Um Napoleão argentino

Marcelo Gallardo ensaia "último tango" no River Plate, e o UOL revira arquivos para explicar culto ao técnico

Tales Torraga Colunista do UOL Amilcar Orfali/Getty Images

Marcelo Daniel Gallardo sempre personificou o que a Argentina tem de melhor no futebol. Extremamente preciso e valente nos tempos de armador (era o craque da camisa 10), virou um técnico admirado até pelos europeus. O segredo? Pôr em prática outra qualidade muito apreciada pelos vizinhos: uma capacidade tática que estabelece um antes e depois na história do futebol sul-americano.

Falar de Gallardo neste julho de 2021 em Buenos Aires é encontrar dois cenários muito claros. O primeiro é a admiração geral até dos adversários mais ferrenhos, que reconhecem o brilho da sua trajetória sem jamais menosprezar qualquer rival.

Outro aspecto é a comoção jamais despertada por um técnico no país vizinho. Nem Carlos Bianchi, no multicampeão Boca, e nem os antigos treinadores de Estudiantes e Independiente alcançaram a condição de símbolo que Gallardo representa para o River. Jogador formado nas badaladas "canteras" do clube às margens do Rio da Prata, ele colocou o time em outra esfera após ganhar duas Libertadores (2015 e 2018), uma Copa Sul-Americana (2014) e três Recopas (2014, 2015 e 2019).

Não é exagero compará-lo a Maradona. Gallardo, de fato, representa para o "Mundo River" uma glória que somente Diego significou para o futebol argentino. É muito comum ver um torcedor do River chorando ao falar do treinador, alguém que "vive e joga com grandeza", lema empregado pelo clube em suas comunicações oficiais.

O UOL Esporte acompanha de muito perto a "Gallardomania" em Buenos Aires desde sua chegada ao clube, em 2014 —você poderá vê-lo na volta da Libertadores, que volta hoje com as oitavas de final (o River joga amanhã contra o Argentinos Juniors). Confira, a partir de agora, como o "Boneco" Gallardo (era o "Muñeco" por lembrar o Chucky) virou o respeitado "Napoleão".

"Baixinho, bravo e grande estrategista", costuma repetir o locutor Atilio Costa Febre, inventor do célebre apelido.

Amilcar Orfali/Getty Images

A "guarda alta"

A liderança absoluta que Gallardo demonstra hoje aos 45 anos no comando do River teve uma formação bem típica da Argentina dos anos 1970 e 1980. Nascido em Merlo, na província de Buenos Aires, o jovem Marcelo rapidamente desenvolveu uma paixão por futebol que não o tirava dos campinhos e das ruas nem na escuridão da noite. E uma maneira de testar sua resistência era o famoso "só acaba na briga".

Em extensa entrevista concedida em 2014 à revista "El Gráfico", Gallardo revelou que participava das animadas "peladas" com os vizinhos no qual o apito final era uma briga generalizada com todos contra todos distribuindo socos e pontapés. A cena que hoje chamaria atenção pela violência e hostilidade contava ainda com um "plus": o irmão mais velho de Gallardo fazia questão de acertá-lo, principalmente no nariz, que vivia machucado. Nenhuma desavença, apenas para ensiná-lo a "se virar em qualquer situação".

Gallardo precisou lidar ainda com outra situação marcante.

Aos 15 anos, esperando um ônibus para chegar até o CT da seleção sub-17 em Ezeiza (Buenos Aires), ele sofreu dois violentos assaltos em dez dias, sendo ameaçado por uma faca e obrigado a ficar só de calça.

Cheguei à concentração descalço, sem camisa e tremendo, e isso me obrigou a desenvolver um sentido de preservação. Onde chego, vou rastreando o local, como se fosse uma visão periférica. A vida me ensinou a andar com a guarda alta.

Marcelo Gallardo, em depoimento a Diego Borinsky para o excelente livro biográfico "Gallardo Monumental"

Diego Alberto Haliasz/Getty Images

Pity Martínez: "Gallardo está pronto para Real ou Barça"

Hoje armador do Al-Nassr, Pity Martínez, 28 anos, foi o craque da Libertadores de 2018 conquistada em cima do Boca [na imagem ao lado, Pity e Gallardo recebem os troféus de melhores daquele ano, oferecidos pelo jornal uruguaio El Pais].

Curtindo férias em Buenos Aires, o jogador respondeu ao UOL Esporte quatro perguntas sobre Marcelo Gallardo.

O que via de especial nele?
A tranquilidade. Ele oferecia tudo o que o jogador precisava. Descanso, comida, treinamento, estudo. Cabia a nós retribuir fazendo o que ele instruía. Era assim. Simples e direto.

E quando o time ia perdendo, como era o intervalo no vestiário?
Sem nenhum drama. O time era experiente e sabia o que estava fazendo de certo ou errado. Uma característica deste River era a quantidade de "técnicos em campo", gente como Maidana, Pinola e Enzo Pérez. Quando Marcelo vinha falar conosco, o assunto já estava mastigado.

A exigência de Gallardo é cansativa?
Pelo contrário. Eu adorava. O que cansa é viver em país tão passional e louco por futebol como o nosso, por isso busquei outros ares. O que vivemos foi muito forte.

Marcelo está pronto para trabalhar na Europa?
No Real, no Barcelona ou qualquer outro time ou seleção. Gallardo é elite mundial.

Michael Regan - FIFA/FIFA via Getty Images Michael Regan - FIFA/FIFA via Getty Images

Brigas e terapia

A qualidade técnica do Gallardo jogador sempre foi acompanhada por um espírito combativo que ele sempre prezou - e que sempre fez dele uma presa fácil para os selvagens volantes argentinos que tentavam machucá-lo ou provocar sua expulsão.

São muito famosas na Argentina duas brigas suas justamente contra goleiros corpulentos e muito maiores que ele - prova cabal de valentia. Em 1997, em um River x Vélez, ele entrou duro em José Luis Chilavert e foi enforcado pelo paraguaio enquanto estava caído no gramado. Gallardo reagiu chutando os testículos do rival. De costas para o lance, o árbitro sequer deu cartão amarelo para os dois.

Em 2004, na histórica famosa semifinal de Libertadores entre Boca e River (o Boca se classificou nos pênaltis), Gallardo durou apenas 29 minutos em campo. Com o Boca vencendo por 1 a 0 na Bombonera, ele trocou cabeçadas com o volante Raul Cascini e levou o cartão vermelho direto. Houve um princípio de briga, e o meia arranhou a cara do goleiro Pato Abbondanzieri, que não reagiu e seguiu em campo mesmo sangrando.

O temperamento explosivo de Gallardo custou anos de análise para ele chegar a ser o técnico firme, mas não intempestivo, que hoje demonstra ser. "Fiz muita terapia. Eu era muito básico, perdia a cabeça por qualquer bobagem", revelou em entrevista ao jornal "Clarín" em 2015.

Marcos Brindicci/Getty Images Marcos Brindicci/Getty Images

Vencendo até o luto

Gallardo está há sete anos no comando do River Plate, e sua marcante permanência foi garantida por um início avassalador. Em sua primeira temporada, empilhou conquistas internacionais como a Copa Sul-Americana de 2014 e a Libertadores e Recopa de 2015.

Em seu primeiro mata-mata contra o Boca, na semifinal da Sul-Americana de 2014, Marcelo viveu seu pior drama pessoal. Com a mãe, Ana, vivendo suas últimas horas, ele se revezou entre o planejamento para o superclássico em pleno fim de vida da figura materna. Sua genitora, de fato, morreu horas antes do duelo decisivo no Monumental.

Gallardo chegou a receber permissão para ficar com a família, mas vestiu um traje todo negro e foi a campo para vibrar loucamente com o gol da vitória, marcado por Leo Pisculichi.

Duas semanas depois, o River dava a volta olímpica ganhando a final da Sul-Americana em cima do Atlético Nacional, da Colômbia, e Gallardo caía no choro nos braços do jornalista Titi Fernández, que havia perdido a filha, Sol, em um acidente de trânsito durante a Copa do Mundo do Brasil.

Há relatos de muitos torcedores até do Boca que choraram com Gallardo naquele instante que já está eternizado na inflamada (e inesgotável) história emocional do futebol argentino.

Diego Haliasz/Getty Images

Artimanhas

Os truques que Gallardo desenvolvia no gramado foram levados para fora dele. Marcelo sempre demonstrou ser um técnico de criatividade ímpar para encontrar saídas que apenas ele encontrava - dentro do permitido ou não, o que para os argentinos vira uma diversão à parte. "Se o árbitro deixar, o argentino reescreve as regras do jogo", costumava divertir-se o ex-capitão e técnico Daniel Passarella

Uma dessas situações inusitadas ocorreu na decisão da Libertadores de 2015, quando o River conquistou a competição pela primeira vez desde 1996. Suspenso pela expulsão na partida de ida ante o Tigres (do México), Gallardo quebrou a cabeça para encontrar uma maneira de estar no vestiário com os seus jogadores no intervalo. Estudou até mesmo se disfarçar de gari para entrar no espaço.

Até hoje ele despista quando perguntado sobre o assunto, mas o fato é que Gallardo conseguiu o que queria e não se privou do contato em momento tão importante.

Em 2018, contra o Grêmio, ele foi descoberto, com um raro boné na cabeça, quando tentava fazer o mesmo em Porto Alegre - foi flagrado, suspenso até da decisão contra o Boca, e gerou uma polêmica que talvez nunca termine.

Mas nenhuma das suas artimanhas gerou tamanha loucura quanto a de 2014, quando encarou o Boca pelo Campeonato Argentino. O River perdia por 1 a 0 e o jogo só não foi interrompido por pura teimosia do árbitro, que ignorou o dilúvio que caía sobre o Monumental de Núñez. Pressionando atrás do empate, Gallardo colocou o zagueiro Pezzella (campeão da Copa América no último sábado) para jogar de centroavante e tentar um gol de cabeça.

Foi exatamente o que aconteceu. Pezzella empurrou para o gol defendido por Orión e desatou uma das comemorações mais loucas da história do River x Boca. "Pezzella de 9" virou um jargão que durou muitos meses na Argentina, ganhando até as faixas dos torcedores nos ásperos superclassícos que vieram a seguir.

Nelson Almeida/Getty Images Nelson Almeida/Getty Images

Muito Brasil no caminho

Tão atuante como jogador e técnico, Gallardo guarda inúmeras histórias contra times brasileiros. São tantas que valeriam até um livro.

A mais marcante, disparada, foi contra o Corinthians na Libertadores de 2006. Em pleno Pacaembu, Gallardo arrasou magistralmente Tevez e companhia. Ofereceu assistências perfeitas para os gols de Gonzalo Higuaín, e até um erro seu deu certo naquela noite. Ao cruzar uma bola pela direita do ataque, o lateral Coelho empurrou para as redes fazendo um gol contra e decretando o 1 a 1 que beneficiava o River.

Aquela partida terminou com uma briga dos torcedores com a polícia e com uma vitória do River por 3 a 1. A atuação de Gallardo naquele mata-mata é tão marcante que muitos argentinos compararam esta atuação àquela famosa noite de Riquelme pelo Boca contra o Palmeiras na semifinal de 2001. São, de fato, os dois maiores "bailes" de jogadores argentinos contra clubes brasileiros atuando no Brasil.

Gallardo teve encontros históricos também contra o São Paulo. Ganhou a Supercopa em 1997 e perdeu a semifinal da Libertadores de 2005.

Contra o Vasco, esteve em campo no "gol monumental" de Juninho na também semifinal de Núñez em 1998; no ano seguinte, de novo na semifinal, foi eliminado pelo Palmeiras de Alex com um histórico 3 a 0 no Parque Antarctica.

Os embates com Gallardo como técnico também são frequentes. Ele eliminou o Cruzeiro duas vezes (2014 e 2019), além de vitórias em mata-matas sobre Athletico-PR (2020) e Grêmio (2018).

Até as derrotas contra o Flamengo na decisão de 2019 e contra o Palmeiras na semifinal de 2020 costumam ser aplaudidas. É difícil encontrar um argentino que considere que o River foi o justo perdedor em ambas as ocasiões. Para muitos, a superioridade dos comandados por Gallardo foi nítida em ambas as ocasiões, e o placar só não representou isso graças mesmo à imprevisibilidade que dá todo o charme ao futebol.

Eu disse a ele que iria ganhar a Libertadores para dedicá-lo. Se hoje sou melhor treinador, devo também a Gallardo.

Abel Ferreira, técnico do Palmeiras, após confronto com o River na semifinal de 2020

Diego Haliasz/Getty Images Diego Haliasz/Getty Images

Perto de virar estátua

O contrato de Gallardo com o River termina no próximo dezembro, mês das eleições presidenciais. De relação umbilical com o presidente Rodolfo D'Onofrio, que não seguirá no cargo, poucos esperam que ele estenda seu vínculo com a instituição sob novo comando, completando um oitavo aniversário à frente da equipe.

A torcida do River já arma uma despedida digna da imensidão de sua figura. Sua estátua, ao lado do Monumental, recebe os últimos retoques da escultora Mercedes Savall. As dimensões são mesmo monumentais: cerca de 7 toneladas e 7 metros de altura. A previsão é de que seja inaugurada no aniversário de três anos da Libertadores conquistada em cima do Boca (9 de dezembro de 2021).

Além da estátua, outro ponto bastante comentado de Gallardo fora dos gramados é a sua relação amorosa com a apresentadora de TV Alina Moine. Marcelo separou-se de Geraldine, a mãe de seus três filhos, há três anos, mas a família do técnico é frequentemente vista junta demonstrando harmonia e zero entreveros.

Sempre reservado em sua vida pessoal, Gallardo também preza pela discrição com Alina. O principal postal do casal é a festa da Libertadores de 2018, quando ela foi contratada para ser também a apresentadora da festa.

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