Lisca e a sanidade

Técnico analisa como o apelido Doido atrapalhou a carreira. E revela por que se demitiu de América-MG e Vasco

Eder Traskini, Igor Siqueira e Marinho Saldanha Do UOL, em Santos, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre Fernando Moreno/AGIF

"Saiu do hospício, tem que respeitar. Lisca Doido é Ceará"

O grito vinha a plenos pulmões de uma torcida enlouquecida que lotava as arquibancadas. No gramado imediatamente abaixo, uma figura balança os braços como quem rege o canto. É o técnico do time, Luiz Carlos de Lorenzi. Naquele dia, o Lisca Doido.

O treinador havia assumido o Ceará na décima rodada do Brasileirão, quando a equipe era lanterna sem nenhuma vitória no torneio. Lisca salvou o time do rebaixamento com direito a vitória sobre o Flamengo dentro do Maracanã.

O que ficou daquele trabalho foi muito mais a cena com a torcida do que o futebol praticado em campo. E isso incomoda Luiz Carlos de Lorenzi. "O Ceará tinha cinco pontos em 36 disputados. Paramos para a Copa do Mundo por 40 dias. Eu trabalhei em cima de uma metodologia nova, reformulação de plantel e, em 26 rodadas, o time saiu da 20ª colocação para a sétima, sem contar as doze primeiras. Segunda melhor defesa - éramos a pior. Isso foi pouco falado".

"O que ficou? A festa com a torcida, a integração, o grito, a música..."

Lisca confessou que já sentiu que o apelido Doido, que o tornou famoso além dos fãs dos times que treinou, já o atrapalhou durante a carreira. Para ele, o futebol é um meio preconceituoso. Não foram poucas as vezes que Lisca ouviu perguntas de diretores de clubes fora do contexto em cima de sua sanidade. "Me sinto subjugado"

A música pode dizer que ele saiu do hospício, mas o que Lisca quer, mesmo, é ser a cada dia mais técnico.

Fernando Moreno/AGIF

Lisca: "Fiz a 7ª campanha no Brasileiro e só falaram do Doido"

Reuters/Carl Recine

Lisca Klopp

Não é fácil ficar afastado do futebol. Enquanto a carreira não segue, Lisca aproveita o tempo para estudar. Entre as atividades do dia a dia que o ocupam desde a saída do Vasco da Gama, no ano passado, estiveram a conclusão das licenças A e Pro da CBF Academy, além de um hobby do qual não abre mão: ver os jogos do Liverpool.

"Não perco um jogo", contou. "Para o modelo do América-MG, o Felipe [Conceição, técnico do América-MG que antecedeu Lisca] se baseou muito no modelo do Klopp. Principalmente a movimentação dos extremos, pressão, um 9 mais baixo, construtor, sem tanta presença de área, muita troca do meio com extrema, participação dos laterais por dentro. Começo a ver muito isso. Hoje, temos acesso a muitos campeonatos, tem essa facilidade", disse.

Tanto que a resposta vem rápido quando perguntado se prefere Klopp ou Guardiola. "Hoje sou mais fã do Klopp", diz Lisca. Ainda que reconheça qualidades em vários outros técnicos e observe movimentações para quem sabe adaptar a seus futuros trabalhos. A televisão também é um aprendizado, munido sempre de uma prancheta.

"Eu vou analisando e vendo o que seria bom para mim, mas tenho que analisar a característica dos jogadores que eu vou pegar, se eles se encaixam. Você não consegue reproduzir algo de lá para cá no futebol. É impossível. Você pode colher ideias, mas reproduzir igual é muito difícil. Mas tenho olhado muito o Klopp. Gosto da maneira com que ele joga, da intensidade, objetividade. Mas não deixo de ver Guardiola, Tuchel, com a linha de 5, com o 3-4-3, ele varia muito", afirmou.

"Vejo muito jogo. No início, quando eu saí do Vasco, dei uma parada, para reciclar, mas já puxei a prancheta, comecei a ver jogos, para ver o que os treinadores fazem, qual é a estratégia, o sistema, como marca", contou.

Thiago Ribeiro/AGIF

Está na hora de o treinador brasileiro falar sobre conteúdo e contar menos história. Muitas vezes, você lê um livro de um treinador brasileiro e é muita história, situação, mas o que ele fez? Como treina, como prepara o time, como faz jogar pelas beiradas, como faz o time ter penetração, jogo por dentro com qualidade? São várias perguntas. Está na hora. Temos pouca bibliografia, pouco material técnico-tático".

Lisca

Lucas Uebel/Getty Images  Lucas Uebel/Getty Images

Apenas Lisca

Lisca é Luiz Carlos Cirne Lima de Lorenzi. O apelido vem justamente do nome composto. Foi na casa do Inter, muito antes da reforma que deu ares modernos ao Gigante para a Copa do Mundo de 2014, que o treinador nasceu para o futebol.

No distante 1990, com 17 anos, Lisca passou a trabalhar no Colorado, clube com o qual tem origens familiares. O bisavô e o avô de Lisca atuaram no Inter. "Fui fazer um estágio nas escolinhas e me apaixonei. Mudou minha vida", contou.

Foram escolinhas, categorias de base, "terrão" no Beira-Rio antigo. Até treinar o principal, em 2016, na luta sem sucesso contra o rebaixamento. "Quando faltavam três jogos, o presidente Fernando Carvalho me chamou e a gente tentou na última hora reverter uma situação anímica muito difícil. Quando o time está à beira do rebaixamento, geralmente há uma introspecção dos jogadores. Futebol é um jogo de imposição, iniciativa, coragem e, nesse momento, faltava tudo isso para o grupo. Eu não consegui reverter".

Entre atletas revelados e vendidos que passaram por sua mão, parte do crescimento do clube tem sua assinatura. Fábio Pinto, Diogo Rincón, Lúcio, Rochemback, Nilmar, Sóbis, Luiz Adriano, Pato, Daniel Carvalho, Chiquinho, Rodrigo Paulista, Diego, Diogo, Ramon, Sidnei e Titi tinham o "selo Lisca de qualidade". "Já vi uma projeção de vendas de jogadores e parece que até 2012 o Inter era o primeiro colocado em vendas, mais de R$ 400 milhões", orgulha-se.

E quando Lisca ficou doido? Essa loucura é herança do trabalho no Juventude, e ganhou força numa discussão com D'Alessandro.

"Chegando no Juventude, a gente estabeleceu uma vibração com o torcedor, um resgate da identidade, de ter o prazer de ser Juventude e ir ao estádio Alfredo Jaconi. A torcida logo identificou e só trocou o nome de 'Papo doido', que era o mascote do clube, para 'Lisca doido'. Em um lance, teve uma discussão com o D'Alessandro".

Gustavo Granata/AGIF

Ele pediu calma, dizendo que nós éramos líderes e que o jogo poderia descambar. Eu falei que sim, mas disse que o juiz estava apitando demais para eles. A gente apertou as mãos, quando ele se virou, eu fiz um movimento do tipo: 'Ah, não enche o saco, muito blá-blá-blá'. Algo assim. A torcida do Juventude enlouqueceu. Hoje, fica junto com o Lisca".

Lisca, sobre a origem do apelido.

Fernando Alves/AGIF Fernando Alves/AGIF

Lisca Coelho

Não que Lisca seja um técnico de um trabalho só, mas é impossível falar do treinador sem citar o América-MG. Na Copa do Brasil de 2019, o técnico levou o time mineiro à semifinal, eliminando Inter e Corinthians. Quando foi derrotado pelo campeão Palmeiras, um diálogo com o então presidente do Verdão foi marcante.

"Um clube da Série B, que não ia à semifinal da Copa do Brasil desde 2008 — se não me engano —, com um orçamento anual de R$ 28 milhões, jogando contra o Palmeiras. O presidente Maurício Galiotte perguntou para o [presidente do América Marcus] Salum quanto ele gastava com futebol, ele não acreditou: 'Não é viável que uma equipe com esse investimento esteja entre as quatro melhores do país'. Isso foi pouco falado, ficou muito mais o folclore", lamentou.

Meses depois, Lisca teve que tomar uma dolorosa decisão: deixar o melhor trabalho da carreira. Foram desencontros internos na montagem do elenco e a dificuldade em renová-lo que forçaram a decisão.

"A gente ficou um bom tempo sem gerente-executivo e, na hora da reformulação do plantel, eu achei que me desgastei um pouco. Tive que tomar a frente. Fizemos pré-contrato com alguns jogadores e teríamos qualificação, mas o América optou por fazer as coisas com mais calma. Quando nos aproximamos da Série A, a integração estava mais complicada. Jogadores que chegaram com valores mais altos, os que estavam não foram valorizados. Ficou muito difícil manter o comando do grupo. O América precisava reformular e era difícil para mim por tudo que passei com aquele grupo. Achei que era melhor outro treinador fazer isso, melhor para o América. E acho que acertei", explicou.

Fernando Moreno/AGIF

Ali, eu queria chamar a atenção para o trabalho. 'Ah, provocou o Corinthians'. Não, é que eu ganhei do Corinthians três vezes. No Ceará, na Copa do Brasil e no Brasileiro e eu ganhei pela quarta vez. Era a quarta vez que ganhava com um time menor de um gigante. Quando ganhamos do Inter, foi uma resposta a quem diz que eu não posso ganhar do Inter porque trabalhei lá. Desculpa, mas é muito legal ganhar de vocês. E tem também a questão de fazer entretenimento. Futebol é muito entretenimento".

Lisca, sobre as provocações na câmera durante a Copa do Brasil de 2019.

Lisca Vasco

Thiago Ribeiro/AGIF

Lisca gringo

No mercado desde que deixou o Vasco em setembro de 2021, Lisca quer expandir horizontes. Diante do aumento exponencial de técnicos estrangeiros trabalhando no Brasil, Lisca vê como legítimo o movimento inverso.

"Acho que é hora de nós, brasileiros, entrarmos na Argentina, no Uruguai, na Bolívia - em que já temos o Antônio Carlos e alguns jogadores —, no Chile, no Equador... E, talvez, nessas equipes mostrar serviço nas Copas Sul-americanas e Copas Libertadores. Eu gostaria. Estou terminando a licença Pro. Há um movimento de equivalências das licenças, para igualar Conmebol e Uefa e a gente possa ser recebido. Eu quero trabalhar em Montevidéu, Buenos Aires, Quito, Santiago".

Não é só o mercado sul-americano que interessa a Lisca. O treinador recentemente assinou uma procuração para buscar um clube no mundo árabe. No entanto, acabou não tendo sucesso.

"Até o fim de março, assinei uma carta de intenção para um contrato nos Emirados Árabes Unidos. Estou aguardando ainda, mas senti que a coisa não andou muito. Alguns clubes me consultaram, não cheguei a abrir muito as conversas. Estou conversando para encerrar isso porque a temporada já começou lá e a coisa não andou. Era um time de menor expressão, mas o treinador não saiu e me trancou um pouco", contou.

Sem acerto fora do país, Lisca se volta novamente ao mercado nacional, onde já recusou uma proposta...

Mauro Jefferson/CearaSC.com

Lisca livre

Hoje, Lisca está livre. Aproveita o contato com as filhas, de 12 e 15 anos, leva na escola, nos treinos de vôlei, acompanha de perto os estudos. Tem tempo para passear com os cachorros, receber carinho de torcedores, fazer exercícios físicos e seguir estudando.

"É difícil. Nossa vida é corrida. É treino, planejamento, observar adversário. Não come, não dorme, tem ansiedade. É duro. É prazeroso, mas fisicamente exige demais", contou.

Mas a calmaria e a liberdade têm prazo de validade. Com o fim de março, acaba o prazo da procuração que assinou com o empresário que o levaria para os Emirados Árabes. Foi esse acordo que o fez recusar assumir o Sport.

"Cheguei a conversar com o Sport, que é um clube que eu adoro, tenho um carinho, um respeito enorme. Gostaria muito de ter ido, mas tenho que ter responsabilidade profissional com o que assinei. Deixei claro, tentei refazer a negociação, falei com meus empresários, mas a parte de lá (EAU) foi irredutível. Então, estou voltando para o mercado brasileiro. Tem o fim dos Estaduais e esperar uma oportunidade na Série A, na Série B. Vamos ver o que vai acontecer".

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