Resgate de um craque

Marinho viu filho morrer durante entrevista, morou na rua e foi salvo pelos filhos que ficaram

Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo Arquivo Pessoal

Um senhor negro vivendo como mendigo e pedindo esmolas nas ruas da periferia do Rio de Janeiro. É uma cena muito mais comum do que gostaríamos de ver em grandes cidades brasileiras. O que diferencia esse caso é o protagonista: um ex-jogador de futebol que vestiu a camisa da seleção brasileira, atuou em grandes clubes e um dia foi eleito o melhor jogador do Campeonato Brasileiro.

Mário José dos Reis Emiliano, o Marinho, foi ponta-direita do Bangu e um dos principais responsáveis pelo vice-campeonato nacional em 1985. O clube do subúrbio carioca nunca mais foi tão grande quanto nos tempos em que ele foi o dono da camisa 7 — aposentada em 2015 em homenagem a ele.

Em 2017, Ado, ex-companheiro de time, viu o amigo nas ruas de Bangu e se preocupou. "Aqui no clube ele é o Papa, ele não precisava estar passando por isso. Um dia, ele dormiu lá em casa e eu falei: 'Marinho você não precisa disso, você tem quer ser remunerado pelo clube todo mês, um salário, te dar uma casa porque você fez do Bangu um clube grande'".

Foi aí que os filhos e a ex-mulher de Marinho entraram na história. "O Ado ligou: 'Não deixa o Marinho. O Marinho vai morrer na rua'. Aí o filho dele, o Steve, trouxe o Marinho aqui para Belo Horizonte. Ele foi internado. O Steve disse que ele não obedecia, mas aqui ele obedeceu, fez o tratamento e se curou, graças a Deus ", conta Tania, primeira mulher do ex-craque — Steve é filho do segundo casamento.

Marinho estava, naquela época, com tuberculose. Ele chegou a se livrar da doença, mas vivia com a saúde debilitada. Até sua morte, em 15 de junho de 2020, viveu sob o cuidado dos filhos em Belo Horizonte. Essa é a história de como a família salvou um craque.

Arquivo Pessoal Arquivo Pessoal

Quando o Bangu colocava jogadores na seleção

O Bangu já revelou para o futebol brasileiro nomes como Domingos da Guia e Ademir da Guia, teve Fidélis, Zizinho e Zózimo em Copas do Mundo, mas o último jogador do clube a vestir a camisa da seleção brasileira foi Marinho.

O mineiro que já havia disputado os Jogos Olímpicos de Montreal-1976, sob o comando de Claudio Coutinho, havia sido lançado no futebol profissional por Telê Santana, no Atlético-MG. E foi o mesmo Telê que deu a oportunidade de jogar pela seleção brasileira principal, no auge de sua carreira, em 1986.

Marinho disputou duas partidas com a camisa amarela. Sua estreia, entrando no segundo tempo, foi na derrota por 2 a 0 diante da Alemanha Ocidental, em Frankfurt. No outro jogo, em amistoso contra a Finlândia, no Mané Garrincha, em Brasília, Marinho fez seu único gol vestindo a camisa 7 da seleção, na vitória por 3 a 0.

"Eu era ponta direita, eu joguei na seleção brasileira com o Renato Gaúcho. Já imaginou? Na época, você, num clube como o Bangu, chegar até a seleção brasileira? Não foi brincadeira, não. Em Belo Horizonte, eu morava embaixo de uma lona no bairro de Santa Efigênia e depois chegar na seleção brasileira", disse Marinho, em sua última entrevista ao UOL.

Depois de atuar nos amistosos, ele esteve na lista prévia de Telê Santana para a Copa do Mundo do México, mas acabou cortado e não se tornou o quarto representante do Bangu em Mundiais. Ele foi o 15º e último jogador da história do clube carioca a jogar uma partida pela seleção brasileira.

A morte do filho

A vida de Marinho foi marcada por tragédias pessoais. Depois de uma delas, começou a sair do eixo. O ex-jogador foi pai de sete filhos: Cristiano (de um relacionamento antes do primeiro casamento), João, Priscila e Marlon (filhos de Tânia), Steve Wonder (filho de Laiza). Laís e Mikail (do terceiro casamento, com Valda). E foi a perda de um deles que o mudou para sempre.

"Aquilo ali matou a minha carreira. Foi muito forte para mim. Com certeza, eu morri junto com o meu filho. Mas Deus quis, Deus é quem manda e quem ajuda, então a gente tem que obedecer a Ele", dizia Marinho.

Depois da passagem pelo Bangu, Marinho foi negociado com o Botafogo em 1988. Lesionado, era entrevistado pelo jornalista Marcelo Rezende — morto em 2017. Rezende era repórter esportivo da TV Globo e brincava com o jogador, perguntando se ele conseguiria pular Carnaval com a perna engessada. O bebê Marlon estava com o pai, que não percebeu quando o garoto se afastou e caiu na piscina da casa em que a família morava, em Jacarepaguá.

"Foi aquela correria toda e quando nós chegamos, o Marlon já estava na piscina boiando, aí o Marinho pulou na piscina, eu pulei, e os meus vizinhos eram todos médicos, eles tentaram reanimar. O Marcelo Rezende colocou o Marlon na Kombi rápido e fomos levá-lo na clínica mais próxima em Jacarepaguá. Mas eles já sabiam que o Marlon estava morto", contou Tânia.

Depois da morte do filho, veio a separação de Tânia. Marinho se afundou e jamais conseguiria ser novamente o jogador que um dia havia atuado pela seleção brasileira. "De alguma forma, ele se encolheu e não teve capacidade de suportar esse trauma", disse João Leite, ex-goleiro do Atlético-MG e deputado estadual pelo PSDB em Minas Gerais.

Ele é uma pessoa adoecida, mantém aquela simpatia, aquela meninice dele, que é muito bonita, mas ele é uma pessoa adoecida, infelizmente".
João Leite, em entrevista do início do ano, antes da morte de Marinho

Tragédia também na infância

Eu perdi a Irene, uma irmã maravilhosa. Ela que me levava para os treinos, me esperava até acabar e me levava pra casa. Era a minha irmã mais velha. Foi atropelada. Foi atravessar a rua e um carro a atropelou. Graças a Deus que eu não vi. Mas ela estava indo no campo pra me buscar. Eu devia ter uns 15 pra 16 anos, foi muito forte

Marinho

Álcool e cocaína

O declínio de Marinho na carreira e na vida fora de campo foi acompanhado por doses de bebida e drogas. A separação de Tânia não se deu pela perda do filho, mas pelos excessos do ex-jogador, que acabou viciado em cocaína.

"Uma das causas da separação foi isso, bebida e drogas. Mesmo o Marinho sendo jogador de futebol, a droga era cocaína. Eu acredito que, na época, ele ficou uns dois anos nessa vida. Ele foi adquirindo umas amizades lá [em Bangu] e tudo isso foi virando uma montanha. E eu falei não. As causas da separação foram essas, bebida, droga e mulherada", revelou Tânia.

Entre a passagem apagada pelo Botafogo e a volta ao Bangu, em 1989, Marinho conta que conseguia drogas com os próprios torcedores banguenses. "Foi na roda de pagode e coisa e tal. E eu acabei caindo. Era com os torcedores, mesmo eu sendo jogador de futebol, que eu conseguia [cocaína]. Eu fui usuário por uns quatro anos, mas eu superei, graças a Deus".

Depois de encerrar a carreira, Marinho chegou a morar no Bangu justamente no período em que seu filho Steve Wonder jogou pelo alvirrubro. Steve lembra que, um dia, foi treinar e encontrou Marinho debilitado, desnutrido e sem condições de ficar de pé no clube. Tudo devido ao alto consumo de álcool e à tuberculose. Com a ajuda do clube, conseguiu encaminhar o pai a um médico.

"Ele fez todos os exames. Não sabia dizer qual foi a última vez em que se alimentou. Bebia muito. Aí começou uma jornada para saber qual era o problema. Nos exames deu disfunção cerebral, por causa do álcool. Aí que ele começou a perder um pouco da memória e começou a luta. A gente levava ao médico constantemente, pra ver o que tinha, mas ele bebia e não se alimentava. Até que o caso ficou crítico e começou a aparecer um monte de doenças".

Com uma filha pequena e desempregado, Steve não conseguia mais dar conta de cuidar do pai. Foram quatro anos vendo Marinho sair de casa, beber e não conseguir voltar. Seu retorno só se dava quando amigos o encontravam. Foi então que Steve pediu ajuda aos irmãos mais velhos para que o pai deixasse Bangu e retornasse a Belo Horizonte, onde eles moravam.

A ida de Marinho a Belo Horizonte contou com a ajuda de Jorge Varela, presidente do Bangu. Sob o cuidado dos filhos João e Priscila, além da ex-esposa Tânia, Marinho lutou contra o alcoolismo. Quando a reportagem falou com a família pela última vez, Marinho estava há três anos sem beber.

Olha, isso aí eu enjoei. Eu só estava fazendo coisas erradas, era para eu estar até morto, mas graças a Deus, eu consegui tirar isso tudo da minha vida, essas coisas ruins que estavam me maltratando muito

Marinho, sobre o vício em drogas

Apadrinhado por bicheiro

Um dos mais famosos e poderosos bicheiros do Brasil, Castor de Andrade ficou marcado pela ligação com o Carnaval carioca, como patrono da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. Sua outra paixão era o Bangu, que presidiu durante um longo período, inclusive durante o Brasileirão de 1985.

Foi o próprio Castor de Andrade que, após ver Marinho jogar, decidiu investir na contratação do jogador que surgiu nas categorias de base do Atlético-MG e que defendeu o América de São José do Rio Preto entre 1979 e 1982.

"Pelo América de Rio Preto, jogamos contra o Bangu no Brasileiro. O Doutor Castor de Andrade gostou de mim e fez a transação. Fui contratado pelo Bangu em 1983", lembrava Marinho.

"Falando o nome dele eu fico totalmente arrepiado, ele foi um camarada maravilhoso, me atendia muito bem. Quando encontrava com ele, não ficava sem dinheiro nenhum, ele me ajudou muito, foi sensacional comigo. O seu Castor tinha a arma dele. Até pelo jeito que vivia, tinha que ter uma arma. Era muito dinheiro e você sabe como que é... Mas ele foi um homem maravilhoso".

O bicheiro, morto em 1997, foi o responsável por prolongar o casamento de Marinho em diversas situações, como conta a própria Tânia. "Quando eu separei dele, uma vez o Castor mandou me buscar em Belo Horizonte, com os capangas dele: 'Pode buscar que o Marinho não fica sem Tânia, não. Tânia é o suporte do Marinho'. Aí eu fui para o Rio e o Castor me disse: 'O Marinho não pode ficar sem você aqui. Você tem que dar força pra ele'. E eu voltei. Só que continuava tudo igual. Era mulherada, muita farra. Fui cansando".

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A Bola de Ouro de 1985

Desde 1971, a revista Placar premia os melhores jogadores do Campeonato Brasileiro com o troféu Bola de Prata. E desde 1973, o jogador eleito o craque da competição recebe a Bola de Ouro. O prêmio já foi conquistado por nomes como Falcão, Zico, Edmundo, Romário, Kaká, Rogério Ceni, Ronaldinho Gaúcho e Neymar. Mas quem também tem uma é Marinho, eleito o melhor jogador do Campeonato Brasileiro de 1985, no vice-campeonato do Bangu, que acabou derrotado nos pênaltis pelo Coritiba na decisão.

"Eu estou aqui olhando para ela. A Bola de Ouro está aqui do meu lado. É o maior troféu da minha carreira", disse Marinho durante a entrevista. "Tinha muitos jogadores bons, aí você fica, 'ah, eu não vou ganhar, não'. E eu ficava assim, 'nunca vai acontecer com você', mas acabou acontecendo".

Dentre tantas coisas que Marinho perdeu na vida, a Bola de Ouro foi uma que ele manteve e carregava como o maior prêmio da carreira. Carregava tanto que o troféu ficou danificado. EM 2019, a ESPN, que assumiu o prêmio da revista Placar em 2016, o presenteou com um troféu novo — era esse novo troféu que ele carregava enquanto conversava.

A decisão contra o Coritiba

O prêmio foi conquistado por Marinho graças à campanha do Bangu. Em 1985, o time superou Internacional e Vasco em seu grupo na segunda fase do Brasileiro, antes de passar pelo Brasil de Pelotas na semifinal, com dois gols marcados pelo ponta-direita.

O time do subúrbio carioca jogou para mais de 90 mil pessoas no Maracanã na final, disputada no dia 31 de julho de 1985. E, depois do empate em 1 a 1 no tempo normal, o Coritiba se sagrou campeão vencendo por 6 a 5 nos pênaltis, com Ado mandando para fora o último pênalti — o mesmo que o encontrou nas ruas de Bangu anos depois.

"Foi uma coisa aquela decisão. Até hoje mexe com a cabeça da gente. Não era o Fluminense ou Flamengo, foi o Bangu numa final de Brasileiro, aquilo ali foi marcante. O Ado foi muito criticado, mas ele bateu bem. O goleiro que foi melhor, catimbou bem".

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O fim da vida

Marinho morava embaixo de uma lona com outros sete irmãos, foi abandonado pelo pai e esperava pela mãe, dona Efigênia, chegar do trabalho lavando cadáveres no hospital para sustentar os filhos. Ele perdeu um filho e viveu o inferno. Até o fim de sua vida, lutou contra álcool e drogas para manter sua história no futebol viva.

Ele viveu com os filhos em Belo Horizonte até o dia de sua morte, aos 62 anos. Ele tinha pancreatite e câncer de próstata, que se alastrou para outros órgãos. Mesmo com algumas cirurgias, o quadro se agravou. Na capital mineira, ficou longe dos holofotes, distante dos amigos e com alguma dificuldade financeira. Até o fim, sonhou em trabalhar com futebol.

"O meu sonho é ser treinador de algum clube, na base. Tem que começar por baixo, mas já pensou eu ser treinador na escolinha do Atlético-MG? Eu sonhei com isso a vida toda".

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