'Esses negros maravilhosos'

Narrador Luís Roberto achou que seria acusado de racismo, mas teve a sexualidade questionada: 'Então tudo bem'

Beatriz Cesarini e Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Reprodução

Na tarde de 20 de junho de 2014, Suíça e França entraram em campo para a segunda rodada da fase de grupos da Copa do Mundo do Brasil. Responsável por comandar a transmissão na TV Globo, ao lado de PC Oliveira e Juninho Pernambucano, Luis Roberto chegou cedo na Arena Fonte Nova, em Salvador.

Inspirada pela terra de todos os santos, a seleção francesa goleou por 5 a 2. Foi impossível escolher um craque do jogo. O coletivo francês formado por nomes como Evra, Matuidi, Benzema, Giroud e Pogba impressionava. No segundo tempo, quando os franceses já venciam por 5 a 0, Luís Roberto soltou uma das frases mais marcantes de sua carreira: "Esses negros maravilhosos, que saem tabelando, tocando".

Viralizou.

Na era das redes sociais, a internet foi abaixo com todos os tipos de comentários. Oito anos (e quase duas Copas) depois, Luís Roberto repetiu o bordão quando a França marcou o segundo gol sobre o Marrocos na semifinal da Copa do Mundo de 2022. Marca registrada, o termo é usado por Luís Roberto com moderação para não ficar batido. A seguir, ele conta os bastidores daquele primeiro dia e dos que vieram na sequência.

Lourival Ribeiro/SBT - Yasmin Ayumi/Arte UOL

A partir do dia 20 de novembro, o mundo inteiro estará com os olhares voltados para a Copa do Mundo, que será realizada no Qatar. A maioria dos brasileiros acompanhará o maior evento de futebol do universo pela televisão.

É justamente esse aparelho que, ao longo dos anos, moldou a forma de o brasileiro torcer. Nesta série, o UOL Esporte relembra e conta a história de grandes momentos da televisão brasileira em Copas do Mundo, desde personagens icônicos e imprescindíveis no Mundial a simples frases que todos entoamos ao longo dos anos.

Só após deixar a Arena Fonte Nova que Luís Roberto soube da proporção que a frase tomava. Num primeiro momento, temeu que o termo tivesse soado racista e já se preparava para pedir desculpas. Foi quando o diretor do narrador na época telefonou para falar sobre o assunto: "Olha Luis, tome cuidado, a gente está numa sociedade que, às vezes, pode entender de forma errada", teria dito chefe.

"Eu perguntei se ele tinha sido entendido com um viés racista. Iria pedir desculpas na hora. Na minha família, eu cresci com um posicionamento antirracista dos meus pais. E meu pai sempre foi de futebol e foi um cara que me ensinou que esse mundo é inclusivo e diverso", relembrou o narrador.

Na verdade, o diretor explicou a Luís, muitas pessoas estavam questionando a sua sexualidade de maneira homofóbica. O narrador respirou aliviado. "Ah, é isso? Então tudo bem, porque isso é de cada um. Deixe que falem".

No fim das contas, eu não fui repreendido em nenhum momento. A frase veio na hora, eu não me preparei, sabia dessa frase. Sou daqueles que não se prepara muito nesse sentido de escolher algumas expressões para o caso de acontecer determinadas coisas dentro do jogo. Eu gosto que aflore, que venha do fundo da alma.

Luis Roberto

Homenagem ao pai

O elogio de Luís aos jogadores que representaram a França em 2014 tem uma origem saudosista. O narrador de 61 anos nasceu em São Paulo e cresceu ouvindo o pai, Afonso, falar sobre a melhor linha de ataque da história do Santos.

"Embora meu pai não fosse santista, ele tinha um encantamento com o Santos e quando o time jogava, principalmente no Pacaembu, porque morávamos em São Paulo, ele tratava o ataque como 'os negros maravilhosos vestidos de branco'. Quase todos eram negros. Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé. Só Seo Pepe que era branco. Foi o melhor ataque de todos os tempos, nunca mais vai aparecer outro", relembra Luis Roberto.

Foi Seo Afonso que veio à cabeça de Luís durante o espetáculo que a França deu diante da Suíça. Uma expressão que veio impulsionada pela saudade forte e que se tornou uma grande homenagem.

"Quando veio 2014, eu resolvi usar essa expressão. Talvez, foi o grau de saudade do meu pai, que morreu em 2010. A minha maior emoção em Copas do Mundo foi em 1990, na Itália, quando eu consegui ligar para ele lá do Estádio Olímpico de Roma. Nem existia celular na época, eram uns telefones nas bancadas. Então, de fixo para fixo, nós ficamos emocionados juntos, ele chorando do outro lado, porque era um sonho estar numa Copa", conta o narrador.

Repercussão

A frase se consolidou como um meme da Copa de 2014. Sempre que a França entrava em campo, os espectadores esperavam que Luis estivesse narrando para ouvirem novamente "esses negros maravilhosos".

Quatro anos se passaram, a história continuou e o meme perdurou. Enquanto Luis não narrasse um jogo da França no Mundial da Rússia, a internet não sossegaria.

"Em 2018, quando eu completei a página do álbum de figurinhas de uma seleção que tinha um punhado de negros maravilhosos, eu fiz um post brincando: 'eles estão de volta'. Pra quê? Aí foi legal, uma coisa que ficou todo mundo", lembrou.

Hoje, basta fazer uma busca rápida que é possível encontrar as pessoas usando a frase até em contextos que passam longe do futebol. Os brasileiros Vinícius Júnior e Rodrygo ganharam a alcunha carinhosa também ao brilhar no ataque do Real Madrid.

Empolgação x refém de bordão

Luis concorda com o sucesso da frase, mas destaca a linha tênue entre o uso correto de um bordão e o exagero. "Em 2014 deu certo e a preocupação da TV Globo, antes, era não deixar que uma pessoa que faz parte da nossa transmissão seja mais importante que o jogo. E isso faz todo o sentido. Só que as pessoas começaram, principalmente depois das redes sociais, a criar algo mais fora da caixa, porque existe essa identificação com fãs. Isso trouxe, claro, exageros", conta Luis.

"Mas acho equivocado ficar refém de bordões. Em primeiro lugar, é a boa história do jogo e depois a narração correta dessa partida, com os seus personagens. A gente percebeu que estavam funcionando algumas frases mais descontraídas e meus diretores da época me incentivaram a buscar essa leveza. Aí veio a Olimpíada, o vôlei e alguns bordões na modalidade. Isso avançou bem para todos nós e em 2018 a gente chega com toda a expectativa", finalizou.

Histórias da última Copa

  • Sabe de Kane?

    "Sabe de quem?" é outro bordão famoso de Luís Roberto e, na Copa do Mundo de 2018, ele ouviu um pedido dos fãs e resolveu dar um upgrade para homenagear o jogador Harry Kane, da Inglaterra. "Muita gente brincou com isso antes do primeiro jogo dos ingleses que narrei, mas ele não fez gol. E quando o Harry Kane marcou de pênalti sobre a Colômbia, nas oitavas de final, finalmente rolou", relembrou Luis.

    Imagem: Sergio Perez/Reuters
  • Pode pedir música

    O lateral direito da seleção da Inglaterra, Kieran Trippier, complicou as narrações de Luís Roberto na Copa do Mundo da Rússia, em 2018. Em três situações diferentes, o narrador chamou o camisa 12 de "stripper" e levou a internet à loucura. Os espectadores brincaram ao dizer que Luis poderia pedir música no Fantástico --como fazem os jogadores que marcam três gols no domingo.

    Imagem: Ryan Pierse/Getty Images
  • Na ambulância

    "Cheguei pro jogo em Samara, super longe. Tive H1N1, passei muito mal. O jogo mais difícil de tocar doente foi Portugal e Uruguai. Aí em Samara, cheguei pro jogo, já um pouco melhor de saúde, só que o Roger ficou uma espécie de mãe, ele cuidava de mim. Com as medicações, eu parei de tomar o remédio da pressão e precisava controlar, no estádio tinha uma ambulância UTI e eu fui lá medir. Chegou a dar um burburinho e eu até postei no Instagram para tranquilizar".

    Imagem: Reprodução

Cuidado com exageros sobre o Qatar

Luis foi um dos narradores escolhidos pela TV Globo para narrar os jogos da Copa do Mundo in loco, no Qatar. Com boas expectativas, o profissional exaltou a responsabilidade e cautela ao tratar de temas polêmicos para não fortalecer estereótipos que tomam conta do país do Mundial.

"O Roger, que vai ser um dos comentaristas parceiros, morou no Catar. Ele estava dizendo que não podemos exagerar. O Qatar tem vontade de mostrar avanços em alguns pontos. Tem um dia que não pode usar bermuda, durante a Copa talvez não seja tão rígido, mas é a cultura deles. Acho que a gente tem que entender o processo e o movimento que busca mostrar a realidade, tanto o Olímpico, quanto pro futebol, ele serve para esses gritos", destacou.

"Na Copa, a Fifa tem uma bandeira de abertura, você tem que tolerar algumas coisas, porque tem gente do mundo inteiro, culturas completamente diferentes, nem todos vão conseguir se enquadrar perfeitamente naqueles hábitos locais. Recebemos algumas orientações da Globo e eu viajo sereno. Acho que a gente vai ter, na nossa equipe, uma força muito poderosa, por conta da presença das mulheres. A expectativa é muito boa, meu primeiro jogo é Senegal e Holanda".

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