20 anos

O que mudou para o esporte desde a lesão que quase custou a carreira de Ronaldo Fenômeno

Karla Torralba Do UOL, em São Paulo AFP

Ronaldo, o melhor jogador do mundo em 1996 e 1997, voltava de lesão depois de quase cinco meses. Era um retorno que tinha tudo para ser triunfal. Era a final da Supercopa da Itália contra a Lazio e ele entra em campo aos 13 minutos do segundo tempo para a alegria da torcida da Inter de Milão, que anseia por ver mais uma vez as suas arrancadas desconcertantes e gols decisivos. Num estalo, tudo mudou naquele 12 de abril de 2000.

Esse estalo, que foi ouvido por quem acompanhava a cena, era do joelho direito do atacante, que, depois de uma arrancada, desabou no gramado chorando e foi retirado de maca. Os jogadores rivais e companheiros de time colocaram as mãos na cabeça. As imagens repetidas, à exaustão na época, da patela do joelho direito de Ronaldo saindo do lugar ficam na memória até hoje. A lesão era grave.

O Fenômeno foi operado na França, fez quase dois anos de fisioterapia e voltou a brilhar, mostrando que o apelido não poderia ser mais adequado para o que faria na Copa do Mundo de 2002 — com o pentacampeonato da seleção brasileira, a artilharia do mundial e seu terceiro título de melhor do mundo da Fifa.

20 anos depois, o UOL relembra os dias de aflição passados por Ronaldo Fenômeno ao enfrentar a segunda lesão no mesmo joelho em menos de um ano. E discute com especialistas como aquela lesão mudou como médicos e fisioterapeutas tratam casos semelhantes atualmente.

AFP
Paolo Cocco/Reuters

"Vi duas lesões dessas em 42 anos de carreira"

O UOL ouviu médicos ortopedistas especialistas em joelho que guardam muito bem na memória o caso de Ronaldo Fenômeno. Apesar de os detalhes da cirurgia do atleta realizada pelo médico francês Gérard Saillant não terem sido divulgados, uma coisa é fato para os profissionais que conversaram com a reportagem: o rompimento do tendão patelar é algo raro entre jogadores de futebol.

"Ainda hoje é uma lesão rara e não tem grande frequência no futebol. Eu tive um jogador que jogava de zagueiro, o Batata. Ele teve essa lesão. Mas na minha carreira de 42 anos, eu vi duas lesões dessas de jogador de futebol", contou Joaquim Grava, médico do Corinthians e ex-médico da seleção brasileira no período de 1998 a 2001.

O ortopedista Marcus Luzo, especialista em joelho e professor adjunto da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, explica em detalhes a lesão de tendão. "É muito comum em esporte ter tendinoses, as tendinites crônicas. O cara ganha massa muscular e o corpo não está preparado. O tendão não acompanha muitas vezes e por sobrecarga vai sofrendo estresse e leva à tendinose, uma tendinite crônica que vira inflamação e fica mais sujeito a ruptura do tendão. Marcelo Negrão, que jogava vôlei, teve uma lesão semelhante por causa da sobrecarga. É uma lesão rara no meio de futebolista. De cada 100 lesões de ligamento, uma ou duas é de tendão ou menos".

No caso de Ronaldo, o tendão patelar, que ajuda a 'segurar' a patela do joelho no joelho, foi rompido e por isso vemos na imagem do jogador com a patela fora do lugar. Em entrevista dada em 2015, o fisioterapeuta que cuidou do jogador em 2000, Nilton Petroni, o Filé, explicou que o local "explodiu total". "Estourou tudo no joelho na hora. É até difícil definir em palavras o que aconteceu ali no momento", disse.

Ana Carolina Fernandes/Folhapres Ana Carolina Fernandes/Folhapres

E se fosse hoje? Lesão rara ainda tem cirurgia tradicional

Após 20 anos, o processo inicial de tratamento para uma lesão como a de Ronaldo continua o mesmo: cirurgia com reconstrução do tendão rompido. Os riscos do pós-operatório também. Por outro lado, o tratamento de fisioterapia mudou. A recuperação do Fenômeno após uma lesão tão grave só foi possível porque ele iniciou o processo de recuperação ainda no hospital em que foi operado.

Ele contou com Filé ao seu lado praticamente desde o momento em que acordou do procedimento. Foi o caso de maior impacto (seja de sucesso esportivo quanto de propaganda) da fisioterapia esportiva no início do século.

"De evolução cirúrgica não teve nenhuma evolução. É uma cirurgia específica, não é utilizado vídeo, é aberto mesmo. É uma cirurgia muito tradicional. Tem que reconstruir a anatomia", explicou Joaquim Grava, exaltando a parte da fisioterapia, que evoluiu em 20 anos.

"Hoje, a gente vê a fisio de outro modo. Antes do Ronaldo, você ficava até três meses imobilizado depois da cirurgia, ainda se usava gesso. Evoluiu porque não se usa mais gesso e sim imobilizador, por 15 ou 20 dias, começa exercício de flex-extensão e os aparelhos são mais sofisticados, estimulando o local pra ganhar músculo e ganhar amplitude de movimentos", disse o médico.

"Uma lesão que interromperia a carreira, hoje é uma lesão que é considerada grave e rara, mas com a evolução dos aparelhos de fisioterapia, você consegue recuperar em menos tempo. Assim, o jogador tem uma vantagem muito grande. Não fica muito tempo parado", ressaltou Grava. Ronaldo ficou mais de um ano sem jogar.

"A lesão do Ronaldo serviu para mostrar que a traumatologia esportiva, que estamos acostumados, é diferente da traumatologia comum com o complemento da fisioterapia. Mostrou que muitas vezes falar que não joga mais é dar uma opinião errada. A traumatologia e a fisioterapia esportivas esportiva são diferentes, nós trabalhamos contra o tempo. O que eu sempre digo é que o nosso minuto tem 30 segundos. Não se trata um atleta como uma pessoa normal", completou.

Ele [Ronaldo] repetia, chorando, para mim e para o Rodrigo Paiva [assessor de imprensa] na cama do hospital: 'Diz para mim que eu vou voltar a jogar. Diz para mim que dá, por favor'. E repetíamos que ele voltaria, não dava para falar outra coisa

Nilton Petroni, o Filé, em entrevista ao UOL em 2015 sobre a recuperação de Ronaldo

Hoje, além da ida a Paris, a decisão sobre uma nova operação que pode definir o futuro de sua carreira ou até mesmo encerrá-la talvez não pela gravidade da contusão, mas pelo trauma de ter de enfrentar, mais uma vez, um longo período de recuperação

Trecho de reportagem da Folha de São Paulo de 13 de abril, sobre a lesão e operação na França

AFP/Antonio Scorza

Ronaldo correu risco de voltar a jogar com menos qualidade

Assim como a cirurgia de 20 anos atrás é a mesma, as dúvidas para quem sofre o rompimento do tendão também são as mesmas de duas décadas. Por ficar muito tempo com a perna imobilizada, o Fenômeno correu risco de perder o movimento completo do local.

"Umas das complicações é você ficar com o joelho mais rígido, não tem todo o movimento. A preocupação é: será que vai voltar com o movimento? A rigidez é uma das preocupações. Mas pelo que ele jogou depois, mesmo no Corinthians, mostrou que um jogador de alto nível acaba se adaptando à lesão que tem. Um jogador de vôlei que tem dor consegue se movimentar diferente. Ele não tem um movimento perfeito, mas também não precisa. Ele se adapta", opinou Marcus Luzo.

O médico Alexandre Stivanin, ortopedista membro da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia, concorda. "Talvez ele não voltasse no mesmo padrão. Não que não jogasse mais bola, mas quando faz a cirurgia, fica fibrose que não tem mais a elasticidade. Para um cara no nível dele, faz muita diferença".

Filippo Monteforte e Paolo Cocco/Reuters Filippo Monteforte e Paolo Cocco/Reuters

"Quando meu joelho foi destruído, senti que a minha vida tinha sido levada embora"

Em relato pessoal sobre a própria carreira no site The Players Tribune publicado em 3 de agosto de 2017, Ronaldo contou o que sentiu no dia 12 de abril de 2000 e o deixou parado mais de um ano.

"Para mim, a vida parecia começar e terminar no campo de futebol. Quando meu joelho foi destruído, eu senti que a minha vida tinha sido levada embora", escreveu o jogador, lembrando que antes da lesão já havia tido outra, no mesmo joelho, em novembro de 1999.

"Era tão grave que algumas pessoas diziam que eu jamais voltaria a jogar futebol novamente. Que eu nem mesmo voltaria a caminhar novamente. Foi então que os meus limites foram realmente testados. Eu sabia que a Copa do Mundo de 2002 estava chegando, mas não eram os troféus ou os gols que me motivavam. Eu só pensava naquele sentimento que eu só podia encontrar no campo de futebol e com a bola aos meus pés", disse.

AFP PHOTO / Antonio SCORZA

O medo do fim

"Ronaldo: o medo do fim"; "Ronaldo, uma tragédia"; "Cirurgião garante Ronaldo, mas não garante Fenômeno". Essas são algumas das várias reportagens de jornais publicadas nos dias seguintes à lesão no joelho. Se Ronaldo já sentia a incerteza e o medo de não poder mais jogar, manchetes como essas só o deixavam mais nervoso e derrubado mentalmente — mesmo estando nas mãos dos melhores profissionais do mundo.

"O fator psicológico influencia no processo de recuperação e de sequência da carreira. Isso depende do quanto a cirurgia foi um sucesso. É uma interrogação para o atleta no período pós-lesão. Na recuperação fica sempre a dúvida: 'será que eu vou voltar ao mesmo nível de desempenho? A mesma agilidade? Ter a mesma confiança?'", comentou Henrique Bottura, psiquiatra da Clínica Psiquiatria Paulista e colaborador do ambulatório de impulsividade do HC de São Paulo.

Ronaldo, segundo Bottura, não seria o primeiro a ser vencido por uma lesão. "Tem estudo que fala que quem tem lesão grave na sequência na carreira vai regredindo no nível de jogo, [no nível] do time em que ele joga. Ele joga num time A, depois da lesão grave, vai para um time um pouco mais baixo e depois tem um declínio".

Não foi esse o final de Ronaldo, que dois anos depois, levaria a seleção brasileira ao pentacampeonato. Tanto quanto a lesão, a personalidade de Ronaldo Fenômeno também é vista como rara pelos especialistas.

"Não é à toa que o apelido dele é Fenômeno. A grande verdade é que os grandes atletas e as pessoas que têm desempenho extraordinário não são grandes à toa. É um conjunto de habilidades que envolve a força muscular. A capacidade de se reinventar. Ir além do que as pessoas vão, de enfrentar as barreiras, buscar clareza. Não é à toa que um cara como ele é um em muitos", completou o psiquiatra.

Claudio Villa/Getty Images Claudio Villa/Getty Images

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