Fraturas inesquecíveis

Motivo do Dia do Goleiro, Manga faz 85 anos no Retiro dos Artistas e explica como quebrou tanto os dedos

Igor Siqueira Do UOL, no Rio de Janeiro Igor Siqueira/UOL

O braço estendido para um aperto de mão é a oferta para um contato direto com um pedaço da história do futebol. Com as mãos, hoje enrugadas, que fizeram defesas e levantaram troféus apesar de lesões, fraturas e inflamações mal curadas. Os dedos tortos e disformes são um documento vivo de identidade do homem que passou a sintetizar o que é ser goleiro.

As pessoas me conhecem pela mão quebrada. Quando estou na rua, olham a mão e perguntam: 'É o Manga?'. Eu respondo: 'Sim, por quê?' 'Pela mão quebrada'".

As lesões ao longo das décadas foram tantas que Manga nem se lembra mais quantas são. Mas é impossível ignorá-las.

Não é por acaso que o dia 26 de abril foi a data escolhida para ser o Dia do Goleiro no Brasil. Hoje, Manga completa hoje 85 anos vivendo em uma casa simples, com a mulher, Maria Cecília, no Retiro dos Artistas, no Rio. Foi lá que ele recebeu a visita do UOL Esporte para falar das memórias.

"Estou esperando também para ver se tem alguma surpresa", disse ele, sem esconder a ansiedade.

Igor Siqueira/UOL
Reprodução

Quem é Manga?

Manga se chama Haílton Corrêa de Arruda. Pernambucano, foi revelado pelo Sport, mas ganhou notoriedade como dono da meta do Botafogo no período mais vitorioso do clube, os anos 1960. Começava com ele a formação que, no ataque, tinha Garrincha, Quarentinha, Amarildo e Zagallo.

Embora a Copa de 1966, com a seleção brasileira, tenha sido uma frustração, a carreira por clubes foi muito vitoriosa. Ele virou ídolo no Nacional, do Uruguai, com hegemonia local, conquistas da Libertadores e do Mundial. Numa fase ainda mais experiente, foi pilar do bicampeonato brasileiro do Internacional, em 1975 e 1976. Depois de passar por Operário-MS, Coritiba e Grêmio, terminou a carreira no Barcelona de Guayaquil (EQU).

Caiu de ser o Manga [o Dia do Goleiro]. Foi uma surpresa. Estava no Uruguai quando vi a notícia. Esperamos que continue assim, ainda mais com vida. Qualquer dia é dia para festa. Me vacinaram de novo na semana passada, pela quarta vez. Graças a Deus estou bem."

Manga, sobre o Dia do Goleiro, comemorado no Brasil desde 1976

"Eu me acostumei com a dor"

Um inimigo das luvas (antigas)

Quando se depara com uma câmera, Manga faz um movimento automático: mãos espalmadas para o alto. Ao longo dos anos, desenvolveu o hábito de exibir quase que espontaneamente as marcas da carreira. Manga foi referência em um período rústico para a função de goleiro. Era inimigo da luva. Pelo menos das que estavam disponíveis na época.

"A luva era de couro. O sapateiro que fazia. Eu não tinha confiança. Era muito grande. Entrava com a luva e deixava ela ao lado da trave. Jogava sem", disse ele, explicando o ritual pré-jogo:

"Eu cuspia assim, colocava areia (esfrega as mãos) e ia para o campo".

Além de jogar sem proteção, não esperava a recuperação completa das lesões para voltar a jogar. Nos tempos de Botafogo, o médico Lídio Toledo, que por décadas também foi da seleção brasileira, tentava manter o paciente sossegado, mas não conseguia.

"O dedo ficava muito gordo. O doutor metia a agulha e tirava o sangue. E daí, enrolava com algodão e esparadrapo. Eu entrava no campo e seguia. Foi assim em todos os lugares", conta Manga, cuja vontade de jogar aumentava na mesma proporção da importância da partida seguinte:

Depois que terminava os 90 minutos, o médico colocava uma tala de gesso por uma semana. Então, dependia se viria uma partida difícil. Com jogo difícil, eu tirava no sábado, treinava. Ainda ficava meio inflamado. Aí colocava o algodão com a gaze. Assim foi minha vida".

Hoje, Manga diz que é totalmente acostumado com a forma de suas mãos.

Igor Siqueira/UOL Igor Siqueira/UOL

Por que o Retiro dos Artistas entrou em cena

Os dias que antecedem o aniversário e o Dia do Goleiro deixam o celular de Maria Cecília movimentado. As mensagens para a mulher chegam com pedidos de entrevistas por telefone, envio de vídeos ou para alguma informação sobre o homem com quem divide a vida há 42 anos.

"Tem pedidos do Brasil, do Equador, do Uruguai e até dos Estados Unidos", conta Cecília, de 76 anos, que até pediu uma ajuda para gravação e envio de vídeos, após a entrevista ao UOL.

O cenário é a casa simples na qual Manga e Maria Cecília vivem, no Retiro dos Artistas. Fincado no bairro do Pechincha, Zona Oeste do Rio, o espaço centenário é habitação de pessoas que trabalharam na classe artística ao longo dos anos, ainda que nos bastidores, e precisam de um refúgio quando os recursos diminuem e a idade avança.

Manga é a única figura do esporte por lá — antes dele, o jornalista Sérgio Noronha, que morreu em 2020, também morou no local. Os dois foram exceções muito bem aceitas pelo diretor do local, o ator Stepan Nercessian, que é torcedor do Botafogo. A presença do ex-goleiro foi resultado de uma mobilização encabeçada pelo jornalista Marcelo Gomes, da ESPN, em meados de 2020. A ideia de uma reportagem se transformou na repatriação de Manga, que vivia no Equador, sobretudo porque coincidiu com o início da pandemia.

"Não podíamos sair do país [por causa da covid-19]. O Marcelo Gomes, da ESPN, me trouxe para cá. Um cavalheiro, uma pessoa maravilhosa. Ofereceram um lugar e estou vivendo aqui. Estamos contentes. Ainda mais porque o presidente é botafoguense. É um cara maravilhoso. Agradeço a eles porque estamos aqui", sublinha o ex-goleiro.

Abrigar o Manga é abrigar uma das páginas mais lindas do futebol brasileiro. No momento, estamos sem vagas. Mas todas as solicitações são estudadas e estamos abertos, sim [a receber mais jogadores]. Consideramos o jogador de futebol um verdadeiro artista.

Stepan Nercessian, ator e presidente do Retiro dos Artistas

Igor Siqueira/UOL

Caminhadas e a dorzinha no joelho

Em uma das ruelas, cujo acesso é feito pela Rua Nair Bello, a casa de número 4 tem quarto, sala, banheiro e uma cozinha. A rotina do casal é tranquila, até porque o local tem regras e horários para entrada e saída — inclusive por motivos de segurança.

"Dou uma caminhada, saio com minha esposa. Vou ao mercado, faço alguma compra. Ando nesse pedacinho que tem aqui da portaria, damos duas, três voltas. Mas não desço quando está chovendo ou muito calor. É um tratamento maravilhoso que temos aqui", conta Manga, referindo ao espaço até um pouco íngreme.

Em casa, Manga vira Hailton — seu primeiro nome. O idioma oficial? Portunhol. Um jeito que Cecília e ele passaram a se comunicar, já que o ex-goleiro adquiriu sotaque carregado ao longo dos anos e mistura o vocabulário de português e espanhol.

O ex-goleiro não tem luxos. Recebe um salário mínimo de aposentadoria e ainda torce por doações, especialmente de torcedores do Botafogo. Foi só por isso que a casa atual passou por reforma e recebeu alguns móveis, como o sofá no qual Manga estende um cachecol do Botafogo. O suporte também envolveu eletrodomésticos, como a máquina de lavar colocada na cozinha e a air-fryer, que ajuda a evitar o uso de óleo na fritura.

Cecília contou que o marido lava louça e até cozinha algumas coisas, em um menu que alterna entre itens mais brasileiros e equatorianos. Ele gosta muito de bolinho de aipim e feijoada.

"Desde pequeno, eu tomava muita vitamina. Graças a Deus estou bem. Não tenho enfermidade. Faz tempo que eu estive no hospital. Estou caminhando. É uma dorzinha às vezes no joelho, mas é passageiro. A alimentação é igual. Gosto de feijoada. Não tenho problema com comida. O que vem eu como. Minha esposa cozinha bem", conta ele, sorrindo e assegurando que a forma das mãos não o atrapalha:

Faço as tarefas como você. Eu pego com a mão, fecho a mão, pego os pratos, não tem problema algum".

Vanderlei Lima/UOL

Quando o dentista cuidou do dedo

Uma vez eu quebrei o dedo no Uruguai. Era um sábado e o jogo era domingo. Estava chovendo. Um atacante chutou e quebrou o dedo do meio. Me levaram a um dentista. Fizeram um emplastro aqui. Sem gesso, sem nada. Colocaram uma tala. Foi para jogar domingo. Era o jogo contra o Peñarol. À noite, me virava para lá e para cá. Muita dor. Quando foi na hora do jogo, fui para o estádio. Entrei com gaze e algodão. Fomos campeões naquele ano".

Manga, que pelo Nacional conquistou quatro títulos uruguaios (1969 a 1972), uma Libertadores (1971) e um Mundial (1971).

A defesa mais difícil e o "macete"

Manga é rápido para responder qual considera a defesa mais difícil da carreira: um chute do lateral-direito Nelinho na final do Brasileirão de 1975. O Internacional acabaria campeão sobre o Cruzeiro, mas não sem a defesa plástica que evitou o empate, após uma cobrança de falta de um dos melhores batedores do futebol brasileiro. A lembrança daquele dia também envolve a mão.

"No treinamento de segunda-feira, quebrei dois dedos. Esses aqui". Manga aponta para dois dedos, o indicador e o médio da mão esquerda. O roteiro na ocasião, segundo Manga, foi parecido ao de episódios anteriores.

"Fui ao estádio e pedi ao doutor que tirasse o gesso porque queria jogar. Ganhamos o jogo com gol de Figueroa e fomos campeões. Em 1976, fomos bicampeões", comentou.

No lance em questão, Manga até armou barreira. Mas o ex-goleiro diz que não era fã disso. E até arrumava confusão com alguns companheiros por causa da "irresponsabilidade". À distância, Manga fitava os olhos nos pés dos batedores e diz que isso era suficiente para saber como evitar o gol. Era o macete dele. A bola de Nelinho, inclusive, foi traiçoeira porque fez uma curva quase chegando à meta. Mas Manga conseguiu espalmar.

Eu não gostava de barreira. Mandava abrir. Tinha problema no vestiário depois. 'Manga, por que não coloca barreira?' Eu dizia: 'Não, eu sou o responsável'".

Reprodução/Revista da CBD/CBF

Na Copa 1966, deu errado

Como todo goleiro, Manga teve suas falhas também. O desempenho na Copa do Mundo de 1966 é um dos pontos baixos na carreira. No primeiro gol sofrido pelo Brasil, na estreia contra Portugal, ele espalmou um cruzamento para o meio da área, permitindo a cabeçada de Simões. Depois, vieram mais dois gols de Eusébio e o Brasil perdeu por 3 a 1.

Nos outros dois jogos da seleção naquele Mundial, Gylmar dos Santos Neves foi o goleiro titular. O Brasil foi eliminado ainda na primeira fase, após derrota por 3 a 1 para a Hungria e vitória por 2 a 0 sobre a Bulgária.

"Não estive bem na seleção em 1966. Mas levantei a cabeça. E segui", disse Manga, que, depois daquela partida na Inglaterra, só fez mais um jogo oficial como titular da seleção, totalizando 13 jogos, segundo o Rec.Sport.Soccer Statistics Foundation (RSSF), organização que registra dados estatísticos do futebol.

O tricampeonato viria na Copa do Mundo de 1970. Com Felix no gol. Sem Manga.

Reprodução/Nacional

Campanha decisiva na Libertadores? Ele sabe de cor

Perguntar a Manga sobre o período no Nacional do Uruguai é ouvir, com placares exatos, como foi a campanha na reta final da Libertadores de 1971, que culminou em título. Inclusive com vitórias sobre o Palmeiras no triangular semifinal, que antecedeu a decisão com o Estudiantes (ARG). "Fomos a Lima e empatamos 0 a 0 com o Universitário. Eu peguei um pênalti. Com o pé. Fomos a São Paulo, ganhamos do Palmeiras de 3 a 0. Depois, ganhamos 3 a 1 do Palmeiras. Na final, perdemos 1 a 0, ganhamos de 1 a 0, e, jogando em Lima, campo neutro, ganhamos de 2 a 0. Fomos campeões".

Satiro Sodre/SSPress/Botafogo

O salto para fugir dos tiros de João Saldanha

Em 1967, Manga teve uma confusão com João Saldanha. O comentarista fez insinuações ao falar da atuação de Manga contra o Bangu, mesmo com vitória alvinegra. Castor de Andrade, bicheiro que mandava no Bangu, foi à TV Cultura para tirar satisfação e fez um alvoroço. Saldanha arrumou um revólver para se defender na próxima ida ao ambiente do Botafogo. Após uma reunião na sede do Mourisco, João apareceu diante de Manga, disparou duas vezes para o chão e uma para o alto. O intuito, segundo ele, era o de espantar Manga. Jairzinho viu tudo e disse que o goleiro pulou um muro de quase 3 metros.

Igor Siqueira/UOL Igor Siqueira/UOL

A relação com o Botafogo atual

A televisão que fica no quarto é a janela de Manga para o futebol atual. "É uma paixão", segundo ele.

Ao vir morar no Rio, o goleiro passou a ficar mais perto do Botafogo e de sua torcida. Manga já foi a alguns eventos do clube desde 2020. Visitou o CT, esteve no Nilton Santos para o jogo diante do Operário que confirmou a volta à Série A, em novembro de 2021, e foi a uma das partidas contra o Fluminense, pelo Carioca 2022, no Maracanã. Tem foto até com John Textor, que adquiriu o departamento de futebol do clube.

Nessas idas ao estádio, Manga disse que profetizou ao presidente Durcesio Mello que o clube seria campeão da Segundona no ano passado:

"Eu falei para o presidente: o Botafogo vai se classificar e vai dar a volta olímpica. E deu".

Em dezembro de 2020, o clube lançou uma camisa retrô, em um modelo como a que Manga usava nos anos 1960. Na barra, a célebre frase usada pelo goleiro antes dos jogos contra o Flamengo: "O bicho é certo", em referência à premiação pela vitória.

Em um dos encontros com o elenco, deu dicas aos goleiros que estavam na ocasião (Gatito Fernández e Diego Loureiro). Manga, vale lembrar, foi treinador de goleiros no Barcelona de Guayaquil. Hoje, o que incomoda é a reticência de alguns em sair do gol para buscar a bola no alto e os passes perigosos na construção do jogo.

"Os goleiros estão jogando de maneira muito arriscada. Se o jogador está de costas, você não pode dar a bola. Quando ele vira, já roubaram. Eu acho que os goleiros têm que sair para as laterais, aberto. E não com bola no meio. Eu joguei com grandes zagueiros e gritava muito", lembra ele.

Hoje, Manga não consegue mais gritar tanto. Ele vive feliz, mas conta com a memória e ajuda de quem nem sequer o viu jogar:

Espero que a torcida saiba que estou bem e vivo".

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