Todo menino tem seu tempo

Final da Libertadores: Kaio Jorge sofreu com críticas e mudou, mas torcedor demorou a entender função em campo

Eder Traskini Do UOL, em Santos (SP) Ivan Storti/Santos FC

É como se fosse um jogo de videogame. Quando você domina um nível de dificuldade, é hora de ir para o próximo. Ao chegar lá, porém, pode perceber que boa parte do que funcionava antes já não é mais eficaz. E você, na verdade, não estava pronto para subir de nível. Com Kaio Jorge, artilheiro do Santos na Copa Libertadores, foi assim.

O centroavante do Santos subiu ao profissional com 16 anos. Ele sobrava na categoria sub-17, mas sobretudo seu corpo ainda não estava pronto para atuar na equipe de cima.

Não é que não sabia fazer (as movimentações que faz hoje), é que ainda sou novo, subi com 16 anos e meu corpo não estava preparado. Ainda estou evoluindo fisicamente. As dinâmicas de jogo, até você pegar o ritmo do profissional, demora um pouco. Precisei desse tempo e agora estou conseguindo jogar bem".

Foi o próprio técnico Cuca quem lançou Kaio no time profissional. O centroavante passou a temporada 2019 no banco de reservas com o argentino Jorge Sampaoli e recebeu poucas chances — mesmo após ser campeão mundial sub-17 com a seleção brasileira. Em 2020, porém, a história foi diferente. Ele viu a camisa 9 cair em seu colo e disse a si mesmo: "quando eu entrar, não posso mais sair". Conversou com o preparador físico, mudou a alimentação, se dedicou aos treinos físicos mesmo durante a pandemia.

O aspecto mental sempre esteve ali, mas foi aprimorado por Jesualdo Ferreira e Cuca. Ele se tornou um centroavante moderno, cumprindo com inteligência uma singular função tática ao sair da área. A falta de gols tornou-o alvo de críticas, mas foi só eles aparecerem para o Menino da Vila cair de vez nas graças do torcedor.

Ivan Storti/Santos FC
Ivan Storti/Santos FC

Críticas e discussões

Durante o período em que seu corpo ainda não estava pronto, o centroavante era alvo nas redes sociais. Chegou até a responder algumas delas. Mesmo quando se tornou titular, a função tática exigida por Cuca, que faz com que ele jogue mais longe da área do que outros centroavantes, não foi compreendida pelo torcedor comum. As críticas seguiram.

Para que elas cessassem foi preciso começar a balançar as redes. A partir do momento em que Kaio começou a marcar, o torcedor comum começou, aos poucos, a entender o papel do centroavante no Santos de Cuca.

Demorou, sim (para o torcedor entender a nova função). Viam ali só um centroavante, mas faço duas ou três funções nos jogos. Claro que é chato, nenhum jogador quer ser xingado. Com as críticas, eu evoluí, vi o que estava precisando melhorar e trabalhei em cima daquilo. Estou evoluindo jogo a jogo e espero ser menos criticado (risos) ao longo da temporada. Torcedor quer ver sempre o jogador bem, fazendo gol, mas nem sempre é isso."

Assista à entrevista

Em silêncio

Kaio Jorge recebeu de Sanchéz, cortou o goleiro e mandou para o fundo das redes. O gol foi marcado contra o Olimpia, no Paraguai, na primeira fase da Libertadores. Na comemoração, o gesto copiado do holandês Memphis Depay, do Lyon, com os dois indicadores nos ouvidos, como quem não quer ouvir.

A comemoração foi um desabafo contra as críticas que vinha sofrendo. Fora apenas seu segundo gol como profissional, quebrando um jejum de 15 jogos. Depois, Kaio chegou a postar: "trabalhe duro e em silêncio. Deixe que seu sucesso faça barulho"

"Vinha sendo muito criticado no começo, não estava fazendo gols. Então fiz aquele gesto ali, mas nada de discutir com a torcida, foi mais uma comemoração mesmo."

Depois disso, Kaio marcou mais cinco vezes, três nas quartas de final da Libertadores contra o Grêmio, o duelo que foi um divisor de águas para ele.

Eu já vinha fazendo boas partidas, mas esse jogo contra o Grêmio me deu mais tranquilidade, consegui me firmar mais. Sei que posso melhorar muito, tenho muito a mostrar ainda pra torcida. Mostrei um pouco só, mas estou procurando evoluir a cada jogo. A partida de volta foi meu melhor jogo com a camisa do Santos."

Ivan Storti/Santos FC Ivan Storti/Santos FC
Ivan Storti/Santos FC

Mais que um 9

Se a posição de goleiro é a mais ingrata do futebol, a função de "centroavante moderno" vem logo atrás. Na atual cartilha da posição, fazer gols nem sempre é o mais importante. A movimentação que puxa a zaga e ajuda na criação de jogadas saindo da área são, muitas vezes, imperceptíveis ao torcedor acostumado a cobrar bola na rede do atacante.

Kaio sofreu isso na pele. Com Cuca, o centroavante se tornou importante taticamente, muitas vezes sacrificando sua proximidade com a baliza adversário para fazer a dupla Marinho e Soteldo brilhar.

"Faço um pouco do meio-campo, na marcação, movimento para os lados para deixar Marinho e Soteldo livres para receberem. Como não temos o camisa 10, do passe, aí eu desço um pouco para ajudar o meio-campo."

O que dizem os comentaristas:

Desde a base ele faz essa função. Tem qualidade para sair da área, ajudar na construção. Talvez vejamos mais um jogador vivendo o dilema: "bom atacante, mas não faz tantos gols", como o Paolo Guerrero. Muitos não entendem que o camisa 9 não tem que ter uma média de gols altíssima. O Kaio não vai ter".

Rodrigo Coutinho

Kaio Jorge é um facilitador, não só um fazedor de gols. Ele tem a característica que é a marca do Santos: velocidade e verticalidade. É curioso, porque o Cuca já gostou muito de centroavantes mais físicos, mas o Kaio casou com o time pela mobilidade. Uma das grandes revelações do futebol brasileiro neste ano, se não a maior".

Arnaldo Ribeiro

Se você observar o mapa de calor do Kaio Jorge verá uma intensa participação em vários setores do campo, inclusive na defesa. Ele é jovem e tem nessa característica um ponto que pode ser muito importante em seu desenvolvimento, especialmente se conseguir aliá-la a uma maior quantidade de gols marcados".

Mauro Cezar

Diego Vara - Pool/Getty Images Diego Vara - Pool/Getty Images

Obrigado, Sasha

O trio Marinho, Soteldo e Eduardo Sasha terminou 2019 como um dos principais ataques do Brasil. Os jogadores do Santos foram pegos de surpresa quando, logo após a paralisação pela pandemia do novo coronavírus, o antigo centroavante não apareceu no treino: ele tinha entrado na justiça para se desvincular do Peixe por atrasos salariais.

Kaio, que já vinha ganhando suas chances, sabia: a oportunidade de ser titular estava próxima e ele não poderia desperdiçar. Em gols, ele já igualou a primeira temporada de Sasha pelo Peixe.

"Sasha é um grande jogador, aprendi bastante com ele quando ele estava aqui. Fico feliz por ele ter dado essa oportunidade pra mim. Todos ficaram tristes (com saída do Sasha e Everson), eram jogadores que agregavam muito ao elenco, jogadores de nome. (Fiquei) Um pouco triste pela saída, mas o futebol tem dessas. Comecei a treinar mais forte ainda porque sabia que a qualquer momento professor Jesualdo iria me colocar para jogar e eu não podia sair mais."

Ivan Storti/Santos FC

O erro de Sampaoli

O trabalho de Jorge Sampaoli no Santos em 2019 foi alvo de inúmeros elogios e de uma grande crítica: a pouca utilização das categorias de base. O argentino costumava dizer que não existiam jogadores prontos para o profissional. Cuca mostrou que o argentino estava errado. Quando apareceu o "transferban" da Fifa, a punição que impediu o Peixe de contratar jogadores durante boa parte de 2020, o atual técnico santista não teve alternativa se não recorrer aos Meninos da Vila. Para a sorte do Santos...

O próprio Cuca reconhece que, em termos, a punição acabou sendo benéfica. Se pudesse contratar, muito provavelmente o Peixe não teria dado tantas chances a jovens como Kaio Jorge e Sandry, que já se mostram prontos para o profissional. Questionado sobre o assunto, o jovem centroavante santista timidamente concordou que, sim, o 'transferban' foi bom para o Peixe.

Temos grandes talentos aqui na base. Na época que ele (Sampaoli) estava aqui poderia ter colocado alguns para jogar, mas é de cada treinador, temos que respeitar e trabalhar."

Ivan Storti/Santos FC

O fator Cuca

Se o Santos disputa neste fim de semana o título da Copa Libertadores da América, muito se deve ao técnico Cuca. O comandante santista pegou a equipe em baixa, enfrentou uma tempestade de problemas de todos os tipos e soube navegar por todos eles. Mais que um técnico, Cuca foi gestor. De pessoas e de um departamento de futebol. Assim que chegou, ligou para Everson e Sasha e explicou aos dois que o Peixe, na situação em que se encontrava, não podia perder atletas como eles de graça. Cuca comandou as negociações e não deixou o Santos sair de mãos abanando quando ambos acertaram com o Atlético-MG.

Internamente, o treinador, que já tinha convivido com a gestão do ex-presidente José Carlos Peres, encontrou ainda mais problemas. Atrasos salariais foram potencializados pela pandemia e a intensa briga política resultou em impeachment de Peres. Cuca se reuniu com os jogadores por mais de uma vez para pedir que o foco ficasse no campo e que os problemas de fora fossem esquecidos.

"Tivemos algumas conversas entre nós e o Cuca, nos fechamos e deixamos que essas coisas de fora não atrapalhassem dentro de campo. Se não, se ficássemos pensando em atraso, briga política, essas coisas, claro que iria atrapalhar. Mas ficamos focados dentro de campo e por isso estamos saindo com vitórias. Não atrapalhou em nada porque o Cuca tranquilizou nós jogadores."

Kaio tem um nível de maturidade muito alto pra sua idade, eu acompanho ele desde o sub-14. Sempre esteve presente uma categoria acima, mesmo com a geração forte do Santos. Em campo, ele tem um poder de finalização muito alto. Sempre perguntei pra ele, pro Yuri Alberto e pro Marcos Leonardo, em quem eles se espelhavam dentro do Santos. Ele potencializou tudo que já tinha, se transformou em um grande jogador, um líder técnico. Dentro da Copa do Mundo, a gente percebia os meninos falando 'dá no Kaio', 'a bola tem que entrar no Kaio', porque ele tem um poder de decisão muito alto."

Guilherme Dalla Déa, técnico campeão da Copa do Mundo sub-17 com a seleção brasileira

Marcello Zambrana/AGIF

Cem com Chulapa

Folclórico centroavante do futebol brasileiro, Serginho Chulapa voltou a ser presença constante nos treinos do Santos no CT Rei Pelé após um período afastado com Jorge Sampaoli e Jesualdo Ferreira. Ele é um dos auxiliares na comissão técnica fixa do Peixe.

A Santos TV já mostrou Chulapa conversando com os jovens centroavantes do Peixe. Em 2018, por exemplo, um vídeo mostrou Gabigol colocando as mãos no ex-centroavante e passando no seu próprio corpo em seguida para, nas palavras do hoje atacante do Flamengo, "pegar um pouco dos gols dele".

Antes de conceder entrevista ao UOL Esporte, Kaio revelou que estava justamente treinando finalização acompanhado de Serginho Chulapa.

"Dei uns 100 chutes com o Chulapa. Paizão para gente, muita experiência, sempre está ligado nos treinos aqui, ajuda e dá dicas sobre como finalizar."

+ Especiais

Divulgação/Conmebol Libertadores

Como final da Libertadores entre rivais simboliza um novo jeito de torcer

Ler mais
Acervo Histórico e Memória SEP

Maior artilheiro gringo do Palmeiras, argentino foi recusado no Bonsucesso

Ler mais
Fernanda Luz/AGIF

Cuca relata dias de luta contra a covid-19 em meio ao trabalho no Santos

Ler mais
Marcello Zambrana/AGIF

Como Abel recuperou talentos e pôs o Palmeiras para disputar tudo

Ler mais
Topo