Nazaré brasileira

No local em que mais de 70 navios afundaram, surfistas encontram (provavelmente) a maior onda do Brasil

Marcello De Vico Colaboração para o UOL, em Santos (SP) Luís Reis

Imagine um prédio de quase cinco andares de altura. Agora, pense em uma montanha de água desse tamanho vindo em sua direção. É mais ou menos isso que uma onda no litoral sul de Santa Catarina, a Laje de Jaguaruna, proporciona para os surfistas que a desafiam.

Essa onda específica fica em uma laje. Não aquelas da construção civil: lajes marítimas são trechos rochosos elevados no meio do mar em áreas predominantemente de fundo arenoso. Quando acontecem em posição geográfica específica, levando em conta correntes marítimas, regimes de vento e clima, criam ondas ideais.

É aí que entra a Laje de Jaguaruna: relatos de surfistas locais apontam ondas de até 15 metros vistas por lá — as maiores já surfadas e registradas teriam 13,5 metros. Podem ser as maiores ondas do Brasil. Há em andamento um estudo, contratado pelo município de Jaguaruna, para mensurar o tamanho das maiores ondas fotografadas e filmadas por lá. A intenção é comprovar a façanha e, assim, oficializar Jaguaruna como a "capital da maior onda do Brasil".

"O mundo do big surfe já conhece e sabe do potencial dessa onda. A ideia, agora, é mostrar para todos o que realmente ela tem de diferente e proporcionar momentos ainda não vistos em águas brasileiras", diz o surfista Thiago Jacaré, um dos desbravadores da Laje da Jagua —como é conhecido o local.

Luís Reis
Luís Reis

O cemitério dos navios

A onda foi descoberta em 2003 pelos surfistas Zeca Scheffer, que morreu em 2006, e Rodrigo Resende a cerca de 5 km da costa da praia de Jaguaruna, em Laguna (SC). Trata-se de uma laje rasa que, segundo estudos do DHN (Departamento de Hidrografia e Navegação) da Marinha do Brasil, é um pouco maior do que um campo de futebol. A parte mais rasa, por exemplo, tem 1,5 m de profundidade.

O que é ideal para o surfe, porém, é um inferno para a navegação. Essa bancada rasa, somada à neblina e ao mau tempo que pode acontecer por lá, criou uma enorme armadilha natural. Até a chegada das pranchas, a região era conhecida como cemitério dos navios. Foram registrados 78 naufrágios ao redor da laje —incluindo o do navio de Giuseppe Garibaldi, em 15 de julho de 1839, antes da conquista do porto de Laguna, um dos marcos da Guerra dos Farrapos.

Nem mesmo a construção do Farol de Santa Marta, inaugurado em 1891 para guiar as embarcações para longe da elevação rochosa, impediu que novos navios encalhassem e naufragassem na costa das praias de Jaguaruna. Em 1973, por exemplo, o cargueiro Gravataí afundou no local.

Assista à onda:

Lucas Barnis
Rodrigo Resende na Laje de Jaguaruna

A descoberta da onda da Laje

Por Rodrigo Resende, campeão mundial de ondas grandes

A primeira vez que surfei lá foi com o Zeca Scheffer, em 2003. Não era um dia grande, pois o swell havia acabado de passar, mas ainda havia umas ondas. Eu e o Zeca éramos muito fissurados por lajes, ondas grandes e perdidas no oceano que nunca haviam sido surfadas. E ele, conversando com alguns pescadores, soube da onda de Jaguaruna. Decidimos procurá-la.

Partimos de Campo Bom à tarde e fomos na direção de uma espuma. Imaginávamos que era lá que estava a onda. Chegamos quando estava quase escurecendo, mas deu tempo de cada um pegar umas quatro ondas e voltar. Foi muita adrenalina. Não estávamos preparados para aquela investida. Voltamos no escuro, sem saber onde iríamos sair. Só conseguimos por que o Flavio Boca ficou com o carro virado para o mar, piscando os faróis, dando a direção que precisávamos.

Naquela época, percebemos o potencial da laje. Acabamos voltando várias vezes depois com alguns amigos. Capilé, Chiquinho, Marquito, Leandrinho, Ricardo, entre outros. O Zeca tornou-se professor e amigo do Jacaré, que abriu as portas para todos que vieram depois da gente.

Luís Reis Luís Reis
Jaime Redivo
Imagem subaquática da Laje de Jaguaruna, também conhecida como Pedro do Campo do Bom

O que explica a maior onda do Brasil

"Imagina um trem viajando", explica Lindino Benedet, oceanógrafo formado na Univali de Itajaí (SC) e doutor em Engenharia Costeira na Holanda. Segundo ele, a velocidade da água em profundidades maiores é mais alta. Quando essa água começa a subir para profundidades menores, aumenta a fricção com o fundo e a velocidade diminui. A água começa a desacelerar naquele ponto, mas ao redor a velocidade segue alta. "Então, quando começa a bater na pedra, mas não desacelera nos arredores do afloramento rochoso, toda a energia converge em direção a essa ponta [que é a onda]. A energia das áreas profundas ao redor vai se concentrando. É um fenômeno de convergência da energia de onda", completa.

O tamanho da onda dessa laje especificamente, porém, não é justificado apenas pelo fenômeno de convergência. "Você ainda tem uma rápida diminuição de profundidade [causado pela laje], então, tem um processo de 'shoaling' [ou empinamento], em que a onda vai ficando mais inclinada e se amplificando a partir do momento em que ela transiciona de águas profundas para águas rasas. Então, você tem a convergência de energia por refração e o shoaling acelerado por causa da rápida transição. Aí dá o que dá", acrescenta.

Lindino ainda explica que a posição geográfica da Laje é privilegiada: "Todos os grandes swells que atingem a costa brasileira vêm de frente frias de sul, e a plataforma continental brasileira tem uma área de 200 km de água relativamente rasa. Por todo esse percurso do sul para o norte, as ondas vão perdendo energia. Então, o mesmo swell de sul chega com certo tamanho ao Farol de Santa Marta, na região da Laje de Jaguaruna, mas já está com um tamanho muito menor quando chega ao Espírito Santo, em São Paulo ou ao Rio, porque vai perdendo energia até lá. E não existe um grande swell de norte ou nordeste que atinja a costa brasileira, a não ser em Fernando de Noronha. Mas lá é no meio do mar e virado totalmente para o norte. Na Laje, a energia chega bruta".

O que diz quem já surfou por lá

Pelo tamanho da ondulação, sim [é a maior]. Visualmente, dentro da água, Jaguaruna parece a maior. O potencial é muito grande porque a condição geográfica é perfeita. Se não é a maior, é uma das maiores. Mas pode ser que seja a maior, sim. Eu acredito.

Carlos Burle, Bicampeão mundial de ondas grandes e maior nome do big surfe brasileiro

Eu acho que é a maior onda do Brasil. Já peguei swell bem grande lá e sei que pode dar ainda maior. Pela incidência de swell aqui no sul e pela laje ser lá fora, creio que deva ser.

Fábio Gouveia, primeiro brasileiro a ganhar título mundial e a vencer no Havaí

Acho que a Laje de Jaguaruna, de massa d'água, é a maior, uma onda mais estilo oceânica. Mas, para mim, como surfista, não é questão de fazer essa disputa e, sim, valorizar o potencial diferente de cada onda e conhecer cada vez mais novas ondas, podendo usufruir da nossa costa brasileira de bancadas e lajes. Jaguaruna, com certeza, está no top. Tem um swell bem constante que entra lá fora, bem na cara do furacão. É um lugar bem especial do Brasil.

Rodrigo Koxa, dono da maior onda surfada na história, em Nazaré

Atowinj
Thiago Jacaré em Nazaré, em Portugal

O maior dia da Laje ficou só na memória

Por Thiago Jacaré

Foram vários dias grandes surfados sem registro, o que é uma pena. Mas um deles foi muito especial e me fez parar e dizer: "olha o tamanho disso". Nesse dia, você olhava da praia e via que o mar estava gigante. Estava chovendo e nosso fotógrafo não quis arriscar sem caixa estanque [acessório que protege o equipamento da água]. Fomos mesmo assim. Chegando lá, foi aquela euforia: "hoje vai ser o maior mar da história no pico". As séries eram gigantes.

As ondas passavam dos 12 metros. Tentamos surfar algumas, mas as pranchas não estavam aguentando a pressão do tamanho e os bumps [espécie de lombadas nas ondas]. Faltaram pranchas certas porque ninguém usa essas pranchas pesadas no Brasil. Surfamos algumas ondas e quase morri afogado, pois a prancha não obtinha a velocidade que precisava. Abortamos o surfe apavorados com o que vimos.

Chegando na praia, a primeira coisa que fiz foi ligar para o especialista em pranchas de tow-in [quando o surfista é rebocado por moto aquática] no Brasil, Jorge Pacelli, para encomendar meu novo quiver [conjunto de pranchas]. Estava indignado por não ter conseguido surfar aquelas bombas direito. Isso aconteceu de manhã. À tarde, quando olhamos o mar, a Laje da Jagua parecia ter se transformado. Você olhava e dizia: "está muito maior que de manhã". Isso da praia, a 5 km de distância. E eu pergunto: "qual o tamanho que estava?"

Foi um dia inacreditável, mas ficou marcado apenas em nossas memórias.

Luís Reis
Fabiano Tissot surfa onda gigante na laje de Jaguaruna

A maior onda do Brasil quer ser reconhecida como tal

Há um processo de homologação em andamento em instância federal para reconhecer Jaguaruna como a capital da maior onda do Brasil —solicitado pela Atowinj (Associação de Tow-in de Jaguaruna) em parceria com a Big Waves Brasil (BWB). O oceanógrafo Douglas Nemes, especialista em mecânica das ondas, foi o encarregado de fazer a comprovação técnica desse fenômeno. O processo está sendo bancado pela prefeitura de Jaguaruna (SC).

O fotógrafo e jornalista Luís Reis, membro da equipe Jagua Boys e amigo pessoal de Zeca Scheffer, explica que, além da altura, o intuito dos entusiastas locais é comprovar a constância de ondas grandes. "Não é só a maior onda, é a constância de ondas gigantes. O lugar mais constante do Brasil com ondulações gigantes", explicou. "Eu venho para a Laje há mais de 12 anos e tivemos mares gigantes que não conseguimos registrar".

Responsável pelo estudo, Nemes contou ao UOL Esporte que deve terminar os trabalhos no fim deste ano. "Estamos realizando o estudo de surfabilidade [qualificação de um pico de surfe ou qualificação de uma onda] neste momento. Existe uma fase de reunir os principais registros feitos nas últimas décadas. Depois, as medições de cada uma delas. Depois, vem a reconstrução dos fenômenos meteorológicos que geraram aquelas ondas, permitindo que seja definida a exposição do local às áreas de gerações de ondas, calculando o potencial máximo que poderia ter o valor da altura de quebra da onda na Laje. No momento, estamos na primeira fase", afirma.

Lucas Barnis Lucas Barnis
Arte/UOL

Nazaré brasileira

Ainda não cabe comparar o tamanho da onda de Nazaré, considerada hoje a maior do mundo, com a da Laje de Jaguaruna, como mostra a imagem acima. Para se ter uma ideia, a maior onda já surfada na história, do paulista Rodrigo Koxa, em Portugal, alcançou 24,38 m, mas há registros de ondas não surfadas de quase 30 metros em Nazaré. Ainda assim, o apelido de "Nazaré brasileira" pegou.

"Nazaré é a maior onda do mundo, mas em todas as temporadas por lá nunca surfei com medo. Meu receio é mais na pilotagem, pois o inside [região onde as ondas já quebraram] não existe nada igual. Já na Laje tem dias em que você surfa com muito receio, pois a onda é grande, pesada e ainda tem a rasa bancada que aflora na frente do surfista. Todos que surfam por aqui ficam com um forte receio pois a bancada é muito perigosa", explica Jacaré.

A geologia dos locais também é diferente. Em Nazaré, as ondas gigantes são formadas pela presença de um cânion submerso, chamado de canhão —o famoso Canhão da Nazaré. No Brasil, a laje não é tão alta, o mecanismo, porém, é semelhante.

Rafael Alvim
A onda-recorde de Rodrigo Koxa em Nazaré

O fenômeno que acontece na Laje acontece em Nazaré também, mas lá é por causa do cânion. Na Laje, há um foco de energia por causa de uma área rasa cercada de água profunda. É um fenômeno um pouco diferente, mas, de certa forma, a física por trás é parecida."

Lindino Benedet, oceanógrafo

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