Montanha-russa

Jair Ventura planeja retomar carreira após quarentena; ele chama Corinthians de "prova de maturidade"

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Marcello Zambrana/AGIF

Foram dias de um constrangimento tão forte na rotina do Corinthians que dava quase para tocar.

Enquanto Jair Ventura comandava treinos e jogos na reta final do Campeonato Brasileiro de 2018, o clube negociava o retorno de Fábio Carille. Conversas iniciais e detalhes que levaram ao acerto eram publicados diariamente pela imprensa. Não tinha segredo para dirigentes, jornalistas, funcionários, jogadores e nem para o próprio técnico, por mais que versões e declarações oficiais indicassem o contrário.

"Foi difícil saber tudo o que estava acontecendo e ser a mesma pessoa. Eu não mudei uma vírgula na minha rotina. Da mesma maneira que cheguei eu saí do Corinthians. Acabou que aconteceu o que todos previam."

Aos 39 anos, ele viu escorrer entre os dedos a temporada que era para ser sua consagração. A demissão aconteceu em 3 de dezembro, dia seguinte a uma derrota para o Grêmio. Já são mais de 500 dias sem o nome numa ficha técnica depois de um episódio que ficou marcado de maneira superlativa na vida: "Foi o momento mais difícil da minha carreira, sem dúvida. Continuar o trabalho tendo que fazer com que os jogadores me vissem como comandante."

Foi a maior prova de maturidade da minha vida.

Jair conta nesta entrevista ao UOL Esporte que se vê melhor e mais forte depois do episódio. Ele desenvolveu estratégias de defesa e enfrentamento de rótulos que carrega desde antes, quando trabalhou no Botafogo e no Santos, enumera os grandes jogadores de quem participou da formação e conta que espera trabalhar ainda em 2020, mais de um ano depois da montanha-russa de emoções vivida no Corinthians: "Por isso meu ano sabático. Foi demais."

Marcello Zambrana/AGIF

Clique para assistir à entrevista de Jair Ventura

Marcello Zambrana/AGIF

"Tem que saber perder": 88 dias como técnico do Corinthians

Durou menos de três meses o último trabalho de Jair Ventura. Os altos e baixos foram tão acentuados que ele viu a necessidade de uma pausa na carreira: foi emoção demais. Contratado em setembro de 2018, ele estreou em um clássico fora de casa contra o Palmeiras. Na sequência, enfrentou o Flamengo no Maracanã pela ida das semifinais da Copa do Brasil. Missões pesadas logo de cara.

Antes do jogo de volta contra os rubro-negros, vivenciou um treino aberto para mais de 40 mil torcedores na Arena Corinthians: "Falei com o Andrés [presidente do clube] que era o único treino que eu tinha para fazer uma jogada ensaiada, uma bola parada, e ele: 'está bem, o que eu falo para a Fiel?'. Não tem jeito, vamos abrir. Foi de arrepiar, torcida apoiando, cantando. Muita gente na rua agradecendo pela primeira vez que foram à Arena. Uma pena que acabamos perdendo o título."

Depois de passar pelo Flamengo, o Corinthians de Jair Ventura perdeu o primeiro jogo da final para o Cruzeiro e trouxe a decisão para Itaquera. Foi o jogo da polêmica: a arbitragem de vídeo anulou um gol de Pedrinho que colocaria o time da casa na frente (2 a 1) aos 24 do segundo tempo, por falta de Jadson em Dedé. O Cruzeiro venceu por 2 a 1 e foi campeão. Jair saiu da Arena sem chances de ficar em 2019.

Se você pegar minha coletiva, no dia eu não falei, mas agora posso: não foi falta do Jadson no Dedé. Mas agora já era, agora fica choro. Falar de arbitragem é chororô, tem que saber perder. Treinador tem que saber perder. Vamos para a próxima e que a gente corrija o erro com gol

Jair Ventura, sobre a polêmica arbitragem de 2018

Eu faria tudo de novo hoje, pela grandeza do clube. Sou amigo de muitos treinadores que tiveram chance de ir para grandes clubes e perderam a oportunidade de vestir aquela grande camisa. Eu estive, cheguei a uma final, dei um treino aberto, inesquecível na minha vida

E a passagem pelo Corinthians

"Você quer falar de algum rótulo?"

Jair Ventura venceu só 4 em 19 jogos pelo Corinthians. É o pior desempenho da carreira iniciada em 2016 e reforçou algumas impressões ruins deixadas no Santos e no Botafogo. "Tem que ter um motivo para você perder, e aí entram os rótulos. Mas quando você ganha, os rótulos não aparecem", diz, questionado sobre sua imagem.

Mas você quer falar de algum rótulo? De repente eu posso me defender.

A defesa sobre a imagem de retranqueiro (ou reativo, para ficar mais bonito), Jair Ventura já tem na ponta da língua: "Sabe qual foi meu somatório nos três times, em 157 jogos como treinador? Tive mais a bola do que menos a bola. Sou menos reativo e com jogo mais posicional."

O treinador calculou junto com os profissionais de sua comissão técnica a porcentagem de posse de bola em cada jogo da carreira e concluiu que os números não condizem com os rótulos: seus times tiveram mais tempo a bola no pé em mais de 60% das partidas."Você pode falar: 'ah, teve posse de bola, mas não soube usá-la'. Tudo bem, mas vamos entrar em outro debate. Nesse, é simples: se eu quisesse ser reativo, eu não poderia ter mais posse de bola."

Jair Ventura acredita que a missão dos treinadores é "conseguir os objetivos de maneira diversificada". Ou seja, se o elenco não permitir nada além de retranca (ou futebol reativo), que assim seja. O resultado é o mais importante.

"Em 2016, ganhei o prêmio inédito de treinador revelação do ano, votado por jornalistas. As pessoas que me deram um prêmio inédito, que guardo com carinho até hoje, falaram bem de mim. Por que, se falarem mal, vou levar para o pessoal?"

Ale Cabral/AGIF Ale Cabral/AGIF

"Gostinho de trabalho interrompido"

Badalado pelo trabalho no Botafogo, Jair Ventura chegou ao Santos no começo de 2018 com status: o clube, endividado, pagou multa rescisória para tê-lo. Era a primeira vez do treinador longe do clube onde aprendeu tudo, uma jornada com premissas interessantes. Não deu certo.

De janeiro a julho, 39 jogos. Ele foi demitido com o time em 15º lugar no Brasileirão, mas classificado para as oitavas de final da Libertadores e quartas da Copa do Brasil. O substituto foi Cuca, que deixou o Santos em 10º na tabela, longe da ameaça de rebaixamento, mas eliminado das outras competições na mesma fase em que assumiu. São os números que dão força aos argumentos do antecessor: "No ano anterior, eu cheguei em semi de Copa do Brasil e quartas da Libertadores pelo Botafogo. Por que não chegaria mais longe, mais experiente, pelo Santos?".

"Fica aquele gostinho de que poderíamos ter ido melhor, de que o trabalho foi interrompido. Se me mandaram embora pelo trabalho ser regular é porque esperavam um trabalho fora de série, como foi no Botafogo. Mas não é sempre que você fará trabalhos espetaculares."

Me fala um treinador que tenha feito trabalhos espetaculares em todos os times que dirigiu.

Circulou pela internet nas últimas semanas uma montagem dizendo que Jair Ventura foi o técnico que não conseguiu fazer Bruno Henrique, Rodrygo e Gabigol renderem no Santos de 2018. As "fake news" o irritam: "Perdi o Bruno Henrique com oito minutos da minha estreia e ele voltou nos meus três últimos jogos." Ainda assim, Jair carrega com orgulho ter dado sequência a Rodrygo e descoberto Diego Pituca no Santos B: "Não foi um trabalho excelente, mas não teve um grande vexame."

Vitor Silva/SSPress/Botafogo

No Botafogo, os picos

O Botafogo ainda é o clube que melhor explica Jair Ventura. Filho do ídolo Jairzinho, ele chegou em 2008 para trabalhar como preparador físico, comandou o sub-20 e foi auxiliar até a efetivação como treinador, oito anos depois. Assumiu o time na 17ª posição e terminou o ano em quinto, classificado para a Libertadores de maneira inesperada.

E melhorou: o Botafogo fez incrível campanha na Libertadores. Foi o primeiro time a vencer cinco campeões na mesma edição (Colo Colo, Olimpia, Estudiantes, Atlético Nacional e Nacional) e só caiu em duelo apertado com o Grêmio (futuro campeão) nas quartas.

A derrota para os gaúchos por 1 a 0, que tirou o Botafogo da Libertadores, é a mais sofrida da curta carreira. A vitória mais comemorada é na mesma competição: 2 a 1 sobre o Estudiantes com gol de bicicleta de Roger no estádio Nilton Santos. Os mais de 30 mil presentes cantaram "Parabéns para você" ao técnico cheio de moral.

Foi um case de sucesso do futebol reativo: "Não posso botar o Jair na frente de uma instituição, colocar o nome do Jair para o Brasil como bom futebol e deixar o Botafogo em 17º, como estava quando eu assumi. Levei ele para quinto. Foi da melhor maneira? Foi da maneira que era possível."

Daniel Vorley/AGIF Daniel Vorley/AGIF

É hora de voltar

A pandemia do novo coronavírus atrapalhou os planos de Jair Ventura de voltar ao trabalho em 2020.

Além do esgotamento causado pelo trabalho no Corinthians, ele queria curtir a filha Maria Thereza (nascida em julho de 2018) e se aprimorar antes de cair de cabeça num novo trabalho. Isso além de evitar o desgaste da imagem, é claro. O que explica o ano sabático já encerrado.

"Muitos clubes me procuraram ano passado. Se tivessem me procurado esse ano eu já estaria trabalhando. Descansei, curti minha filha, aprendi. Agora espero que tudo possa normalizar esse ano e a gente volte a trabalhar."

Ele está no mercado.

Todas essas experiências pelos três times, experiências fora de campo, 20 jogos em Libertadores... Tem treinadores experientes que sonham em disputar e eu disputei duas consecutivas. Você sabe como é difícil classificar, ainda mais em primeiro. Já fiz coisas bacanas, para me orgulhar, e outras nem tanto, que preciso repensar

Jair Ventura, num resumo da própria carreira

Vida em quarentena

Enquanto não chega a hora de trabalhar...

Reprodução/Instagram

Estudos

Pela internet, Jair tem usado o tempo livre da quarentena para estudar periodização tática -- uma linha de pensamento que diz que as partes física, técnica e psicológica do futebol são desenvolvidas a partir de uma organização de jogo.

Reprodução/Instagram

Família

Os horários para estudos e outros afazeres são regulados pela rotina da filha, Maria Thereza, de 1 ano e 9 meses: "Inclusive, marquei nesse horário a entrevista porque ela tem um soninho depois do almoço", diverte-se o papai.

Reprodução/Instagram

Idiomas

Jair Ventura dedica horas do dia a cursos de inglês e francês. Ele já teve vivência com os idiomas por ter jogado profissionalmente no Gabão e na 4ª Divisão da França e decidiu aprimorar a fluência de olho em janelas profissionais.

Reprodução/Instagram

Conferências

A comissão técnica que acompanha Jair Ventura, com profissionais como o auxiliar Emílio Faro, faz videoconferências com o treinador para discutir tendências do futebol, erros e acertos do passado e perspectivas de futuro, segundo ele.

VI Images via Getty Images

Jairzinho em quarentena

Jair tem passado os dias longe do pai, Jairzinho, o Furacão da Copa de 70. Aos 75 anos e, portanto, na idade de risco da Covid-19, ele foi isolado em um sítio em Miguel Pereira, no interior do Rio de Janeiro. A propriedade é de Janaína, irmã de Jair Ventura, e a forma de comunicação mais simples é por chamadas de vídeo: "Ele fica com saudade da netinha, ficamos distantes. Sabemos o sofrimento."

Além do pai, também estão no sítio a mãe, a irmã, o cunhado e o sobrinho, Jair Neto — atleta do Botafogo sub-11 no futsal. Todos instalados desde 16 de março, no acompanhamento das notícias sobre a pandemia. E Jair na capital com a esposa Aleandra e a filhinha: "Que possamos sair desse momento delicado melhores, valorizando as pequenas coisas."

"A gente não pode passar por um momento tão difícil e ser a mesma pessoa. Não é possível, né?".

Bruno Riganti/AGIF

Parada há mais de 500 dias, a carreira de Jair Ventura começou meio por acaso. Ele era assistente de Ricardo Gomes no Botafogo até o técnico receber uma proposta do São Paulo e topar. A ideia era levar Jair junto para o futebol paulista, mas o novo clube não aceitou, porque já tinha sua comissão técnica fixa. Jair ficou, foi interino e acabou efetivado. O resto você já sabe.

A próxima parte desta história é o futuro. "Muita coisa aconteceu, mas tenho muito espaço para evoluir."

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