Como subir o morro (de novo)

Marcio Bernardes lembra polêmicas de mais de 50 anos no rádio e na TV enquanto tenta bombar na internet

Beatriz Cesarini, Gabriel Carneiro e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo Gabriel Carneiro/UOL

O escritório de Marcio Bernardes, numa área nobre do centro de São Paulo, é um parque de diversões para jornalistas de esporte. Dá quase para sentir o cheiro de história com as paredes repletas de fotos amareladas. As imagens mostram o jornalista ao lado de personalidades dos mais variados ramos. Em especial, importantes ex-jogadores.

Também há um rádio antigo que ainda funciona muito bem [como ele fez questão de provar], microfones e cubos já desatualizados de emissoras de rádio e TV. E credenciais, muitas credenciais, de Copas do Mundo e Olimpíadas.

Já são pouco mais de 50 anos na cobertura esportiva. Ele passou pelas rádios Globo e Jovem Pan, pelo Mesa Redonda da TV Gazeta, pela Manchete. Desde 2000, é apresentador na rádio Transamérica, em São Paulo. Está à frente do Debate Bola depois de toda rodada. Coleciona histórias, amigos e polêmicas. Criou o apelido "bam-bam-bam" para os craques dos jogos.

Quando foi professor universitário de radiojornalismo, Marcio Bernardes dizia que os alunos estavam começando a subir um morro. "Eu já cheguei ao topo e estou descendo". A metáfora era sobre o que ele imaginava ser o fim da carreira. Mas no papo com o UOL, o veterano jornalista nascido em Ribeirão Preto mostra que essa história de descer o morro é bobagem. Aos 68 anos, ele está é subindo de novo.

Começou a investir na vida digital, com canal no YouTube e live semanal no Instagram. O problema é que está achando "muito, muito difícil", porque ainda não conseguiu levar o público da rádio para a internet. O velho âncora quer ser influencer. Quantos likes essa decisão vale?

Gabriel Carneiro/UOL

"Bam-bam-bam": como foi criado o bordão que virou até apelido

Gabriel Carneiro/UOL

Para ouvir, curtir e compartilhar

A Transamérica é uma das rádios mais fortes de São Paulo. Em suas transmissões esportivas, disputa a atenção dos ouvintes com Bandeirantes, CBN, Jovem Pan e Bandnews, principalmente. Pesquisas recentes da Kantar IBOPE Media registraram quatro altas seguidas de audiência do rádio na Grande São Paulo. Ao contrário do que se diz, o rádio não morreu.

A média de audiência da jornada esportiva da Transamérica, que sempre termina com o "Debate Bola" de Marcio Bernardes, é de 90 mil ouvintes por minuto. Já chegou a picos de 150 mil, segundo ele. Por isso é tão agoniante para o jornalista que seus números nas redes sociais ainda estejam tão distantes desse patamar. Na soma de Instagram, YouTube, Twitter, Facebook, são 23 mil seguidores.

Entrei de cabeça nas redes sociais, em todas. Mas é difícil. É um passo de tartaruga, como se fosse uma criança de meses engatinhando. Depois de um tempo, levanta. Aí mais um tempo e começa a andar. Eu não sou blockbuster, não sou influenciador, nem tenho essa pretensão, mas vejo a dificuldade de ter engajamento, um like, um clique."

Apresentador da "Resenha BamBamBam" toda segunda-feira no Instagram, já entrevistou personalidades como Andrés Sanchez, Tony Ramos e Jorge Kajuru. O sonho é bombar. Para alcançá-lo, promete continuar estudando, se reinventando. Ele acha que é traço de sua personalidade. "Eu sou órfão de pai e mãe desde muito cedo. Ninguém me freou, ninguém me impediu, nunca houve ninguém para dizer: 'não, você não vai'. Isso pode ter contribuído lá atrás para minha vinda mais rápida para São Paulo, começar uma nova vida."

Gabriel Carneiro/UOL

Entre a assembleia da ONU e a conversa de boteco

Marcio Bernardes começou a carreira muito cedo, tinha uns 15 anos. Ainda morava em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Brincava de editar um jornalzinho na escola e fazia a divulgação dele numa rádio, onde não demorou para receber um convite para uma espécie de estágio. Foi crescendo, cobriu os times da cidade para as rádios da capital e depois se integrou de vez.

"Em 1982, eu cobri a Itália na Copa do Mundo. Era uma seleção desacreditada que foi campeã. Aí, os caras de São Paulo falaram: 'Você não pode ficar em Ribeirão, tem que vir para São Paulo'. Aí, eu vim e estou aqui até hoje", diz o jornalista, na época contratado pela Rádio Globo a convite do narrador Osmar Santos.

Muito do que Marcio Bernardes faz hoje no rádio é, segundo ele, legado do que Osmar Santos criou naquela época: um estilo mais solto e leve para falar de futebol. Só que a Transamérica chefiada pelo narrador Eder Luiz dobrou a aposta e levou a comédia escrachada para as transmissões. O humorista Gavião é um dos principais nomes da equipe e sempre elege o bum-bum-bum dos jogos, o pior em campo — uma óbvia brincadeira para contrapor o bam-bam-bam do Marcio Bernardes.

"Nós falamos sério, tratamos o futebol, às vezes, como uma assembleia da ONU. Mas às vezes, tratamos como uma conversa de boteco. Acho que foi isso que marcou nossa trajetória. Eu gosto muito desse esquema de descontração de não engessar o trabalho", reflete o âncora. Mas ele sabe que há perigos.

O humor no jornalismo é pisar em uma navalha ou em um chão cheio de cacos de vidro. Às vezes, mesmo fazendo uma piada, brincando, tirando sarro, você pode agradar A, B e C, e desagradar D, E e F. É muito perigoso. Hoje em dia, você tem que tomar cuidado com o politicamente correto, tem que respeitar as minorias, não pode desmerecer."

Marcio Bernardes, sobre os perigos do humor na cobertura esportiva

Pega as músicas antigas de carnaval: 'Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é? Será que ele é?'. Todo mundo gritava: 'Bicha'. Hoje, isso é politicamente incorreto. Naquele tempo, era natural. Se ouvir um disco do Costinha, do Zé Vasconcellos, você vai falar: 'Meu Deus do céu!'. Se transportar isso para 2022, vai deixar muita gente indignada."

E um panorama do passado

Em 1997, a maior polêmica: como foi a treta Milton Neves x Avallone

Reprodução/TV Gazeta

"Tem um homossexual nessa mesa": os bastidores da briga

"Jornalistas trocam insultos no ar" foi o que a "Folha de São Paulo" estampou em sua edição de 3 de novembro de 1997, segunda-feira, dia seguinte ao que ficou marcado como uma das maiores brigas da história da TV no Brasil.

Apresentador do Mesa Redonda, Roberto Avallone criticou no ar, dias antes, o fato de Milton Neves, então âncora da Jovem Pan, ter sido mestre de cerimônias num evento do Corinthians. Deu a entender que havia indícios de corrupção no gesto. Milton Neves pediu direito de resposta e foi atendido: compareceu à CNT/Gazeta para se defender das acusações de Avallone. Tinha até mediador.

O debate foi de baixo nível. "Você é um ignorante" e "cala boca que é minha vez, sua anta", foram algumas das frases de Milton Neves. Avallone rebateu com "você é um mentiroso" e outras. Entre os dois na mesa, o mediador Mário Marinho (então presidente da Aceesp, Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo) e... Marcio Bernardes, comentarista do programa durante dez anos.

Em dado momento, o assunto da discussão passou a ser homossexualidade no jornalismo esportivo. Eram tempos de visões rasas e preconceituosas sobre o assunto. "Quem sabe há um homossexual aqui nessa mesa? Será que há?", questionou Milton Neves, em tom acusatório. A câmera que estava fechada nos rostos dos debatedores abriu e mostrou Marcio Bernardes na mesma hora. Isso virou piada na época, como se fosse ele o personagem do debate.

O humor a partir deste assunto é revisitado até hoje nas jornadas da Transamérica, com vinhetas e brincadeiras de Gavião. Marcio Bernardes diz que não se incomoda, mas que o tempo para este tipo de piada acabou.

O Gavião é um grande humorista, um cara espetacular, muito criativo, inteligentíssimo, é um gênio. Mas, não só da parte dele, como de todos nós, o que eu percebo, é uma preocupação em ser respeitoso. Às vezes, você faz determinada brincadeira e pode reparar: raramente há uma discussão, troco, réplica, porque são coisas que se tentam fazer de forma leve, brincadeira leve."

Marcio Bernardes, sobre sua percepção a respeito deste tipo de humor

O humor é perigoso: é pisar na navalha, aí você pode machucar ou não. Mas eu conheço todos os integrantes da equipe e conheço bem o Gavião. E sei que todo mundo toma muito cuidado em não exceder. Porque não é piada. Isso tem que ser respeitoso. Homossexualidade é uma orientação do ser humano. Então, não pode ser tratado como chacota, gozação. Não é gozação."

E as piadas do Gavião

Amizade e bastidores do acidente de Osmar Santos: "Destino trágico"

Reprodução/Facebook

Narradoras mulheres são bem-vindas no rádio, diz veterano

Em pouco mais de 50 anos vivendo no mundo do rádio, Marcio Bernardes sempre esteve rodeado de homens, principalmente no comando das transmissões esportivas. Hoje, o jornalista celebra a abertura de espaço para as mulheres nas narrações e espera contar com uma repórter e comentarista em seu programa na Transamérica.

"Eu vejo a chegada das narradoras com muita alegria. É mais um estilo para agregar. A voz da mulher é gostosa, agradável. Elas são 'dedicadíssimas', competentíssimas, estudam, aprimoram o trabalho, a pesquisa. Eu acho que isso vai vingar", diz o jornalista.

E apesar de não ter convivido com narradoras, Marcio viu a história acontecer com profissionais que conquistaram espaço no jornalismo esportivo em tempos difíceis, em que o ambiente esportivo era muito mais hostil e segregador em relação à presença de mulheres.

"Na TV Gazeta, por exemplo, tivemos a Regiane Ritter, que foi a primeira repórter esportiva. Eu me lembro de cruzar com ela nos vestiários dos estádios. Naquele tempo os repórteres conversavam com os jogadores dentro dos vestiários e tudo era feito com muito respeito e profissionalismo. A Regiane sempre foi uma estupenda repórter. Também tinham as 'parceirinhas': Ione Borges e Claudete Troiano, que trabalharam com esporte lá no comecinho. A Marisa de França, Vânia Westfall e Drica Lopes eram apresentadoras. Então, acho que isso, de 20, 30 anos para cá, está crescendo e se consolidando cada vez mais", completa.

3 toques

Gazeta Press/Acervo

Mesa redonda

"O formato dá certo quando é uma mistura de tudo: imagem, jogo, polêmica, entrevistas dos atletas e do técnico, humor, um pouco de molho, salsa. E, nisso, o saudoso Roberto Avallone era mestre. Nós chegávamos a atingir quatro, cinco, às vezes, seis pontos [de audiência], dependendo do que tinha acontecido no clássico do domingo à tarde, mas muito porque o Avallone era uma figura carismática. Hoje, as mesas são muito diferenciadas. Cada uma tem um estilo, um jeito, linguagem."

Reprodução/TV Band

Craque Neto

"O Neto se revelou como profissional de comunicação na Transamérica, levado pelo Eder Luiz. Fizemos a Copa de 2006 juntos, lá na Alemanha. Ele é muito agradável, muito brincalhão, é o estilo boleiro. Toda a convivência que eu tive com ele foi sempre muito alegre, legal. Na hora do programa, não sei o que passa na cabeça dele com aquelas brincadeiras ou discursos. É a mesma coisa do humor: você arruma seguidores e opositores. Tudo na vida é assim."

Reprodução

Alunos ilustres

"Eu trabalhei como professor de radiojornalismo da Fiam. As duas coisas que mais odiava fazer eram chamada e correção de prova. Mas tinha muito prazer em conviver com esse pessoal, dei aula para milhares de profissionais. 10% dos meus alunos foram para o mercado da comunicação. Sandra Annenberg, Cléber Machado, Osmar Garraffa, Marcio Moron... Mas também teve a Luciana Braga, filha do Roberto Carlos: ela usou o jornalismo para ser editora de moda e se especializou."

Acervo pessoal

Amizade da infância ao topo do morro com Datena e Sócrates

Quando ainda subia o morro, lá em Ribeirão Preto, Marcio fez amizade com pessoas que, assim como ele, se tornaram "gente grande" lá no topo. Na infância, ele conviveu com José Luiz Datena e Sócrates.

"Era tão natural porque, na época, ninguém era personalidade. Somos todos amigos de infância, nossos pais eram amigos. Depois, convivi muito com o Sócrates aqui em São Paulo e convivo menos com o Datena. O Sócrates chegou ao topo da fama, da glória, e eu o acompanhei na primeira vez que ele foi negociado com o exterior: saiu do Corinthians e foi jogar na Fiorentina. Eu o ajudei a encontrar a casa em que ele morou com Regina, sua esposa. Nós tínhamos uma amizade muito próxima", conta Marcio.

A amizade era tão próxima que Marcio lembra da promessa que Sócrates fez a ele sobre a dependência química, por cigarro e álcool. Um dos maiores jogadores da história do futebol brasileiro morreu em 4 de dezembro de 2011, aos 57 anos de idade, após uma batalha contra a cirrose, que causou graves problemas em seu sistema digestivo.

No início de 1982, o Sócrates falou: 'Você vai me ver na Copa do Mundo voando. O que eu nunca fiz no Corinthians e no Botafogo-SP eu vou fazer na seleção'. Ele, então, parou de fumar, diminuiu barbaridade a bebida e chegou voando na Espanha. No fundo, ele tinha consciência de que o cigarro fazia mal e que a bebida fazia mal. Nos últimos anos da vida dele, com os exames, quando foi diagnosticada a necessidade de transplante de fígado, tenho impressão de que ele sabia o mal que a bebida fazia também. É difícil, você fica muito impotente, limitado para decidir sobre as atitudes do cara. Infelizmente, um cara com aquela inteligência não ter descoberto que isso tudo foi um encaminhamento do fim breve. Ele teria feito 68 anos. Morreu com 57."

"Ele era muito consciente da carência social do Brasil, ele tinha muita preocupação com nossos problemas políticos, a gestão do país. Ele era muito consciente, alegre. O Sócrates era tímido, ele falava, ouvia, dava boas risadas, mas era um pensador. Não é à toa que ganhou esse nome. Os papos eram cabeça. Mas tinha muita porcaria também (risos)".

Na lata: Lula ou Bolsonaro? Tem inimigos? Gosta de ex-jogadores na TV?

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