Proibido ser feliz?

Jogadores sentem 'patrulha' aumentar sobre vida extracampo, e até Neymar reage

Gabriel Carneiro e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo Henrique Augusto

Esta postagem de Neymar no Twitter rolou algumas horas depois de o Fortaleza anunciar o afastamento do meia-atacante Lucas Crispim. O jogador tinha comemorado o aniversário de 28 anos numa festa na madrugada anterior, os vídeos do rolê circularam pelas redes sociais e o clube — então último colocado do Campeonato Brasileiro — decidiu puni-lo.

Crispim pediu desculpas e foi reintegrado três dias depois.

O caso aconteceu poucos dias depois de outro que deu o que falar: o atacante Jô foi flagrado em uma roda de samba ao mesmo tempo em que o Corinthians jogava contra o Cuiabá, também pelo Brasileirão. O jogador estava afastado para tratar uma contusão na perna e a repercussão do episódio levou à rescisão do contrato.

A discussão sobre a vida extracampo dos jogadores não é nova. Há dois anos, Daniel Alves fez piada quando foi filmado tocando percussão numa festa na véspera de um jogo do São Paulo pela Libertadores — que ele não atuaria por causa de uma lesão no braço. No meio da polêmica, ele postou um vídeo gesticulando que não devia batucar e a legenda: "Proibido ser feliz, Lei 171".

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Da ironia de Dani Alves à irritação de Neymar, alguns jogadores têm usado grupos no Whatsapp para desabafar entre si sobre o que sentem ser uma patrulha de torcedores e mídia a respeito do uso que fazem de seus momentos de folga. A exposição exagerada, principalmente na era da rede social, e a escalada de violência do futebol brasileiro assustam e incentivam uma mobilização que "começa a ganhar corpo", diz uma fonte do UOL Esporte.

Henrique Augusto

É uma barbaridade fazer isso com o menino [Lucas Crispim]. Não tem nada a ver, é um absurdo, é um patrulhamento ridículo por parte da mídia. Era aniversário do cara, fizeram uma coisa absurda. O Neymar está certinho. Agora o Jô está errado, é uma coisa diferente, entendeu? Mas não quero falar disso."

Neto, Ex-jogador e apresentador da Band

Hoje você não pode fazer nada. Mas eu caguei para eles todos. Eu não me importo com o que as pessoas pensam de mim e o que vão falar, entendeu? Então eu nunca me importei com isso e não me importo hoje também. Eu só penso que a pessoa tem que trabalhar, só isso. E fazer o que quiser na folga."

ao UOL, sobre a vida extracampo dos jogadores

Matheus Lotif

Grupo no Whatsapp reúne insatisfação de jogadores

Capitães de times das Séries A, B, C e D do Campeonato Brasileiro fazem parte de um grupo no Whatsapp para compartilhar inquietações e comentar assuntos da atualidade e novidades sobre o futebol do país. Um dos temas recorrentes nas últimas semanas é a exposição cada vez maior que eles acreditam viver, com uma escalada de violência no comportamento do torcedor.

O caso de Lucas Crispim é exemplo disso: a festa de aniversário aconteceu horas após um grave episódio de agressão ao elenco da equipe no aeroporto de Fortaleza depois de uma derrota para o Avaí. O atacante Robson foi atingido por um capacete. Na ocasião, a comemoração de Crispim já era notícia entre torcedores, porque o convite vazou. Antes do tumulto, parte dos envolvidos cantou "Lucas Crispim, vou te falar, sua festa não vai rolar". O jogador cogitou o cancelamento, mas manteve os planos.

Depois, ele pediu desculpas para ser reintegrado ao time. Marcelo Paz, presidente do Fortaleza, convocou um pronunciamento para dizer que Crispim "nunca foi um problema", mas "algumas situações extracampo específicas causaram descontentamento". Ele disse que existia um "contexto mais antigo" que justificava o afastamento do jogador: "Tem a hora de festejar e tem a hora de ficar mais na sua."

Washington Mascarenhas, ex-atacante de clubes como Palmeiras e Ceará, hoje presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais do Município de São Paulo, conta que os jogadores veem esses movimentos com preocupação.

"Com redes sociais e as facilidades eletrônicas de hoje em dia, o atleta está cada vez mais exposto. A classe aceita cobrança de torcida, gritos, isso faz parte do futebol. Se o cara não aguenta, não pode jogar. Mas está tomando uma proporção preocupante de agressão, pedrada, riscos à integridade física", diz. E completa:

Os atletas estão preocupados e começando a enxergar que precisam adotar uma postura diferente em nome da própria integridade. Está no limite. Sinto que eles estão se fortalecendo para uma mobilização contra a exposição e a violência. Ainda não tem corpo, mas é o que observo."

Futebol envolve sentimento, enxergamos isso. Mas também enxergamos que o torcedor está exigindo demais. O atleta fica inibido, deixa de fazer muitas coisas, e aí vêm as perguntas: você, aí no seu trabalho, não pode sair de noite para comemorar um aniversário, mesmo de maneira regrada e cumprindo seu compromisso no outro dia? Perdeu um jogo tem que se esconder? Não pode sair com a família para jantar? Se sair pode encontrar alguém que pode sentar a porrada em você? Vamos chegar onde? Até dar uma merda, uma morte. Um segurança que anda com atleta matar um cara, um torcedor louco dar um tiro num atleta. Porque hoje está assim."

Washington Mascarenhas, ex-jogador, presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais do Município de São Paulo (Siafmsp)

Hoje não tem espaço para atleta baladeiro. Todos têm a consciência do que precisam entregar e do que podem ou não fazer para estar nesse nível. O atleta é uma pessoa normal e tem que ter uma vida normal. Se não responder dentro de campo, na parte física e técnica, aí sim tem que ser cobrado da maneira certa. Por isso acabo vendo a atitude do Fortaleza como resposta para o torcedor. Nem para o atleta é. Em contrapartida, quando o torcedor vai lá na saída do aeroporto meter capacetada na cabeça do Robson, o que a diretoria do Fortaleza fez? Nada. Aí no caso do Crispim parece que quis fazer graça e deu força para o atleta ser culpado."

sobre a punição do Fortaleza a Lucas Crispim

Alguns casos recentes. Lembra?

Reprodução/Twitter

Lucas Crispim

Meia do Fortaleza comemorou aniversário em festa privada no dia 17. Foi afastado pelo clube sob o argumento de que há "momentos e formas adequadas" para o lazer.

Reprodução/Twitter

Ex-atacante do Corinthians foi filmado tocando percussão num evento simultâneo a uma derrota do time no Brasileirão. Depois faltou num treino e rescindiu o contrato.

Reprodução/Twitter

Chay

Vídeo do jogador do Botafogo na balada, segurando um copo e acompanhado de mais três pessoas, viralizou no último dia 11. Houve reações negativas.

Reprodução

Isla

Ex-lateral do Flamengo foi multado por apresentar sintomas de virose e não jogar uma partida em fevereiro. Depois descobriu-se que ele foi a uma festa na noite anterior.

Reprodução/Instagram

Daniel Alves

Ex-lateral do São Paulo postou um vídeo tocando percussão na véspera de um jogo da Libertadores que ele foi desfalque por uma lesão no antebraço. Não houve punição.

Reprodução

Guga

Em 2021, o lateral-direito do Atlético-MG foi flagrado num pagode em meio à fase aguda da pandemia. Ele foi multado e afastado de um jogo contra o Boca Juniors na Libertadores.

Divulgação/Governo do Estado de São Paulo

Gabigol

Em 2021, o atacante do Flamengo foi flagrado num cassino clandestino que foi fechado pela Polícia. Ele foi detido e pagou R$ 110 mil para não responder processo.

Reprodução/Instagram

Patrick de Paula

Volante então no Palmeiras foi visto saindo de uma casa noturna cercado por torcedores revoltados. Ele foi protegido por seguranças e multado pelo clube na sequência.

Rogério Capela/AGIF

Tira-dúvidas com Filipe Rino

Advogado especialista em Direito Desportivo, ao UOL Esporte

O jogador de futebol profissional é considerado pela lei como um trabalhador?

"O atleta profissional de futebol é considerado trabalhador, como qualquer outro. A CLT define o trabalhador em seu artigo 3º, sendo toda pessoa física que preste serviço não eventual mediante pagamento de salário, não havendo distinção entre as espécies de emprego.

A profissão do atleta profissional de futebol é hoje regulada pela Lei 9.615/98, conhecida como Lei Pelé. O artigo 28 da Lei Pelé cita que a atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática desportiva (clube), sendo que referido artigo informa que aplica-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social.

Portanto, tanto para a CLT (lei trabalhista), como para Lei Pelé (lei do desporto), o atleta é considerado trabalhador."

O jogador de futebol profissional tem jornada de trabalho limitada ou ilimitada? E direito a horário ou dia de folga? E férias?

"Como todo trabalhador, a jornada de trabalho do atleta é limitada. A Lei Pelé, em seu artigo 28, §4º, confirma que o atleta profissional de futebol tem jornada limitada de 44 horas semanais, deve ter repouso semanal de 24 horas ininterruptas (preferencialmente após a partida de final de semana) e férias de 30 dias (sempre após o término da competição, geralmente após o Brasileirão).

Ainda, que o atleta deve permanecer até três dias por semana em concentração, independente de pagamento adicional, salvo se houver previsão contratual."

Os direitos do jogador variam de acordo com o quanto ele ganha de salário?

"Sim, como qualquer trabalhador. Os direitos básicos de um atleta são os mesmos que de qualquer outro trabalhador: férias, 13º salário, FGTS, descanso semanal remunerado, horas extras, etc.

E todas estas verbas são calculadas sobre o valor do salário do atleta, assim como de qualquer trabalhador."

O clube pode controlar a maneira como o jogador aproveita suas horas livres?

"Em hipótese alguma. Tal situação configuraria assédio moral, tal qual como ocorreria com qualquer outro trabalhador. Vamos imaginar um caso hipotético, trabalhador de um hotel. Na folga deste trabalhador, o hotel poderia impedi-lo de viajar, ou de ir a um aniversário, ou uma festa, ou cinema? Evidente que não. Então por que deveria ser diferente com um atleta?

O que o atleta deve fazer, assim como qualquer trabalhador, é se apresentar ao trabalho, na hora e local definidos, em condições normais de trabalho, pelo clube, ou por qualquer empresa.

Ainda, caso em sua folga o atleta, por exemplo, sofra algum infortúnio e não possa trabalhar, a Lei Pelé em seu artigo 28, §7º, permite ao clube suspender o pagamento da remuneração."

A partir de que ponto o clube pode agir em relação à forma como o jogador usa suas horas livres?

"Jamais o clube poderá interferir no que o atleta faz em sua folga ou após o horário de trabalho. Logicamente, por ser figura pública, o atleta pode evitar excessos, até para preservar sua imagem. Porém, o que o atleta faz ou deixa de fazer em sua folga, apenas lhe diz respeito, não podendo o clube interferir. Tampouco algo ocorrido fora do horário e ambiente de trabalho, poderá configurar justa causa."

O que o jogador pode fazer se entender que há violação sobre seus direitos trabalhistas?

"Procurar um especialista, sanar suas dúvidas, e se for o caso, ingressar com ação."

Fernando Santos/Folhapress

Velha guarda vê patrulha maior e recomenda moderação

"Sempre existiu patrulhamento, mas não como é hoje em dia", opina o ex-volante Batista, que fez carreira entre os anos 70 e 80, principalmente no Internacional e na seleção brasileira.

Para o ex-jogador, o que rola hoje é uma "noção diferente e exagerada" do atleta de futebol: "É claro que eu acho que você tem que moderar, mas tua vida social não pode parar. Só que o torcedor não entende assim e hoje em dia está muito ódio. Tem um pessoal que gosta de encrenca, de guerra. Se você abdica de viver socialmente para só fazer isso quando parar de jogar perde toda a juventude."

Quando você não fazia festa, ninguém elogiava. Quando estava na rua no dia de folga, vinham: 'ó o Batista tomando vinho'. Eu estava mesmo, todo mundo toma. Hoje isso é potencializado por causa das redes sociais e do ódio."

Contemporâneo de Batista, o ídolo flamenguista Zico conta ao UOL que era mais reservado na vida pessoal na época de jogador: "Sempre procurei aproveitar a folga da melhor maneira, mas quando eu sentia que o jogo não foi legal eu já não tinha vontade de fazer nada. Ficava em casa e pronto, não era de sair. Quando estava machucado ficava repousando. Isso de badalações, festas, boates, nunca foi uma coisa minha. Depende de como cada um leva sua vida."

Zico também colabora sobre o assunto com a visão de quem já foi técnico e dirigente: "Se o cara está correndo para cacete, chegando no horário, joga todos os jogos, você vai falar o quê? Pode ir para a noite, não tenho o que falar. Proibir não existe. Cada um que se garanta quando faz as coisas que estão à parte do futebol. Só que o cara tem que saber se vale a pena. Quem curte a boa tem que saber segurar a peteca da coisa ruim, né?"

Reprodução/Instagram

Se beber, não poste

O debate sobre a vida extracampo dos jogadores de futebol é antigo, como mostram as reflexões de Neto, Batista e Zico. E não vai acabar por aqui, já que agora Neymar surge como um ativista da causa e os atletas estão se mobilizando.

Mas para além da parte jurídica da coisa, há algumas leis não escritas nos bastidores dos clubes e estafes de jogadores ao lidar com o assunto no dia a dia.

A principal regra pode parecer óbvia, mas não é: se o jogador for a algum lugar para curtir, que não poste nada nas redes sociais. Um famoso ex-jogador de vida agitada fora das quatro linhas, que não quis se identificar, até contou um segredo: se quer mostrar o lugar para onde foi, até por razões de marketing, tira a foto e só publica na internet depois que já foi embora de lá. "Obrigação é estar no treino em condições de treinar, na concentração em condições de jogar e jogar se entregando ao máximo. Fora isso, ninguém tem nada a ver com a vida do jogador."

Há os que só festejam se for proibida a entrada de celulares. Vini Jr em sua festa de três dias no Rio de Janeiro, por exemplo.

Empresários e assessorias de imprensa também se mobilizam dia a dia para impedir que seus clientes tenham a temida fama de baladeiro. Há incentivo para que registrem presença em manifestações religiosas, como missas e cultos, inclusive nas concentrações. A teoria é de que isso ajuda a diminuir os danos se houver alguma polêmica no futuro, numa linha "mas ele é religioso, ele não é de balada".

Tem jogador que aceita as dicas e tem jogador que não.

Eu não ligo para o que os outros vão pensar de mim. Sou um cara muito transparente, muito verdadeiro, não ligo que falam 'Neymar vai para a balada', que não sei quê. Qual meu desempenho? O que eu tenho que fazer? Não ligo para o que você pensa. Meu irmão, tá puto? Fica com o seu 'tá puto' (risos), é minha vida, não vou fazer isso porque você não quer (...) A galera fica um pouco revoltada de eu ser o Neymar assim, focado em campo, mas também um cara que vive sua vida. Acho que isso ninguém conseguiu fazer bem e eu faço."

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