Me pintaram como um monstro

Joel Tigre foi condenado pela morte do filho. Mesmo alegando inocência, cumpriu pena e quer voltar a lutar MMA

Adriano Wilkson Do UOL, em São Paulo Reprodução

Essa é a história de um pai acusado de matar o próprio filho. Joel Ávalo dos Santos, conhecido no mundo do MMA como Joel Tigre, foi preso aos 25 anos, quando ainda tinha nos braços o corpo do filho Rodrigo, um bebê de um ano. Rodrigo vivia com o pai e com sua esposa, Jéssica Ribeiro, madrasta da criança.

O lutador ficou um ano e sete meses preso e, além da liberdade, perdeu a chance de se despedir do filho. Jéssica, uma moça de 21 que ele tinha conhecido nos treinos da academia e com quem costumava ir à igreja, acabou confessando: por estar com muita raiva e nervosa, agrediu a criança até que ela morreu.

Com a autoria do crime esclarecida, ainda pairava a dúvida sobre a participação do pai. Ao longo das diferentes fases do processo, policiais, promotores, jurados e um juiz não entraram em consenso a respeito de qual crime Joel teria praticado. A polícia o indiciou por maus tratos seguido de morte. O promotor o denunciou por homicídio doloso, apontando nele uma intenção de matar. Durante o julgamento, o tribunal do júri negou que ele tenha tido intenção de matar o filho e o juiz então o condenou por homicídio culposo.

Nessa leitura, ao não impedir que Jéssica agredisse Rodrigo até a morte, Joel teria agido com "negligência" e teria contribuído para a morte do filho. Mas Joel tem um álibi: o depoimento de testemunhas que garantem que, no momento do crime, ele estava em seu local de trabalho, quinze minutos distante da casa onde seu filho foi morto.

Condenado e sem chance de recurso, o lutador recebeu uma pena menor do que o tempo que já tinha ficado preso e, por isso, foi posto em liberdade. Ele se diz, porém, totalmente inocente.

"Eles me pintaram como um monstro e na verdade o monstro foi a Justiça", diz o lutador em uma entrevista por telefone. "É facil pegar um cara como eu, pintar pra sociedade um monstro e depois ficar por isso mesmo. Eles tiveram que me condenar em alguma coisa para eu não sair como inocente. Mas se alguém achasse que eu tive alguma culpa no que aconteceu, eu não teria saído da cadeia."

Uma morte suspeita

Joel Tigre ganhava a vida como auxiliar de padeiro enquanto sonhava em consolidar sua carreira nas artes marciais. Treinando diariamente na cidade de Dourados, no interior do Mato Grosso do Sul, ele era dono de três cinturões de torneios regionais e acumulava um cartel de 12 vitórias em 16 lutas.

Por volta das 7h da manhã do dia 16 de agosto de 2018, Joel havia acabado de chegar para mais um dia de trabalho na panificadora Estrela quando recebeu uma ligação da mãe de sua esposa, Jéssica.

A sogra dizia que Rodrigo estava passando mal e tinha golfado. Rodrigo era seu filho de um ano, fruto de um antigo relacionamento. Junto com uma irmã de três anos, o bebê ficava aos cuidados da madrasta Jéssica quando Joel saía para trabalhar.

Ao chegar em casa, Joel recebeu a pior notícia que um pai pode receber. "Eu fiquei em choque e não conseguia entender o que estava acontecendo", ele lembra, um ano e meio depois. O corpo de seu filho jazia imóvel dentro da casa.

Jéssica e seus pais, que moravam em uma casa aos fundos, afirmavam que a criança havia se engasgado e que havia morrido antes que qualquer socorro pudesse salvá-la. Um médico e uma enfermeira, chamados para fazer o atendimento, desconfiaram de marcas na língua, na cabeça e no pescoço do bebê, além de machucados de coloração diferentes, indicando que a criança estava lesionada há mais tempo. A polícia foi chamada.

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Delegado prende o casal por suspeita de maus tratos

Na delegacia, o delegado Francis Flávio Araújo Freire viu inconsistências no depoimento de Joel e Jéssica. Nessa altura, a esposa ainda não havia confessado: em seu primeiro depoimento, Jéssica disse que Rodrigo começou a passar mal depois que Joel saiu de casa para o trabalho, que ela tentou acudi-lo, mas o bebê morreu em seus braços.

O relato não explicava a causa da morte da criança. Segundo o exame de necropsia, Rodrigo morreu depois que uma de suas vértebras foi quebrada "por ação contundente" e perfurou o fígado, causando uma hemorragia.

Nenhum dos dois tampouco soube explicar a origem das manchas hemorrágicas que o bebê tinha pelo corpo. Jéssica disse que, como Rodrigo estava começando a andar, era normal que caísse bastante e daí teriam se originado os machucados.

Questionado sobre essas marcas no corpo do filho, Joel afirma que sabia de uma delas, na testa, que teria sido fruto de uma queda durante uma brincadeira. Ele diz que nunca suspeitou que a esposa agredisse Rodrigo ou sua outra filha.

Ouvidos em juízos, parentes e vizinhos do casal também negaram que a criança fosse vítima de maus tratos. "Eu jamais deixaria ela fazer nada contra os meus filhos", afirma Joel. "Essas marcas o médico diz que podem ter sido feitas antes, mas também podem ter sido feitas no dia."

Como as manchas tinham coloração diferente, o médico legista apontou a suspeita de que o bebê já vinha sendo agredido há mais tempo. Com base nessa suspeita e na ausência de uma explicação convincente, o delegado resolveu prender os dois.

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Madrasta muda versão, fala em acidente e diz ter pisado no bebê

Uma semana depois de ser presa, Jéssica deu seu segundo depoimento e mudou completamente o relato sobre a morte de Rodrigo. "Se não disser a verdade, isso pode piorar a situação minha e do meu marido", declarou ela aos policiais.

Nesse relato, Jéssica confirmou que o bebê começou a chorar depois que o pai saiu de casa. Ela então decidiu preparar sua mamadeira. Para vigiá-lo da cozinha, ela o colocou sobre uma bancada que divida o cômodo do quarto. Enquanto brincava com a irmã, Rodrigo teria caído dessa bancada em cima de um baú e Jéssica teria corrido para socorrê-lo. Foi aí que ela percebeu que a criança sangrava pela boca e na testa. Como o bebê não parava de chorar, Jéssica foi ficando cada vez mais irritada. Nervosa pelas noites mal dormidas e por estar cuidando de duas crianças que não eram suas, ela teria interpretado o choro como dificuldade para defecar e então começou a apertar a barriga de Rodrigo.

"Tudo que eu fiz foi com força", admitiu ela. Jéssica teria pedido para a irmã de Rodrigo, uma criança de três anos, também apertar a barriga do bebê. E depois a própria madrasta teria usado os joelhos para pressionar o corpo da criança. Jéssica admite, em um determinado momento, ter pisado nas costas da criança e ter ouvido seus ossos quebrarem.

Ao perceber que Rodrigo não reagia mais, ela teria apertado o pescoço do bebê e tentado fazer respiração boca a boca (o que teria ocasionado as marcas nessa região). O relato, que soou como a confissão de um crime, levou o delegado Francis Flávio Araújo Freire a indiciá-la por dois ilícitos: maus tratos e homicídio doloso.

"Eu estava preso quando eu soube o que ela tinha feito", conta Joel. "Pra mim foi um choque. Eu subi chorando um corredor que tinha na cadeia. Só de você ver alguém olhando feio pro seu filho, isso mexe com você, imagina o que ela fez. Quando eu fiquei sabendo, isso começou a me corroer lá dentro."

Ministério Público endurece denúncia contra lutador

Preso sob suspeita de envolvimento na morte do filho, Joel Tigre achou que aquele era o começo do fim de sua vida. "Naqueles primeiros dias lá dentro, eu achei que era isso, que tinha acabado."

A opinião pública, registrada em comentários nas redes sociais e nos programas policiais da TV local, não se atentou aos pormenores da investigação. Mesmo que Joel não tenha sido investigado pelo crime de homicídio (e tenha sido indiciado por supostos maus tratos), o lutador passou a ser visto como o autor de um dos piores crimes que se pode cometer: o assassinato do próprio filho.

Durante a investigação, a reportagem do UOL Esporte ouviu vizinhos, parentes e amigos do lutador, que sempre defenderam sua inocência. Ele sempre foi visto como um bom pai e um sujeito que jamais cometeria qualquer violência contra uma criança. O mesmo, porém, se dizia de Jéssica.

A situação de Joel ficou ainda pior quando o promotor Élcio D'Ângelo, insatisfeito com as conclusões da investigação policial, resolveu dar um passo além, e denunciar tanto Jéssica quanto Joel por homicídio doloso, quando há intenção de matar. De acordo com a tese da promotoria, o pai sabia que seu filho era constantemente agredido pela madrasta. Como como não fazia cessar as agressões, argumentou o Ministério Público, era conivente com elas.

Os advogados Vitor Cáceres, Rodrigo Silva e Renan Pompeu, que defenderam Joel, ponderaram que o réu não poderia ser conivente com agressões que ele nem sequer havia presenciado, já que não estava em casa no momento em que elas se deram. Mas o juiz Eguiliell Ricardo da Silva aceitou a denúncia, considerando que Joel tinha a obrigação de defender o filho, e levou a casal a júri popular.

"Há indícios suficientes de que em relação ao réu Joel pode ser imputada uma participação por omissão, já que, em tese, como genitor teria o dever de agir consistente na obrigação legal de cuidar, proteger ou vigiar o filho, em decorrência do poder familiar", escreveu o magistrado.

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No tribunal, o preço da liberdade é a perda da inocência

No dia 10 de março de 2020, em julgamento que durou 15 horas, o tribunal do júri composto por cinco mulheres e dois homens condenou Jéssica por homicídio doloso, com emprego de meio cruel e contra pessoa menor de 14 anos.

O juiz fixou sua pena em 17 anos e cinco meses. Ela continua presa, mas o advogado Osmar Blanco já entrou com um pedido de apelação. Sua defesa admite que Jéssica cometeu o crime de homicídio culposo, no qual não há intenção de matar. Ela teria agido por imprudência, ao deixar o bebê em uma bancada alta, da qual ele teria caído.

"Pedimos a anulação do júri porque os jurados julgaram contra as provas do inquérito", disse o advogado. "Foi um acidente, ela não quer fugir das responsabilidades dela. A Jéssica fazia a função de mãe, cuidava das duas crianças. Testemunhas dizem que ela sempre cuidou muito bem delas."

Já no caso de Joel, os jurados entenderam que ele não teve a intenção de matar o filho, mas que teve culpa pela morte, por ter agido com negligência. O crime foi desclassificado e o lutador acabou condenado por homicídio culposo.

Ele teria a chance de recorrer da condenação, mas preferiu acatá-la. Sua pena foi de um ano e quinze dias, mas como ele já havia ficado um ano e sete meses preso, acabou sendo posto em liberdade. Terminou trocando a nódoa de ser condenado pelo assassinato do próprio filho pela chance de sair da cadeia e seguir com a vida.

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"Quero cuidar da minha filha e voltar a lutar"

Suas primeiras semanas de liberdade Joel Tigre passou ao lado da filha, hoje com quatro anos, e com a mãe dela, que nunca acreditou que Joel tivesse qualquer participação na morte de Rodrigo.

Os três estão em uma fazenda, na região em que lutador cresceu, no ambiente rural onde começou a sonhar em ser um atleta profissional. Antes de Rodrigo morrer, Joel tinha acabado de tirar o passaporte para fazer sua primeira luta internacional, na África do Sul. Agora, ele espera voltar ao trabalho como padeiro, retomar os treinos e, quem sabe, as lutas.

A pandemia do coronavírus, que fechou todas as academias da cidade, deixa seus planos em compasso de espera. Por enquanto, ele pretende se reaproximar da família.

"Quero cuidar da minha filha, sei que ela precisa de ajuda depois de tudo que presenciou. Eu sempre quis ser pai e me senti muito abençoado quando tive ela e depois o Rodrigo. Ele estava começando a andar e eu sempre imaginei que quando ele ficasse maior, nós iríamos juntos pra academia."

"Eu queria ensinar ele a lutar."

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