas de treino até o pico da performance, mas, por causa do período que passou treinando por conta na Bahia, o campeão olímpico não teve mais do que 90 dias para se preparar para o Mundial Pré-Olímpico.

Acostumado a treinar muito e competir pouco, Isaquias pela primeira vez foi a uma competição de ponta sem estar no nível adequado, e quatro quilos acima do peso. Nesse contexto, o 6º lugar no C1 1.000m e uma vaga olímpica conquistada pela lista de espera acabaram não sendo um prejuízo tão grande.

Mas Isaquias, que nunca gostou de perder nas partidas de baralho ou de videogame com os amigos em Lagoa Santa, odiou ainda mais o gostinho agora que a disputa era para valer.

É Pinda quem conta: "O Mundial mexeu muito com ele. Ele está puto, revoltado, quer mudar, e mudar o quanto antes. Ele está com fome, sabe? Eu estou tendo até que segurar. Se deixar, ele quer ir para ganhar o Pan. Que ganhe, mas sem fazer a preparação. Nosso foco está em Paris, e é lá que ele vai matar essa fome".

Phil Walter/Getty Images Phil Walter/Getty Images

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