A vida é como um raio

A última entrevista de Jesús Morlán, o técnico que transformou a canoagem do Brasil e fez de Isaquias campeão

Luiza Oliveira Do UOL, em Lagoa Santa (Minas Gerais) Alexandre Rezende/UOL

No fim, Jesús Morlán sorriu. "Acabou? Eu gostei. Me senti muito à vontade". Retribuí o sorriso feliz de poder tornar agradáveis aquelas horas do que seria seu último aniversário. Prometi enviar a reportagem quando fosse publicada. Dez dias se passaram e veio a notícia. A vida é mesmo um raio.

Enfim, a reportagem está pronta, mas ele não vai poder lê-la. Entregou em minhas mãos a missão de escrever sua história sem ter ao menos o direito de questioná-la. Não é fácil tomar a decisão de publicar diante de todas as subjetividades e interpretações que o jornalismo e a vida podem gerar.

A ideia sempre foi homenagear a vida e a carreira do maior técnico de canoagem do mundo que garantiu ao Brasil três medalhas nas Olimpíadas do Rio em 2016. Mas se tornou mais que isso. Seria muito egoísmo guardar apenas para mim todas as lições daquela tarde. Seria injusto não dar uma singela contribuição para eternizar sua história.

Esse é o relato da última vez em que conversamos com Jesús. A entrevista aconteceu em 1º de novembro de 2018. O treinador não resistiu ao câncer e morreu no dia 11 do mesmo mês. Dois anos e nove meses depois, Isaquias Queiroz, seu maior pupilo no Brasil, conquistou a medalha de ouro olímpica nas Olimpíadas de Tóquio-2020.

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A vida é um raio. Um curto circuito

"O que eu tenho é um câncer no cérebro, entende? É inconstante. Vai falar 'acorde', eu acordo. Amanhã vai falar 'não acorda' e eu não acordo mais. É assim. É inconstante. Não é uma doença que você vai ficar mal, mal, mal e vai apagar. É assim, 'pá'!

É como um curto circuito, como um raio. Isso é o que mais me incomoda. Para um cara que é um psicopata do planejamento como eu, é difícil não ter controle. Não posso falar para minha mulher: 'Mama, amanhã vamos fazer isso'. Porque eu não sei. Eu tenho tudo com cadastros, mas uma parte está descadastrada. Mas ninguém tem a segurança de nada.

Não quero nem pensar muito nisso porque é como uma loteria, não depende nada de mim. Antes, pensava muito. Mas aprendi a não sofrer. Aprendi que quanto mais penso, pior para mim."

Juca Varella/Folhapress Juca Varella/Folhapress

Quem era Jesús Morlán?

Jesús Morlán revolucionou a canoagem de velocidade no Brasil e foi o maior responsável por tornar Isaquias Queiroz o maior medalhista brasileiro em uma única edição dos Jogos. O baiano conquistou duas pratas e um bronze. Um dos vice-campeonatos olímpicos conquistado ao lado de Erlon de Souza. Ele ainda fez de David Cal o maior medalhista da história da Espanha nas Olimpíadas, com cinco medalhas. E não estava satisfeito. Tivesse continua por aqui, teria comemorado o ouro de Isaquias em Tóquio-2020 e, quem sabe, comemoraria ainda mais em Paris-2024.

Como técnico, Morlán tinha controle sobre tudo. Maior treinador da canoagem do mundo, era obcecado por números. Sua vida era baseada em planilhas de Excel com dados exatos sobre treinos, vento, água, corpo humano e qualquer outra informação que você possa imaginar. Ele tinha cada passo calculado e sabia o caminho para conquistar uma medalha olímpica.

Como homem, Jesús teve de aprender que não tinha controle de nada. Quando vivia um dos momentos mais bonitos de sua carreira, aos 50 anos, e ao lado da tão amada mulher Tânia e da pequena Sofia, recebeu uma notícia devastadora. Poucos meses depois do auge nos Jogos Olímpico do Rio de Janeiro, em 2016, a descoberta de um tumor no cérebro tornou sua vida uma bomba relógio.

Te restam 14 meses de vida"

Foi o que ele ouviu do médico. "'Vou morrer em 14 meses', pensei. Essa era minha vida fantástica. Amigo, você não é tão importante. Não adianta dizer que não. Mas tudo bem. Aqui estamos. A melhor vida é ter vida".

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"Hoje é meu aniversário"

São 15h de uma quinta-feira qualquer, com cara de chuva, em Lagoa Santa. Chego no hotel e envio uma mensagem para Jesús só para ganhar o tempo de ir ao banheiro e passar um pó no rosto para espantar a cara de sono da viagem: "Oi, Jesús. Chegamos". No mesmo segundo, vem a resposta: "Eu também". Eu, que me achava esperta até então, tomei no contrapé. Era a primeira lição do dia.

Enfio tudo na bolsa de qualquer jeito e saio correndo do banheiro. A pontualidade não é, digamos assim, meu ponto forte. E sabia que dessa vez não poderia cometer falha tão grave. Repito na minha cabeça: "Jesús é obcecado por planejamento e números. Não vá ferrar a entrevista".

Encontro Jesús Morlán sentado no sofá do hall do hotel onde mora. Ele tem um olhar focado e mantém a coluna bem ereta auxiliada por um colete cervical. Na frente, segura um andador. Chego meio sem jeito, sem saber como cumprimenta-lo com aquele aparato, mas ele logo quebra o gelo.

"Hoje é meu aniversário", diz, para a minha surpresa - que logo é interrompida por um apito no celular. Era mais uma mensagem de felicitação. "Está um pouco complicado hoje", brinca.

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Morlán está completando 52 anos. Ele sabia que talvez fosse o seu último aniversário e, ainda assim, topou passar a tarde de um dia tão precioso conversando sobre a vida com uma desconhecida. Tudo bem que a entrevista tinha sido difícil de marcar. Mas não por isso.

Falávamos há algumas semanas e ele respondia, sempre, que estaria disponível no dia seguinte. Mas quando perguntado sobre um prazo maior, afinal, era preciso ir de São Paulo para Belo Horizonte, nunca se comprometia. "Não sei se estarei aqui".

Não era uma dúvida existencial. O técnico tinha prevista uma viagem para Houston-EUA, onde faria nova fase do tratamento. Mas estava à mercê da agenda do médico, o imunologista James P. Allison. O médico acabara de receber o prêmio Nobel de medicina e estava em uma série de compromissos oficiais.

"Acho que estou em boas mãos", brincou durante sessão de fotos antes da entrevista. Era um claro sinal. Morlán ainda conseguia manter o bom humor mesmo tendo que se sentar, levantar, posar e sorrir para o fotógrafo sob o sol que surgia no céu. Mesmo sendo obrigado a abrir mão do seu tão estimado planejamento.

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O dia em que descobriu a doença

Até poderíamos contar o dia em que Jesús Morlán descobriu a doença. Aconteceu em 2016, em novembro, pouco depois de seu aniversário de 51 anos. Mas as palavras dele são muito mais precisas para entender o que aconteceu.

"Foi uma merda. Não lembro exatamente a data, nem quero lembrar. Estava na casa com os meninos, tinha as pernas cruzadas e falei para o pé: 'Sai daí'. Não saía. Tive de fazer manualmente. Senti a minha cabeça muito quente. Era de manhã e falei: 'Vou para cama me deitar. Não me sinto muito bem'. E não acordei.

De repente, estava num voo de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro. Acordei num hospital que era uma coisa cinco estrelas, numa suíte gigantesca. Abri os olhos e, na TV, vi assim: 'Trump é eleito presidente dos Estados Unidos'. Eu pensei: 'Ah, muito boa a piadinha. Cadê as câmeras do Ratinho?'. Eu achava, mesmo, que era uma piada. Chegou uma senhora e disse: 'Jesús, você foi operado'.

Eu ainda achava que era uma brincadeira. Só que eu não sentia nada na parte esquerda do meu corpo. Chegou um médico para explicar o que tinha acontecido, mas não entendia nada do que estava acontecendo. Não dá para racionalizar. E eu sou muito do raciocínio. Sou de números, da matemática.

No segundo dia, chegou Tânia, a minha esposa. Só pensava na minha filha. Pensava em Sofia e só chorava. Não parava. Não sabia que o meu corpo tinha tanta água. Não conseguia mexer meu corpo, não mexia nada. Então, imaginava que não poderia mais correr com a minha filha. Não poderia carregar a minha filha."

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"Você tem filhos? Não? Então não tenha. No dia em que tiver um filho, vai ficar louca. Você não consegue pensar em outra coisa. Só vai pensar nessa porcaria. Todos os dias. Sério. É como um namorado ou namorada que você tem na cabeça e não consegue pensar em outra coisa. Eu só penso na minha filha. Todo dia.

Na mulher, você pensa porque é sua mulher. Mas a criança, por ser pequena, pela fragilidade de ser pequena, você trabalha pra que não faltem condições pra ela. De repente, seu mundo é essa porcaria pequena. Mas é uma sensação maravilhosa porque é seu pequeno amor. Uma coisa absurda.

É uma doença. Não tem mais pra você, só pra ela. E como são bons os beijos dos filhos! Durma com um filho, você vai ver. Você dorme com um namorado, é normal. Durma com um filhinho, assim, vai ver. É a coisa mais gostosa do mundo.

Agora, naquele dia, eu pensei: se não posso fazer nada, como posso dar sustento à minha filha? Minha filha passaria fome. Minha filha não teria condições de vida. E não era por Tânia, que eu amo muito, muito, muito mesmo. Mas era Sofia. Eu fechei os olhos e imaginava minha filha passando fome e chorando. Imaginava a Larinha, filha do Erlon, chorando. E chorando junto com Sofia.

Não, não, não. De jeito nenhum. Vou me recuperar, vou trabalhar. Vamos ganhar em Tóquio, vamos seguir brilhando. E, se Deus quiser, vou chegar até Paris. Vamos ganhar grana, caralho! Vamos brilhar, vamos ganhar mais duas medalhas."

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A dura rotina da quimioterapia

A batalha contra o câncer foi árdua, mas Jesús Morlán se manteve forte até o fim para aguentar cada sessão de quimioterapia. "Sempre fui um paciente bom pra caramba, mas algumas químios foram duras. Eu fazia e saía como se estivesse completamente bêbado. De levantar e sentir que você vai cair. Tinham dias que saía mal, mal, mal".

Mesmo debilitado, ele fazia o tratamento e no dia seguinte já estava na lancha. Deixava até os médicos assustados. "A doutora falava: 'Era pra você estar na cama. Você é um cavalo'. Não, eu aguentava tudo isso e aguentava mais".

Internamente, porém, Morlán sabia que não era essa fortaleza toda. "Você sabe não está exatamente igual. Você sabe que está limitado e tem uma dependência. Algo ficou pelo caminho, mas ao mesmo tempo você não está horrível. Eu senti uma facada em mim, mas não estou tão mal".

Moacyr Lopes Junior/Folhapress Moacyr Lopes Junior/Folhapress

Os caras de fora me enxergam como um Deus. Eu vou nas provas e me cercam como se eu fosse um robô. Você pensa que eu me importo com cinco, oito, dez medalhas? Isso é como você me enxerga. Eu não sou Deus. Eu sou uma pessoa normal. Se você quiser me enxergar como um monstro, o problema é seu. O endeusamento nunca vai chegar na minha vida. Menos ainda depois do câncer."

Morlán, sobre ser respeitado em eventos internacionais

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Como surgiu o fenômeno Morlán?

Jesús teve uma infância feliz. Começou a praticar o esporte aos 13 anos por influência dos amigos. Mas acredite: o rei da canoagem nunca soube andar de canoa de verdade. "Eu subo na canoa, posso ir direitinho, mas não consigo ir rápido. Eu era o pior dos meus amigos. Chegava em último sempre".

A canoa, então, se tornou um desafio. Ao não conseguir rema-la, era preciso decifrá-la. Certa vez, alguém o perguntou como alguém que não praticava a modalidade poderia ser técnico: "Cara, igual ginecologistas são homens. Senão, todos os ginecologistas do mundo teriam de ser mulheres. É absurdo isso".

"Eu tenho um amigo que fala para mim: 'Como você entende tanto de canoa se você não sabia andar de canoa?'. Eu respondi: 'Se você subisse na lancha comigo, ficaria louco de ver como eu entendo das canoas. Porque você, que remava, quando subir na lancha não vai perceber metade do que eu percebo olhando'".

Eu chegava em último, mas eu fui aos Jogos Olímpico, não vocês'".

Morlán, sobre as piadas com os amigos

O sucesso é feito de números

Moacyr Lopes Junior/Folhapress

"Minha vida são os números. Por isso sou um bom técnico. Sou rápido em calcular segundos, décimos, velocidades. Os treinamentos são décimos de segundos, segundos, velocidades, quilômetros por hora, GPS. Eu subo na lancha e sou como um copiloto de rali.

Amanhã a gente vai sair para remar. Então temos que fazer 90 minutos de remo a 140 pulsações por minuto. No caso do Isaquias, por exemplo, tem que fazer 15 km no mínimo. Não pode vir mais rápido nem mais devagar do que isso. Depois, tem que fazer 350 abdominais e correr 30 minutos. À tarde, tem que fazer 3 séries de força máxima, depois 3 tiros de 100 metro em ritmo 6. É fechar a semana com 17 horas, 40 minutos e 125 km. No cálculo final, mensal, do ano, para 46 semanas, são 4.400 km e 750 horas de trabalho no total.

Há um cronômetro e o cronômetro não mente. Quando você faz 3min32 nos 1.000 metros, você vai ganhar uma medalha sempre. Ou baixa o capeta na sua raia ou você vai ganhar uma medalha. Essa é chave do sucesso. Esse é o segredo. Saber esses números e fazer esses números. É como uma formiga, entendeu? Você pode ganhar na Mega-Sena, mas uma medalha você não ganha assim. Não é por acaso. Está tudo planejado, calculado.

Na canoagem, eu sou, provavelmente, o técnico mais bem-sucedido do mundo. Eu levo oito classificações, oito medalhas. Eu não sei o que é não ganhar uma medalha. Como dado, isso é absurdo. Eu não sei o que é não ganhar. Eu só sei o que é ganhar. Quando o Isaquias ficou em 3º nos 200, lembra? Eu, durante dois segundos, achei que ele tivesse ficado em 4º. Não gostei dessa merda de sensação. É absurdo ganhar oito de oito."

Moacyr Lopes Junior/Folhapress Moacyr Lopes Junior/Folhapress

Na competição eu me mantenho calmo. Porque não vou ver nada que não tenha visto nesta lancha. O que eu posso fazer? O atleta fica a 500 metros de mim. Por mais que eu grite, eles não me escutam. Não posso fazer absolutamente nada. Não posso intervir na corrida deles. Tiveram 46 semanas para essa merda."

Morlán, sobre a cobrança a seus atletas

Moacyr Lopes Junior/Folhapress

A necessária rigidez com seus pupilos

Essa obsessão por números criava situações engraçadas. Uma delas aconteceu no início de seu trabalho com os brasileiros. "Eu pegava no pé deles. No início era porrada todo dia. Eu lembro que, quando cheguei aqui, no primeiro dia de treinamento falei: 'Vamos remar 70 minutos'. Um cara remava 60 minutos e parava".

Ao ouvir que o atleta estava cansado, a resposta foi dura: "Eu te perguntei o que você queria fazer? Eu falei para você fazer isso, cara? Não me importa se você está cansado. Eu falei para fazer isso. Eu falei para você remar 70 e você decide 60? Por quê? Ele [outro remador] é um filho de um Deus menor e você é filho de um Deus maior?"

Depois, ele ainda explicou o que aconteceria à tarde por causa do não cumprimento das ordens matutinas. "Eu perguntei: 'O que você vai fazer à tarde?' Ele respondeu que a tarde era livre. 'Não. Você vai fazer o que não fez de manhã. Que se foda. Não tem mais tarde livre. Se você não concorda, não tem problema. É só fazer as malas e deixar a equipe'".

Essa rigidez, porém, não impediu que os atletas criassem laços de afeto. "Tenho muito carinho por eles. São meus atletas. São meus meninos, mas não me sinto o pai deles. Isaquias sente como se eu um fosse um paizinho dele, de algum jeito o Erlon também. Mas não aceito essa figura. Não sou o pai deles porque é impossível substituir um pai", diz.

"Eu nunca menti para eles. Se eles fazem merda, sou o primeiro a falar: 'Vem aqui, seu filho da puta. Você está fazendo uma merda, cara'. Eu falo, sou transparente. Nunca menti para eles. Nunca me envolvi em temas econômicos com eles e nunca vou me envolver".

Moacyr Lopes Junior/Folhapress

Insatisfação permanente

"Sou assim desde sempre. Desde a primeira medalha. Eu ganhei a primeira medalha internacional como técnico em 1997. Eu levei meu menino da Espanha [o multicampeão David Cal], que era júnior, e ganhamos um bronze no Mundial. Isso não me bastou. Para mim não era suficiente.

Eu via que todos estavam felizes e eu: 'Porra, por que vocês estão felizes? Eu sou bronze de um Mundial e sinto que não é o bastante, não entendo como vocês estão felizes. Por que você está dando risada se você é 5ª ou 6ª?'

Eu sou um anormal ou infeliz? Eu percebi que o esporte de alto rendimento era legal, mas era foda. No ano seguinte, o menino foi campeão do mundo. No ano de 2004, foi campeão olímpico, caralho. Toda a geração de juniores da Espanha já não existia mais. Ficaram todos pelo caminho. Eles e a sua felicidade.

O esporte não é diferente do mundo real. Quem passa num concurso público? Um cara burro? Não. Um cara inteligente. E pensa que não estudou? Estudou pra caramba. 'Ah, deve ter um padrinho bom'. Por que você acha que tem um padrinho bom? Se você quer se consolar, pode se consolar com isso. Eu sempre pensei na recompensa.

Quando eu ganhava ouro, eu sabia por que eu ganhava ouro. Eu sei por que Isaquias não ganhou ouro no Rio. Agora, no Mundial, sei por que ganhamos ouro e por que não ganhamos prata. Tenho claro. Não adianta inventar desculpas. Quando você ganha ouro, você nunca inventa desculpas. A vida segue. Não se pode chorar."

Alexandre Rezende/UOL

"Meu pai é um exemplo de vida. Ele trabalhou por 50 anos no escritório dos Correios. Nunca saiu para tomar café. Ele tinha direito de sair para tomar café, mas nunca fez isso. Ele falava que o Estado não o pagava pra tomar café. No último dia de trabalho, os filhos foram busca-lo. 'Pai, saia pra tomar café'. Ele não queria. Todos os companheiros dando risada. Ele já era diretor, e nós o levamos pra tomar café. Ele estava preocupado. 'Nossa o escritório, o escritório'. Pensava que o escritório sem ele não ia funcionar. Essa é a mentalidade correta, de seriedade."

Sobre a obsessão com o trabalho

Damien Meyer/AFP

O ouro que não veio

Nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, a canoagem do Brasil chegou ao auge. Isaquias Queiroz se tornou o brasileiro com o maior número de medalhas em uma mesma Olimpíada. Mas não ganhou o ouro. Um raro momento em que a situação saiu de seu controle.

"Na final do C-2 1000, eu estava preocupado. Estava ventando muito. Via a medalha de ouro ir embora. Perdemos o ouro para a Alemanha porque a prova tinha que ser mais rápida e, com o vento, ia demorar demais. A gente poderia fazer 3min30s, mas estávamos com muito vento contra e os alemães eram muito grandes, bem mais pesados que a gente".

Os alemães Sebastian Brendel e Jan Vandrey garantiram o ouro com 3min43s912. Isaquias e Erlon fizeram 3min44s819. "A prova demorou 14 segundos a mais do que deveria demorar. Aí você percebe que está perdendo um ouro e não tem nada a fazer", explica.

"Se o vento virasse, a gente ganhava com certeza. Mas, com o vento contra, eu sabia que a gente ia perder. E como definimos isso? Ganhamos uma prata ou perdemos um ouro? Na verdade, são as duas coisas. As condições foram o que foram. A gente remou o que tinha que remar. Fizemos uma prova perfeita, parabéns aos amigos da Alemanha".

O beijo da pantera

O momento da comemoração daquela medalha era vivo na memória de Morlán. "O Isaquias ganhou uma medalha e me deu um beijo. O beijo do Isaquias é como se uma pantera tivesse te dando um beijo", lembra. "Então Veio o Erlon correndo, tremendo e me abraçou chorando: 'Obrigado, obrigado, obrigado'. Nunca tinha ganhado uma medalha olímpica. Só lembro do Erlon chorando. Eu acariciando a cabecinha dele: 'Não chore, filho, não chore não'. Eu gosto muito desse menino. Só acariciava aquela carequinha negra porque ele nunca teve um momento assim".

"O menino da Espanha ganhou cinco medalhas e nunca me deu um abraço. Não dá para comparar como chorava o Erlon me abraçando com as cinco medalhas do menino da Espanha. O carinho de Erlon é incomparável. Devolvo as cinco medalhas da Espanha pelas três do Brasil agora mesmo. Não é que eu despreze as medalhas da Espanha, mas é o apreço que eu tenho pelas medalhas do Brasil", fala, citando David Cal.

Matt York/AP 	Matt York/AP

Para mim, parar de trabalhar é igual a morrer. É que você não tem escolha. Se você se rende, você está fodido. Você tem que lutar. A vida não é fácil pra ninguém."

Morlán, sobre porque não parou ao descobrir a doença

O que ainda o motivava para ir a Tóquio

"Quando fiquei doente e me vi com o pé no outro mundo, aprendi algo muito importante na vida: você não vale nada. O que vale da vida é a sua família, se você tem um filho, o seu filho. É pai, mãe e, principalmente, os filhos. Isso é o que eu mais aprendi de toda essa porra.

Dificilmente nós não vamos ganhar uma medalha nas Olimpíadas de Tóquio porque os tempos são muito bons. Isaquias e Erlon estão maravilhosos. A gente pode pegar duas medalhas. Eu já não quero por mim, quero por eles. Já não importa mais se ganho oito, se ganho dez. Porque para mim já é um absurdo.

Isaquias e Erlon não são de favela, mas moravam numa casa pequena. Quando chovia, chovia em cima deles. Eu não quero que passem mais por isso. Não quero imaginar minha filha passando fome e chorando e não quero imaginar a filha do Erlon e nem o filho do Isaquias. Depois da Olimpíada no Rio, colocamos muita luz na vida dos meninos, mas eu não arrumei a vida deles.

Eu sei que, se vão pra Tóquio e meto duas medalhas neles, já vão para cinco medalhas. Se a saúde me acompanhar, eu sei que vamos ganhar mais duas medalhas em Paris-2024. Porque em 500m não há quem ganhe desses filhos da puta. Em 1.000m, você ainda briga com eles. Em 500m, não briga ninguém com esses caras. Impossível. Daria uma garantia de vida para a minha família e para as famílias dos meus meninos. Não penso mais em nada.

Estarei com 58 anos e se conseguir chegar e triunfar até aí, chega."

Miriam Jeske/COB

O ouro que faltava

Jesús não recebeu as duas com que sonhou em Tóquio. Erlon começou a sentir dores e, antes dos Jogos, foi vencido por uma lesão crônica no fêmur. Acabou substituído por Jacky Godman, um jovem de 22 anos com menos experiência. Ele e Isaquias terminaram a final do C2 1000m em quarto lugar. Jesus acharia o resultado "uma merda", talvez. Mas foi o combustível para Isaquias, em sua prova individual, finalmente dar o ouro que prometeu: na final do C1 1000m, o baiano terminou quase dois barcos à frente do segundo colocado. Ao sair da água, se ajoelhou, apontou para o alto e disse: "Para Jesús".

Alexandre Rezende/UOL Alexandre Rezende/UOL

O que eu posso falar? Eu tive uma vida muito bonita. Veja, eu que não sou um cara nada católico, nada, mas tampouco deixo de ser, não acredito, nem deixo de acreditar, tenho uma vida maravilhosa. Tenho uma esposa maravilhosa, tenho uma filha maravilhosa. Eu vou mostrar uma foto da minha família."

Morlán, ao terminar a entrevista

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