Herdeiras do vento

Martine Grael e Kahena Kunze sintetizam a essência dos grandes velejadores brasileiros

Demétrio Vecchioli Colunista do UOL, em São Paulo Lloyd Images/Getty Images

Torben Grael costuma dizer que a vela é como um jogo de xadrez, com uma diferença: o tabuleiro muda o tempo todo. Vento, nuvens, corrente marítima, maré, tudo deve ser levado em consideração pelo atleta antes de mover seu barco.

Mas há uma outra diferença importante entre os dois esportes. Um é baseado no conhecimento acumulado ao longo de séculos e conservado em livros, vídeos e HDs. Não à toa, ainda não inventaram um jogador melhor do que os computadores.

O outro é a natureza em sua essência. O mar, o vento, o céu, as ondas, e dois humanos isolados em um barco, tendo de tomar, em segundos, decisões. Não há um livro que te ensine o que fazer.

É instinto. Ou você tem, ou você não tem. E não há nada que explique melhor as bicampeãs olímpicas de vela Martine Grael e Kahena Kunze do que essa palavra: instinto.

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Vela no DNA

Enquanto mega computadores guardam bilhões de possibilidades de jogadas de xadrez, o DNA dos Grael parece ir acumulando, sabe-se lá como, todo tipo de informação sobre velejar.

"Além de conhecimento técnico muito grande do equipamento, do material, de tática de corrida, a Martine tem um instinto competitivo, carrega com ela uma sensibilidade enorme em relação à percepção de condições de vento e maré, além de um conhecimento de vela absurdo que certamente é uma transferência genética", opina Jorge Bichara, ex-diretor de Esporte do COB, que acompanhou a dupla de perto em dois ciclos olímpicos.

Martine tem uma explicação um pouco mais científica: intuição é ter passado tantas vezes por uma situação a ponto de você acumular bagagem para instintivamente tomar a decisão que faça mais sentido.

Mas até nisso é importante o DNA da vela. Se Martine é filha do cinco vezes medalhista olímpico Torben Grael, Kahena também vem de uma família de velejadores. Tanto que o pai dela, Claudio Kunze, foi campeão mundial júnior da classe Pinguim.

Claro que nenhuma das duas pegava carona no barco do pai durante um Mundial. Mas esse tipo de competição é só uma parte da cultura da vela, que inclui usar o barco como instrumento de lazer e participação de regatas com perfil mais familiar.

Martine e Kahena estão há 32 anos velejando. Já passaram por todas as jogadas, como atletas ou tripulantes, em todos os tabuleiros. Guardam na memória e no DNA as respostas que já as levaram ao bicampeonato olímpico, e podem levá-las ao tri.

Clive Mason/Getty Images Clive Mason/Getty Images

Elas se complementam

A técnica Martha Rocha conhece Martine e Kahena como dupla desde quando elas tinham 18 anos e faziam os primeiros testes para formar um time.

"As duas são seres humanos que você não encontra em qualquer lugar. Elas são donas de um coração muito bom e são empáticas, cada uma do seu jeito. A Martine é mais fechada, menos aberta a interações sociais com quem ela não conhece. A Kahena é mais extrovertida, é quem interage mais com as pessoas", detalha.

A treinadora costuma dizer que Kahena é a "cola" da equipe, não só por unir o time, mas por aproximá-lo da comunidade da vela. "Ela é muito importante nas parcerias de treino que a gente consegue, em momentos importantes na campanha que a gente fez boas trocas com outros times."

Para Bichara, as duas têm personalidades que se completam. Martine é a obstinação em pessoa, nas palavras dele. Kahena, o equilíbrio. Martine, a predadora. Kahena, a que come pelos cantos.

As duas são seres humanos que você não encontra em qualquer lugar. Elas são donas de um coração muito bom e são empáticas, cada uma do seu jeito"

Martha Rocha, técnica das velejadoras

Dupla de longa data

No barco, cada uma tem uma função, definida muitos anos atrás, quando saíram da categoria de base da vela, a classe Optimist, individual, para fazerem uma dupla na 420, o barco "júnior" da classe olímpica 470, já na atual configuração: Martine como timoneira, Kahena como proeira.

O timoneiro é, a grosso modo, o capitão do barco, quem diz o que fazer. Tanto que, no remo, o timoneiro é quem vai ditando o ritmo dos companheiros, e sequer rema. Torben Grael, Lars Grael e Robert Scheidt entraram para a história como timoneiros.

Os timoneiros Nelson Falcão, Henrique Pellicano e Marcelo Ferreira ganharam as mesmas medalhas, subiram aos mesmos pódios, mas podem ir tranquilamente ao cinema sem serem reconhecidos.

Martine e Kahena, porém, fazem parte de um novo momento da vela. "Lá atrás os barcos eram mais simples, mais lentos. Quem ia no leme comandava tudo. Hoje, os barcos modernos exigem do proeiro mais do que exigem do timoneiro. Tanto que, se você tem uma tripulação inexperiente, você vai colocar o menos experiente no leme", explica a técnica Martha Rocha.

Não é o caso de Martine e Kahena, que não só têm experiência para dar e vender, como dividem as decisões no barco, exceto quando não há tempo para diálogo - aí, vale o instinto de Martine.

Phil Walter/Getty Images Phil Walter/Getty Images

Diferenciadas

Duas dessas decisões, ambas conversadas, assertivas e ousadas, fizeram de Martine e Kahena campeãs olímpicas. A primeira, na Rio-2016. Quando todos os barcos foram para um lado na regata da medalha, elas foram do outro. O caminho alternativo as permitiu vencer a última prova e ficar com o ouro em casa.

Em Tóquio-2020, a mesmíssima história. Muitos virando para a esquerda após a largada, e elas rumando para a direita. Uma boa percepção dos ventos e o tal do instinto levaram as duas para mais perto da praia. Uma decisão acertada, que as fez cruzar a linha de chegada na frente das alemãs e das holandesas que também brigavam pelo ouro.

"Tudo bem que elas tinham conhecimento do local, mas elas arriscaram, e é isso que impressiona: elas não têm medo de arriscar. Elas confiam no conhecimento técnico, no instinto que elas têm para entender a competição de vela", diz Bichara.

"Claro que tem muito treinamento, mas elas são diferenciadas. É talento. E estou falando das duas: é talento. É um brilhantismo. Na hora que a coisa aperta, as duas crescem. Elas têm coragem, não se afetam com a pressão. Ou melhor, se afetam no bom sentido. Na pressão, elas tomam boas decisões, não ficam nervosas", conta Martha Rocha.

Elas são marinheiras natas, dominam o barco. Você vê uma manobra difícil num treino e, enquanto as outras estão caindo na água, elas estão se segurando com um dedinho. Isso dá muita força para quando a coisa aperta."

Martha Rocha, técnica das velejadoras

De olho na vaga

Apesar de o Pan não ser, na vela, uma competição de grande relevância, as duas chegam ao Chile pressionadas depois de competirem mal no Mundial de Vela de Haia (Holanda), em agosto, e não conquistarem a vaga olímpica.

Donas de seis medalhas nos 10 primeiros Mundiais de 49er FX que disputaram juntas, elas não levaram o barco "oficial" à Holanda, competiram em uma raia que em nada as favorecia, mas contavam ficar entre as 10 primeiras. Terminaram em 12º lugar, pior classificação delas neste nível de evento.

Em Valparaíso, onde serão disputadas as provas de vela do Pan, as principais rivais delas devem ser as argentinas Maria Sol Branz e Cecília Carranza, que estão na estrada (ou no mar) pelo mesmo período e só uma vez foram top 10 do mundo.

Em tese, as brasileiras são muito favoritas ao ouro, e à vaga olímpica, que seria do país, não delas, ainda que não haja outras brasileiras competindo em alto rendimento nesta classe. E isso é um problema. Nem Martine nem Kahena podem pensar em se lesionar, porque nenhuma das duas teria substituta.

Aos 32 anos, a caminho da terceira Olimpíadas, as duas andam na corda bamba. Precisam, de um lado, ganhar peso, para concorrer contra rivais cada vez mais pesadas, o que interfere na velocidade do barco. De outro, não podem deixar que isso as limite nem tecnicamente, nem fisicamente.

Phil Walter/Getty Images Phil Walter/Getty Images

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