Precisamos de um novo Guga?

Marcelo Melo foi nº 1 do mundo e venceu mais que Gustavo Kuerten. Mas, no Brasil, é menos conhecido que ator

Alexandre Cossenza e Demétrio Vecchioli Colaboração para o UOL, em São Paulo Icon Sportswire/Icon Sportswire via Getty Images

Se você escrever Marcelo Melo no Google, por via das dúvidas o buscador te entrega também respostas para Marcello Melo. E vai te indicar, primeiro, textos e páginas sobre o ator Marcello Melo Júnior, famoso por seus personagens em novelas e séries da Globo que tem 1,4 milhão de seguidores no Instagram. Os números mostram que o jogador de tênis, conhecido pelo apelido de Girafa, seguido por 73 mil pessoas na mesma rede social, é só o segundo Marcelo Melo mais famoso do país.

E não é por falta de resultados. Número 1 do ranking mundial do tênis por 50 semanas, dono de duas taças de Grand Slam, Melo é um dos atletas brasileiros mais vencedores de toda a última década. Só de títulos em torneios ATP são 34, contra 32 do amigo Bruno Soares e 20 de Gustavo Kuerten. Nenhum brasileiro venceu mais do que ele na era moderna.

Enquanto ele acumula vitórias no circuito, o Brasil parece continuar buscando por um novo Guga, que não virá tão cedo. "Eu acho que entre os tenistas tem esse reconhecimento. Eles sabem, e quem entende de tênis ou está envolvido no tênis sabe, das coisas que eu e o Bruno fizemos nas duplas. O fato de eu ter chegado a número 1 do mundo pela primeira vez na história, todo mundo sabe que isso não acontece da noite para o dia. O pessoal também sabe que um Guga vem a cada 100 anos, duzentos anos. Difícil você achar que vai vir outro Guga agora."

Em entrevista por vídeo ao UOL Esporte quando estava morando e treinando em um resort nos Estados Unidos, Melo falou da carreira, de metas, do momento do tênis brasileiro e internacional, de amizades e reconhecimento.

Icon Sportswire/Icon Sportswire via Getty Images

Assista à entrevista de Marcelo Melo

Peter Staples/ATP Tour/ATP Tour via Getty Images Peter Staples/ATP Tour/ATP Tour via Getty Images

Reconhecido no posto de gasolina

A menor visibilidade televisiva dos torneios de duplas, na comparação com os de simples, nunca jogou a favor dos duplistas. Títulos expressivos como os de Roland Garros e Wimbledon, porém, ajudaram Marcelo Melo a driblar as dificuldades e se tornar mais conhecido.

"Quando eu chegava no posto de gasolina, o cara chegava 'Ô, você é o Marcelo Melo do tênis?' 'Sou'. Atingiu pessoas que não estão ligadas diretamente ao tênis. Por quê? Passou mais na televisão, é um torneio tradicional. Mas é difícil você querer que cheguem outros jogadores a ganhar Wimbledon, a ser número 1 do mundo, para poder chegar nesse cara do posto de gasolina. Nas simples, às vezes, se ele for na semifinal, já chega nele."

Já são 13 anos entre os 50 melhores do mundo, disputando os principais torneios do circuito, e sete entre os 20 primeiros do ranking. Em prêmios, já são mais de US$ 7 milhões. Melo quer que seu exemplo guie jovens tenistas, duplistas ou não.

"Eu espero que a minha carreira, no geral, sirva de inspiração não só para um tenista jovem hoje e duplista. Acho que ele tem que pegar minha carreira como inspiração para investir nele nas simples, se for o caso, ou na dupla pelas coisas que eu fiz, as coisas que eu poderia ter feito melhor ainda. Eu acredito que fiz coisas boas, outros jogadores também fizeram outras coisas boas, então esses juvenis de hoje têm que pegar o que cada um fez de bom para botar na carreira deles e aprender com os erros que a gente cometeu nas nossas. "

Kiyoshi Ota/Getty Images Kiyoshi Ota/Getty Images

Falta e medalha olímpica

A carreira de um tenista profissional é feita de degraus. O primeiro ponto no ranking, o primeiro título em torneio quase amador, o primeiro torneio da ATP, o primeiro título... Marcelo Melo foi superando cada um desses degraus até chegar quase no cume. Falta pouco.

Depois de ganhar tudo, ou quase tudo, na carreira como profissional, falta uma grande conquista com a camisa do Brasil. "Eu cheguei a número 1 do mundo duas vezes, fui campeão de Grand Slam, então, pra completar, seria ou um título de Copa Davis ou uma medalha olímpica. Eu acho que a realidade está mais para ter uma medalha olímpica do que um título de Copa Davis", diz ele.

Em Tóquio, o tenista de 36 anos disputará a quarta Olimpíada da carreira, a terceira ao lado de Bruno Soares. Os dois mineiros tinham planejado disputar dois torneios como dupla antes dos Jogos, uma vez que cada um tem um parceiro no circuito. Segundo ele, o diálogo entre os amigos é franco.

"A gente tem uma abertura grande de sentar e conversar quais são planejamentos, as melhores coisas para fazer, porque é um objetivo muito importante para o Bruno também. A gente tem essa abertura, e essa amizade acaba ajudando a deixar mais claro. Às vezes, um pode ficar meio receoso, mas não tem muito disso comigo e com o Bruno", conta.

Depois de duas eliminações nas quartas de final, os Jogos do Japão são a oportunidade de realização do grande sonho. "A gente ainda vem jogando em alto nível e ainda vai ter tempo pra treinar. Mesmo com a Olimpíada sendo ano que vem, acho que ainda está no prazo. A gente tem reais chances de ter (medalha)."

Tim Clayton - Corbis/Corbis via Getty Images Tim Clayton - Corbis/Corbis via Getty Images

Tênis está avaliando doações entre jogadores

A crise causada pelo coronavírus levou à paralisação do circuito profissional do tênis e à retomada de um debate que vira e mexe causa dores de cabeça para entidades, promotores e patrocinadores: o financiamento da modalidade. Jogar na elite dá dinheiro, muito dinheiro, mas quem disputa torneios menores pena para se sustentar.

Seria fácil dizer que então que se acabe com os torneios menores, mas é ali que se formam os jogadores que, depois, vão jogar na elite, ganhar e gerar muito dinheiro. "A gente está no momento único de ter tempo de organizar o tênis junto com ATP, ITF, WTA, de fazer do tênis um produto melhor", diz o brasileiro.

Para ele, sem torneios para jogar, é possível discutir com calma algo fundamental para o presente e para o futuro da modalidade. "Quem sabe eles usem esse tempo para reduzir os problemas para fazer um circuito melhor e ajudar mais jogadores, principalmente no lado do prize money, que é uma discussão que nunca termina."

Por causa da crise, a discussão até se acentuou. Melo "quebrou o cofrinho" para se bancar, reclamando que um café e um lanche nos Estados Unidos hoje custam mais de R$ 100. Mas o brasileiro é exceção. Por tudo que já ganhou em premiação, tem reservas. A maioria dos jogadores "desempregados" como ele não têm como se bancar. "Tem vários tenistas que realmente dependem do resultado de amanhã e sustentam a família", aponta.

Mas como ajudar? Uma das propostas é os tenistas "top" ajudarem os de ranking mais baixo. Mas doando quanto? Para quem? "Jogador de simples tem que ajudar os de simples também? Agora, dupla tem que ajudar, mas o prize money da dupla é bem menor. É difícil opinar. Vi uma tabela que eu, por exemplo, teria que doar US$ 5 mil. Hoje, são mais de R$ 25 mil. Com R$ 25 mil, quantas crianças eu ajudaria no Brasil? Quem falou que é certo fazer isso ou errado fazer aquilo? É difícil obriga alguém a dar dinheiro. Vai da consciência de cada um."

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"Hoje, o jogador que se dopa é burro"

Há anos na elite do tênis, Marcelo Melo sabe bem como funciona o sistema antidoping do circuito. Só em 2019, o mineiro foi testado oito vezes — quatro durante competições e mais quatro fora de torneios. Além disso, o mineiro testou positivo em 2007 após tomar um remédio para dor de cabeça que continha uma substância proibida (isometepteno) e, por isso, foi suspenso do circuito por dois meses. A experiência trouxe cautela, e Melo não entende como algum tenista ainda corre riscos hoje em dia.

"Eu acho que, hoje, o jogador que dopa é burro, sendo sincero. Porque o tanto de exame que a gente faz? Do nada, chega alguém da WADA (Agência Mundial Antidoping) fazendo exame. É um risco completamente desnecessário, especialmente no nível em que a gente joga. Eu sempre acredito que ou o cara teve um descuido ou aconteceu alguma coisa no laboratório porque não é possível que ele foi tão irracional de fazer uma dopagem tendo controle direto."

Sobre os casos recentes de doping no Brasil e na América do Sul, Melo não acredita em preconceito ou discriminação contra atletas do continente. Nos últimos quatro anos, Thomaz Bellucci, Marcelo Demoliner, Igor Marcondes e Bia Haddad Maia foram suspensos por doping. Todos alegaram que ingeriram suplementos contaminados em farmácias de manipulação brasileiras. Até o chileno Nicolás Jarry alegou que seus suplementos contaminados foram comprados no Brasil. Foi suspenso por 11 meses

Melo ressalta que a chance de isso acontecer com ele é mínima. "Eu não sabia que Neosaldina tinha uma substância que não era permitida durante competição. Desde então, eu tomo praticamente zero suplemento. Não sei se é por pânico ou medo de que aconteça novamente. Às vezes, quando eu tomo proteína, é de um laboratório que vende para milhões de pessoas, que não é manipulado. Erros podem acontecer. Nós somos humanos, só que agora cada um depende de si para reduzir. Eu reduzi praticamente a zero. Já me ofereceram milhões de coisas manipuladas (mas) não tem a menor chance! 'Ah, o laboratório é certificado?' Pra mim, não interessa. Não quero saber."

AFP PHOTO / Glyn KIRK AFP PHOTO / Glyn KIRK

"Você não precisa vender um jogo para ser feliz"

Outro assunto que esteve nas manchetes recentemente foi a suspensão de João Souza, o Feijão. Ex-número 1 do Brasil, o paulista está suspenso do tênis pelo resto da vida por violar o regulamento anticorrupção, incluindo envolvimento com manipulação de resultados em torneios no Brasil, no México, nos Estados Unidos e na República Tcheca entre 2015 e 2019.

Em uma entrevista anterior a sua suspensão, Feijão afirmou que entendia a tentação de um tenista mal ranqueado, com muitas contas a pagar, e que recebia uma proposta para manipular resultado. Marcelo Melo também reconhece a tentação, mas adota posição firme sobre o assunto.

"A tentação é lógico que é grande. A pessoa recebe R$ 900. O cara oferece para roubar um banco e ganhar R$ 15 mil. Lógico que ele vai querer ir lá. A minha filosofia de vida é sempre assim: o que é certo e o que é errado. Você acha que se oferecerem 50 milhões para o Federer entregar um jogo, ele vai entregar? Não vai. Pela moral e pela limpeza do esporte, é a mesma coisa do doping. A tentação de fazer um doping todo mundo tem. O cara vai jogar melhor, vai lesionar menos, vai chegar mais nas bolas, vai jogar o tempo que for. Mas e aí? É certo ou errado? Tá errado. Então, independentemente da tentação que for, o que é errado, é errado, e ele está pagando por isso."

As entidades que controlam o tênis vêm estudando o cenário e adotando medidas para diminuir a corrupção no tênis. Uma delas será a exclusão do sistema de "live score" — placar atualizado em tempo real — nos torneios de menor porte, justamente aqueles onde há mais casos de manipulação de resultados. Os órgãos responsáveis acreditam que sem o live score diminuirão as oportunidades de apostas e, consequentemente, a corrupção. Marcelo vem acompanhando o assunto, mas sabe que a solução não virá facilmente.

"Um dos caminhos que eles acham que pode acontecer é aumentar o prize money (premiação) para não ser tão tentador assim, mas nas proporções que isso acontece em Futures, é muito difícil de chegar. Pô, o jogador está vendendo o almoço para pagar o jantar, e o cara chega e oferece 15 mil para o cara, e ele vai aceitar. Mas tá errado! Não é porque você ganha um salário mínimo que você pode entrar em um supermercado e pegar ele inteiro e levar para casa."

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"Realmente gostaria de ser treinador"

O perfil não poderia ser mais adequado. Marcelo Melo conhece o mundo do tênis como poucos. Fez viagens com pouco dinheiro quando tentava a carreira nas simples; fez raro sucesso nas duplas; e há alguns anos vêm orientando jovens brasileiros durante os confrontos de Copa Davis. Por ter vivido tantas experiências, tantos altos e baixos, o mineiro tem muito a ensinar. Ele sabe disso e pretende ser treinador quando encerrar a carreira.

"Não tem como eu fugir disso. Minha vida inteira só fiz praticamente tênis. Acho que treinador eu gostaria de ser, de aproveitar todas essas experiências, tudo que eu vivi no tênis, tudo que presenciei, o que fiz, para passar para outros tenistas. Gostaria, logicamente, de permanecer no Brasil. Quem sabe? Não sei ainda o dia que eu vou parar, quais vão ser as minhas opções, mas realmente gostaria de ser treinador".

Quando isso vai acontecer? A julgar pelos resultados em quadra, não tão cedo. Em 2019, Melo e seu parceiro, o polonês Lukasz Kubot, fizeram seis finais — duas em Masters 1000 — e conquistaram um título no ATP 250 de Winston-Salem. Em 2020, antes da paralisação do circuito, a parceria foi campeã do ATP 500 de Acapulco. Os dois ocupam o quinto lugar no atual ranking mundial, e tudo indica que eles seguirão brigando por títulos grandes quando o circuito masculino for retomado.

"Não sei o que vai acontecer depois que a gente voltar, mas eu ainda acredito que a gente possa fazer bons resultados em torneios grandes. Eu venho treinando de uma maneira boa, de qualidade." ? "A gente vem programando muito bem os treinos para manter o nível, para evitar lesões. Você vai ficando mais velho, tem um risco maior, mas eu acredito que ainda tenha, com essa vitória agora em Acapulco, um ATP 500, comprovou que a gente ainda tem chance de fazer grandes resultados."

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