Ketlen eterna

Após ouvir que era "muito ruim", atacante superou Pelé no Santos para se tornar primeira "Sereia" com 100 gols

Eder Traskini Do UOL, em Santos Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC

O futebol é um esporte coletivo, mas nem por isso o individual deixa de brilhar. E recordes individuais servem para colocar o nome de alguém na história. No Santos, a maioria deles tem o nome de Pelé, atleta do século e maior da história do esporte.

Um deles, porém, tem o nome de Coutinho. O parceiro do Rei é o mais jovem atleta a marcar um gol pelo time profissional do Santos, aos 14 anos e 11 meses. Ao seu lado costumava estar Pelé. Hoje, porém, a tabelinha é com Ketlen.

Atacante das Sereias da Vila, ela marcou pela primeira vez aos 15 anos, 4 meses e 20 dias, quase seis meses mais jovem do que Pelé —que agora é só o terceiro da lista. Além disso, Ketlen, hoje com 28 anos, é também a primeira mulher a chegar aos 100 gols no clube —o feito foi alcançado em setembro e, hoje, ela já soma 106.

Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC

Foi uma emoção muito grande ter esse reconhecimento. Receber a camisa do Pelé com dedicatória pra mim. Não imaginei que receberia tanta homenagem pelo centésimo gol, que a repercussão seria tão grande por um gol que faltava. Pensei que poderia receber um abraço, talvez uma plaquinha, mas até o Marinho foi no treino -- o que já é um sonho receber a homenagem de um jogador tão maravilhoso, que tem tudo pra crescer e estar na seleção brasileira

Ketlen

Demorou cerca de dois meses para estrear, com 15 anos. O gol saiu quatro meses depois. Não imaginei que seria tão rápido. Na época, tinha muitas meninas da seleção e o campeonato não parava. Com os desfalques, o técnico começou a me escalar. Acabei sendo artilheira da Copa do Brasil com 16 anos

Sobre a demora para marcar seu primeiro gol como profissional

Nunca imaginei (ser a maior artilheira). As Sereias sempre tiveram grandes atacantes que marcaram muitos gols e você ver que hoje está na frente de todas elas é uma emoção. Esse sonho é algo que nem acordei ainda. Queria apenas jogar em um clube grande, não imaginei fazer história em um clube grande assim

Lembrando que Marta e Cristiane já jogaram (ou jogam) no Santos

Reprodução/@santosfc

Homenagem surpresa

Ketlen acordou cedo na quinta-feira, 17 de setembro, e se dirigiu para o CT Meninos da Vila, na entrada da cidade de Santos para mais um treino da equipe feminina. Após a atividade, sentada perto da linha central do gramado junto com as outras atletas, Ketlen escutava as palavras da comissão técnica sobre a atividade quando alguém sentou ao seu lado. Quando ela olhou, não acreditou no que via: Marinho, principal destaque do Peixe, estava ali com uma sacola na mão.

Das mãos do artilheiro da equipe masculina, Ketlen recebeu vários presentes, mas três foram especiais: uma camisa das Sereias com o número 100 em alusão à marca atingida, uma placa pelo 100º gol e uma camisa autografada por Pelé — aquele que Ketlen fez cair um degrau no ranking dos mais jovens a marcar. A atacante precisou se esforçar bastante para segurar a emoção durante a homenagem.

"Estreei cedo. Ainda bem que me passaram naquela peneira. A gente sempre brinca com isso. Eu era feinha e magrinha, não tinha nada. É algo inimaginável. É o Pelé, né? Ele já estreou cedo. E eu mais ainda."

"Faz gol de tudo quanto é jeito"

Quando ela chegou, eu já estava lá. Uma menina loirinha com apoio dos pais em busca de um sonho. Era a mais nova da turma. É estranho olhar ela como uma das mais velhas. Ela se doa absurdamente pelo time. Não é habilidosa ou muito técnica, mas sempre ajuda, defende, faz linha de fundo e chega na área

Alline Calandrini, jornalista da Band e ex-jogadora

Faz gol de tudo quanto é jeito, não deixa passar uma oportunidade. Não foi uma surpresa [esse recorde] e se tem alguém que merece é ela. A gente se batia muito nos treinos, até falo que tenho uma pontinha nesse crescimento dela. Muito merecido e ela deveria estar no muro no Santos, inclusive

Alline Calandrini, jornalista da Band e ex-jogadora

Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC

"Ela é muito ruim, não passa, não"

Para se tornar uma jogadora profissional de futebol, Ketlen precisou encarar uma mudança grande de vida. Ela deixou a pequena cidade de Rio Fortuna, em Santa Catarina, de pouco mais de 4 mil habitantes, e veio até Santos realizar uma peneira que tinha cerca de 800 garotas, um quinto da população total de sua terra natal.

Ketlen foi a única das 800 que "virou" no futebol. Além dela, somente uma outra garota passou na peneira, mas não seguiu no esporte. O técnico Kleiton Lima, responsável pela peneira, gostou do desempenho da "loirinha", mas foi aconselhado a não passar Ketlen por Sandrinha, outra Sereia da Vila que auxiliava o treinador durante o teste. Hoje, Ketlen brinca com a situação.

"Vim como atacante, a peneira demorou bastante, umas 800 meninas. Joguei dois jogos, fiz gols. Na hora, ele já tinha falado para uma das meninas que estava ajudando na peneira, a Sandrinha, 'essa loirinha aí eu vou passar, ela é muito boa'. Ela é minha amiga até hoje, mas falou pra ele: 'não, ela é muito ruim, não passa, não'. Ainda bem que o olho do treinador era bom (risos). Passaram duas, mas a outra menina já parou de jogar. Só eu dei certo", contou.

Ela tinha um poder de finalização muito grande. Tinha velocidade, um bom recurso técnico, físico e assimilava muito bem as orientações táticas. Se movimentava bastante no campo, pedia a bola, não se escondia

Kleiton Lima, técnico que aprovou Ketlen naquela primeira peneira

Faltava um pouquinho de requinte técnico, não é uma jogadora habilidosa, do drible, da jogada individual, mas é muito dedicada e treina até conseguir executar, cresceu demais depois nesse aspecto técnico

Kleiton Lima

Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC

Cabeça de boneca virou bola

O futebol nasceu com Ketlen por parte de pai e por parte de mãe. Os dois frequentavam a quadra da cidade para jogar futsal com amigos. Ketlen se tornou figurinha carimbada no corredor, brincando de bola com o irmão, três anos mais velho. Ela ainda tem outro irmão cinco anos mais velho.

Mesmo antes de ganhar uma bola para brincar nos corredores da quadra, Ketlen já improvisava para poder jogar. Com quatro anos, a jovem ganhou uma boneca de presente da mãe e não teve dúvidas: arrancou a cabeça e a transformou em bola improvisada para sair chutando com o irmão pela casa.

"Minha mãe tentava me dar boneca, mas eu nunca gostei. Sempre preferi bola. Eu arrancava a cabeça da boneca para jogar. Até então, eu não tinha bola. Ela brigou comigo, mas foi aí que minha mãe percebeu que precisava me dar uma bola", se divertiu ao lembrar.

Com oito anos, um técnico viu a garota brincando na quadra e pediu para que ela entrasse na escolinha. A mãe concordou: "A gente não tinha muita noção (do que era o futebol feminino no Brasil). Na cidade, o futebol feminino sempre teve apoio. Entrei na escolinha com oito anos, mas eu era muito acima das meninas. Eu jogava vôlei também, mas com 12 anos minha mãe falou que eu precisava escolher um. Cheguei até a fazer ballet também, mas nunca tive dúvidas: sempre preferi o futebol"

Arquivo pessoal

Primeira a ser escolhida

Na escola, o futebol sempre foi misto. Ketlen adorava jogar, mas morava muito longe da escola. A solução era enganar a mãe para que fosse buscá-la mais tarde — ou mesmo encontrar motivos para voltar à escola após a aula.

"Eu morava longe, então fingia pra minha mãe que tinha trabalho para fazer para ela me levar na escola. Na verdade, eu ia só pra brincar na quadra. Eu dava trabalho pra minha mãe (risos). Joguei até os 14 anos na escolinha e com 15 anos fui para o Santos. A transição foi bem difícil, tive dificuldade de adaptação. Sempre joguei com as minhas amigas e quando cheguei pra jogar profissional tive dificuldade por ser tudo maior"

Na hora de dividir os times nas quadras da pequena Rio Fortuna-SC, entre meninos e meninas, a jovem Ketlen era sempre a mais cobiçada pelos 'capitães' que costumeiramente tiram 'jokenpo' para escolherem os times. "Eu jogava com os meninos, sim, e sempre era a primeira a ser escolhida".

Mariana Pekin/UOL

"A Ketlen tem boa movimentação e consegue enxergar bem o espaço. Nessa movimentação, ela consegue abrir espaço para as companheiras dela jogarem. E, dentro da área, ela é oportunista: sempre que a bola sobra, está muito bem posicionada para poder finalizar e transformar em gol. Isso a credenciar para ser uma das maiores artilheiras da Sereias da Vila".

Guilherme Giudice, técnico das Sereias da Vila

Arquivo pessoal

Em 2007, sem internet, uma revista mudou a vida

Moradora de cidade pequena, Ketlen não tinha acesso à internet ou telefone celular em 2007. Sua mãe tinha uma empresa que assinava jornais e revistas, a forma antiga de saber das notícias do mundo. Foi assim que Ketlen foi parar nas Sereias da Vila.

Um dia, seu irmão pegou uma revista que tinha chegado pelo correio e arremessou na mesa do escritório da mãe avisando: "Olha aí, chegou". A revista, por obra do destino, abriu justamente em uma página que chamou atenção: a reportagem estampava "o olheiro das meninas".

"Foi bem louco. A gente não tinha acesso à internet ou celular... Não existia isso naquela época. Eu não sabia muito sobre futebol feminino brasileiro. A revista caiu aberta em uma página que falava sobre as Sereias da Vila. Minha mãe, cara de pau, arrumou o telefone do técnico e ligou para falar que tinha uma filha que jogava, mas não sabia se tinha futuro. Foi assim que fui fazer a peneira", lembra Ketlen.

No entanto, a mãe de Ketlen não entendeu a peneira como uma chance: para ela, Ketlen já estava dentro das Sereias da Vila. E dizem que intuição de mãe nunca falha...

"Ela fez uma festa de despedida surpresa pra mim. Ela chamou todo mundo da cidade. Eu abraçava as meninas, mas falava 'não sei, né, vou tentar a peneira'. Mas pra minha mãe já era despedida. Ela ficou duas semanas comigo em Santos e depois fui morar com meu treinador por três anos, com a família dele, porque eu era muito nova", lembrou.

Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC

A carreira

Ketlen, curiosamente, estreou pelo Santos em 21 de abril de 2007, um mês antes de marcar seu primeiro gol e contra o mesmo adversário: o São José. Ketlen vestiu a camisa das Sereias da Vila pela primeira vez com 15 anos, três meses e 14 dias. Novamente, ela superou Pelé, que estreou pela equipe santista sete meses mais velho.

Ketlen ainda fica à frente do jovem Ângelo, que recentemente fez sua estreia pelo masculino aos 15 anos, dez meses e quatro dias, também superando Pelé. Mais uma vez a liderança é do precoce Coutinho, que jogou pela primeira vez antes de completar 15 anos.

Além das Sereias, a atacante também passou pelo Flamengo, Bangu, Vitória das Tabocas e Centro Olímpico em território nacional, além de duas experiências fora do país: no Vittsjo GIK, da Suécia, e no Boston Breakers, dos Estados Unidos.

Pela seleção brasileira, Ketlen disputou Mundiais e Sul-Americanos nas categorias sub-17 e sub-20, além dos jogos Pan-Americanos de 2011 com a equipe principal. Pelas Sereias, a atacante soma nove títulos: três Paulistas, um Brasileiro, duas Copas do Brasil, duas Libertadores e Mundial.

Por exemplo, se você comparar Messi e Cristiano Ronaldo, o Messi é mais habilidoso, mas o Cristiano Ronaldo tem o talento e foi se preparando para isso, lapidando cada aspecto nele. A Ketlen se encaixa nesse perfil. Foi se preparando com os treinamentos, melhorando a cada dia, muito dedicada a cada fase de sua maturação técnica ao ponto de se tornar, hoje, a maior artilheira das Sereias

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