Vivendo o sonho

Primeiro mesatenista transgênero, Luca Kumahara celebra acolhimento no esporte

Beatriz Cesarini Do UOL, em São Paulo Mariana Pekin/UOL

Para mim, sempre foi muito fácil entender quem eu era, o que eu era, enfim, o gênero com o qual eu me identificava. Eu sempre me senti assim, como um menino. Foi mais simples nesse sentido, porque eu nunca precisei me aceitar. Na verdade, o esporte que acabou me colocando nesse lugar do feminino e essa foi a parte mais difícil.

Eu sempre estive no meio esportivo, e a maioria das modalidades tem essa separação entre masculino e feminino. Esse foi um ponto-chave na minha vida, e fez com que eu não me assumisse antes. Me tornei profissional muito cedo, aos 12 anos, comecei como Caroline e sempre tive a aspiração de viver do tênis de mesa por um bom tempo.

Era um paradoxo, porque eu sabia o gênero com o qual me identificava. Era uma coisa que queria fazer na minha vida pessoal, mas, profissionalmente, eu achava que não podia, justamente por causa da divisão entre categorias de homens e mulheres.

Em meados de 2019, tudo mudou. Assisti a um vídeo na internet e passei a entender melhor sobre o tema. Aos poucos, percebi que era possível que as pessoas passassem a me tratar pelo nome que eu queria, no masculino, e, ao mesmo tempo, pudesse seguir jogando. Foi isso que eu fiz. Meu nome é Luca Kumahara, eu defendo a seleção brasileira, e sou o primeiro atleta transgênero no tênis de mesa.

Mariana Pekin/UOL
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Esporte na frente

Luca Kumahara construiu uma carreira de destaque no tênis de mesa brasileiro. Ele disputou as Olimpíadas de Londres-2012, Rio-2016 e Tóquio-2020 e conquistou inúmeras medalhas em competições importantes —como o bronze na categoria individual nos Jogos Pan-Americanos de 2015, em Toronto, no Canadá.

Toda essa caminhada, porém, foi traçada na categoria feminina. Focado na carreira esportiva, Luca acabou deixando o desejo de mudar sua vida pessoal guardado, porque pensava que se assumir como um homem trans prejudicaria, de certa forma, sua história no tênis de mesa.

"Eu sempre falo que é uma coisa que eu sabia que existia dentro de mim, mas eu não mexia, porque sou atleta, compito no feminino e tal. Então eu deixava ali de lado", declarou Luca.

Eu sabia o gênero com o qual eu me identificava e, ao mesmo tempo, eu vivia do esporte e tinha essa aspiração de viver do esporte por um bom tempo. Tracei uma carreira a longo prazo. Era um pouco contraditório... Tinha uma coisa que eu queria fazer da minha vida pessoal e, profissionalmente, eu achava que não podia por causa dessa separação.

Luca Kumahara

Infância em paz

Ao contrário do esporte, a família sempre foi um lugar tranquilo para Luca. Ele sempre se sentiu à vontade para ser quem é. Quando criança, já usava cabelo curtinho e preferia se vestir com roupas que são relacionadas ao estereótipo masculino.

"Estava sempre de cabelo curtinho, bermudão, camisetão e minha família nunca implicou com isso. Teve só uma fase em que minha irmã falou que eu precisava deixar meu cabelo crescer, mas quando eu bati o pé e falei que não, ninguém encheu mais o saco. Meus pais sempre foram muito tranquilos, sempre deixavam eu ir cortar o cabelo sozinho, por exemplo. Quando eu era pequeno, saia, marcava horário e ia ao salão sozinho, e não se incomodavam com o corte", relembrou Luca.

"Eu não tive pressão por parte da família e acho que isso fez com que o processo fosse bem mais tranquilo para mim, com que eu não sofresse tanto. Apesar de não assumir que me identificava como menino e queria que me tratassem assim, eu, de certa forma, podia viver do jeito que eu queria", complementou.

Na escola, era a mesma coisa. Luca preferia brincar com os meninos, e não sofria rejeição ou bullying por parte das crianças. A única coisa que o incomodava e deixava confuso era a separação de filas, que, às vezes, eram divididas entre meninos e meninas.

Mariana Pekin/UOL Mariana Pekin/UOL
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Banheiros e presentes

Dois dos maiores incômodos de Luca eram a hora de ganhar presentes e o uso de banheiros. O primeiro é algo que a maioria das pessoas fica feliz em receber, e o segundo representa algo rotineiro no dia a dia. Mas, para o mesatenista, não era assim, pelo contrário, esses dois momentos lhe causavam desconforto.

Luca usava o banheiro feminino e em locais públicos —onde geralmente há a separação—, o atleta recebeu olhares tortos. Houve momentos em que chegou a ser abordado por mulheres que o alertavam: "Parece que você entrou no lugar errado".

"Em uma determinada fase, eu passei a segurar [as necessidades fisiológicas] o máximo possível, mesmo sabendo que não era saudável, mas queria evitar constrangimento ou desconforto. Em aeroporto, eu ficava segurando para ir somente no avião, que não tinha separação. Depois que eu já estava bem decidido a fazer tudo, todos os procedimentos da transição, passei a usar o masculino e agora está muito melhor", relatou.

Mas, e os presentes? Pois é. Luca não curtia receber agrados das pessoas e só agora entendeu o porquê. É que, geralmente, os presentes eram ligados ao universo feminino e, ao abrir o embrulho na frente das pessoas, o mesatenista não conseguia esconder a decepção.

"Minha irmã mais velha sempre acertou mais nos meus presentes. Eu nunca gostei de ganhar. Eu sempre ganhei coisas de menina, então, eu preferia nem receber. Sou muito sincero e não gosto de fingir que gostei de algo, então eu demonstrava. Por esse motivo, eu nem abro pacotes na frente da pessoa que me deu. Hoje, eu percebi o motivo disso. A maioria das coisas que eu ganhava eram coisas que eu não gostava", destacou Luca.

Descoberta em vídeo no YouTube

Luca sempre se entendeu bem com sua identidade de gênero, mas não sabia muito bem o que fazer ou quais passos percorrer. O clique para a virada de sua vida veio no fim de 2019, quando o atleta estava rolando a timeline do YouTube e encontrou um vídeo de um influenciador trans.

"Ele estava falando sobre os procedimentos de transição, o que ele fez e sobre os termos também. Foi bem educativo e informativo para mim. Naquela época, eu não sabia o que eu podia fazer com isso. Então, ele falando esses procedimentos foi muito legal. E foi algo sem querer, não foi algo que fui atrás. Eu pensei que poderia fazer também. A partir daí, foi muito claro. Queria fazer isso um dia na minha vida, mas pensei que teria que esperar por causa do esporte. Nesse momento, eu decidi que tornaria isso público só quando eu começasse a hormonizar [fazer terapia com o uso de hormônios para a transição de gênero] e competir no masculino", contou Luca.

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O processo

No início de 2020, Luca decidiu compartilhar a decisão com as pessoas mais próximas e pediu que o tratassem no masculino. Com esse primeiro passo —ser o primeiro atleta assumidamente transgênero do tênis de mesa—, o brasileiro já sentiu um peso saindo de suas costas, mas perdeu o controle quanto à restrição ao assunto.

"Comecei a contar para mais e mais pessoas e me sentir cada vez mais à vontade. Então eu pensei: 'Acho que preciso tornar isso público'. Até porque, a espera era muito angustiante... Ter que segurar isso por causa do esporte era muito pesado. Assim eu, com apoio da minha psicóloga, decidi que realmente seria bom ir dando mais alguns passos, sem estar hormonizando e podendo competir no feminino", contou Luca.

"Coloquei na balança: se eu tornar isso público e as pessoas passarem a me tratar pelo nome que eu quero, no masculino, acho que consigo esperar por mais tempo, porque eu ainda tenho objetivos com a seleção feminina. A seleção feminina conta comigo e faz parte da minha história. Seria ruim profissionalmente ter que parar agora no meio. Essa foi a forma que eu encontrei para existir um meio-termo, que eu me sentisse confortável, mas que não precisasse mudar de categoria ainda, porque, quando eu começar a hormonizar, por lógica, vou começar a competir no masculino."

Até o momento, Luca assumiu a identidade de gênero e a mudança de nome. Porém, como não iniciou o processo de hormonização, ainda compete na categoria feminina.

Mariana Pekin Mariana Pekin

Agora está tudo se encaixando. Ainda estamos no processo de adaptação e eu estou bem surpreso positivamente com todos ao meu redor. Eu tive os jogos Sul-Americanos e o COB (Comitê Olímpico do Brasil) foi perfeito, a CBTM (Confederação Brasileira de Tênis de Mesa) também. Todos foram super positivos desde o início, e isso me traz muito conforto. Agora sou tratado como sempre quis.

Luca Kumahara

Mariana Pekin/UOL

Acolhimento no ambiente competitivo

No início de outubro, Luca defendeu a seleção brasileira nos Jogos Sul-Americanos de Assunção e foi campeão no individual feminino. Além da alegria por conquistar o primeiro título como Luca, a competição teve um sabor especial com a recepção dos atletas e entidades. Até mesmo quem o chamava de Kumahara ou pelo apelido "Kuma" fez questão de tratar o brasileiro pelo nome: Luca.

"Foi bem especial. Todo mundo ao meu redor fez com que esse título fosse mais especial ainda. Não foi só o nome, foi todo o tratamento que eu tive. Por todo mundo que eu passava, falavam: 'e aí, Luca'. Todo mundo bem simpático e claramente querendo me deixar confortável. Claro que foi algo diferente e deu para ver que todos deram a devida importância, sabiam o que significava pra mim e se prepararam muito para me tratar da forma que eu queria, para eu me sentir bem, confortável", exaltou o atleta.

Representatividade e responsabilidade

Assim que se assumiu como homem trans ao público, Luca se tornou uma referência. O atleta afirmou que sempre soube do peso da representatividade, e destacou a importância de falar sobre o tema de forma responsável.

"Atletas do próprio tênis de mesa vieram falar comigo, mas eles já pararam de jogar, às vezes, não aguentaram a angústia de não poderem ser quem realmente são. É muito doida essa questão da representatividade, porque é muito forte. O quanto a questão com a identidade de gênero no esporte fez com que eles parassem?", refletiu Luca.

Desde que o brasileiro se assumiu transgênero, a Federação Internacional de Tênis de Mesa (ITTF) começou a pesquisar e entender mais sobre o assunto e está discutindo a criação de regras para atletas trans na modalidade.

"Muitas pessoas trans que não são do esporte também vieram mandar mensagem. É um vínculo muito forte, porque ainda é uma coisa muito difícil de ser falada. De certa forma, só vir falar comigo, dá uma força para se sentirem à vontade para se assumirem. Apesar disso, há uma questão muito séria, porque mesmo você se inspirando, motivando com outras histórias, a realidade de cada um é diferente. Não se sabe como é em cada família. A realidade de pessoas trans, principalmente de mulheres, é muito dura. Não é coincidência que a maioria precisa se prostituir para sobreviver, a média de vida de uma pessoa trans é de 35 anos, o Brasil é o país que mais mata trans. Não é nada fácil. Eu sou muito privilegiado de estar na família em que eu nasci, de todo mundo me apoiar e estar super tranquilo em relação a isso."

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