"Lea tá mais bonita agora"

Cerezo se abre sobre relação com a filha e diz que foi demitido por preconceito do futebol contra transexuais

Eder Traskini e Vanderlei Lima Do UOL, em Santos e São Paulo Masashi Hara/Getty Images

Já aproveita aí e fala que a Lea tá mais bonita agora, aí quem foi contra vai ficar mais puto."

Um pedido simples em uma frase que representa demais. Em entrevista ao UOL Esporte, Toninho Cerezo pediu para ressaltar que sua filha, Lea T, modelo de muito sucesso, está mais bonita depois da transição de gênero. A afirmação de apoio ainda veio acompanhada de uma cutucada de classe, como foi praxe durante sua carreira, em quem tem preconceito.

No mundo extremamente machista do futebol, o histórico volante, com passagens vitoriosas por Atlético-MG, São Paulo e seleção brasileira, sofreu preconceito pela identidade de gênero da filha. Segundo Cerezo, ele foi até demitido do cargo de treinador —carreira que começou logo após pendurar as chuteiras— por transfobia.

Lea T começou a se entender mulher aos 13 anos. Estudou na Itália, onde vive até hoje. Começou a carreira como modelo e ganhou notoriedade. Em 2010, chegou a dizer, em entrevista ao The Guardian, que o pai não gostava nem de falar sobre o assunto e que, já na infância, percebia que havia "algo errado".

Cerezo não esconde que, no começo, "foi um Deus nos acuda". Mas isso ficou no passado. Hoje, ele fala com carinho sobre a filha e avisa: "está tudo às mil maravilhas".

Masashi Hara/Getty Images
Aldo Carneiro/Folhapress

Demissão por preconceito?

Aconteceu em 2010. O técnico Toninho Cerezo havia retornado ao Brasil após quatro anos fora, em trabalhos na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes, e comandava o Sport. Após resultados ruins, o treinador colocou o cargo à disposição depois de uma derrota para o Duque de Caxias no dia 28 de julho de 2010. Era o terceiro jogo sem vitória. O presidente do clube na época, Sílvio Guimarães, rejeitou o pedido em comunicado oficial.

"Não se pode e nem se deve creditar ao trabalho do referido profissional os resultados das duas últimas partidas. A diretoria do Sport Club do Recife reafirma a sua inteira confiança no trabalho desenvolvido pelo Toninho Cerezo, um dos melhores, mais sérios e honrados profissionais do futebol brasileiro", escreveu o Sport na época.

No entanto, no dia 9 de agosto, depois de um empate com o Náutico, o clube pernambucano decidiu demitir Cerezo, que confessou na época que ficou chateado. Ao UOL, disse que tem "quase certeza" que a demissão teve relação com preconceito contra Lea.

"Na época, para o mundo do futebol, você precisava ver. Eu estava treinando um time, acho que era o Sport, e eu tenho quase certeza que eles me mandaram embora por causa disso. Eu acho que foi, espero que não, espero que eu esteja errado", disse.

O UOL Esporte procurou Gustavo Dubeux, diretor do Sport naquele ano, que negou a relação entre demissão e preconceito. "Não teve a ver. Acho que houve algum engano, pois não foi falado nada sobre a filha de Cerezo no Sport", afirmou.

Raquel Cunha/Folhapress Raquel Cunha/Folhapress

O lado de Lea

Tive medo por causa do futebol. Meu nome não foi Leandra Cerezo inicialmente porque o Riccardo me ajudou, mas também porque eu não queria que falassem que eu era Cerezo. Eu tinha medo de que isso pudesse prejudicar a carreira do meu pai."

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Lea T, em 2018 ao UOL, explicando que o T de seu sobrenome remete ao estilista Riccardo Tisci

Meu pai foi tão maravilhoso que, quando falaram isso [ser prejudicado por causa da filha], ele me ligou: 'Lea, eu posso perder todo o trabalho do mundo, ir para rua, mas terei orgulho de ser seu pai e não quero que pense que sua felicidade tem que depender do meu trabalho'. Para o meu pai e minha mãe, a minha felicidade é a deles

Lea T

Ele não me conta, mas eu descobri que sim [foi demitido por preconceito contra Lea]. Eu não tive prova das coisas, mas eu acho que em algum aspecto tiveram reações negativas. Ele nunca me contou e acho que não me contaria. Ele não gostaria que isso fosse um peso. Uma escolha tão forte na minha vida

Lea T

Masashi Hara/Getty Images
Cerezo entre jogadores do Kashima Antlers

Dificuldade em treinar no Brasil

O Sport, porém, não foi o primeiro clube de Cerezo no Brasil. O ex-volante começou a carreira no Atlético-MG e passou pelo Vitória antes de fazer carreira no Kashima Antlers (JAP), em que ficou seis anos. Voltou a treinar o Galo e o Guarani, mas logo deixou o Brasil rumo ao Oriente Médio, trabalhando na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes.

Foi aí que retornou ao Brasil para o trabalho no Sport. Depois, passou pelo Vitória antes de assumir novamente o Kashima Antlers por mais três anos. Para ele, esse grande período no Japão dificultou para ele trabalhar no Brasil.

"Eu trabalhei mais fora. O problema é que não tive ainda muita oportunidade aqui. No Brasil é muito difícil, e cada vez piora mais. Tem uma nova geração muito grande, muito garoto aí, muita gente no mercado, né, muito compromisso de diretores com treinadores. Se você não entrar nessa temática aí, você tem dificuldade", disse, mas confessou que não desiste apesar de seu último trabalho ter sido em 2015.

Passei o ano passado inteiro fazendo curso da UEFA. Minha vida toda foi bola, então ainda penso, sim."

Allsport UK /Allsport

O dia em que marcou Cruyff

Depois de mais de dez anos no Atlético-MG, Cerezo partiu para a Europa com destino a Roma (ITA). Assim que chegou no clube, a Roma foi disputar um torneio amistoso de pré-temporada na Holanda e enfrentou o Feyenoord. Na época, o volante já era consagrado —a transferência para a Itália foi em 1983, pouco depois de Cerezo ser titular da lendária seleção brasileira da Copa de 1982.

O brasileiro teve especial dificuldade para tentar marcar um atacante rápido, inteligente e driblador da equipe adversária. Demorou 45 minutos para Cerezo perceber quem era seu oponente...

"Tô vendo um cara que saía muito bem para receber a bola. Dei uns quatro botes nele e ele foi muito rápido com a bola no pé, virou o jogo... Eu vi que não dava para abafar porque ele realmente era habilidoso. Acabou com o jogo no primeiro tempo. Fomos para o vestiário e, na volta, ele puxou conversa comigo dizendo 'que coisa boa que você veio pra Roma, Cerezo, essa nova geração de jogadores te admira demais aqui'. Falou em espanhol e foi andando... Porr*, esse cara é o Cruyff, caralh*, vou dar bote porr* nenhuma", lembrou o ex-volante.

O Feyenoord foi o último de Cruyff antes da aposentadoria — ele chegou ao clube naquela temporada de 1983, aos 36 anos, e jogou até 1984. Antes, fez parte da Laranja Mecânica na Copa do Mundo de 1974, que chegou ao vice-campeonato, e do Ajax tricampeão europeu do início dos anos 70. Ele ainda passou por Barcelona e pelo futebol dos EUA antes de voltar à Holanda para se aposentar.

Ormuzd Alves/Folhapress Ormuzd Alves/Folhapress

A ligação para Telê

Foram três anos na Roma e mais seis temporadas na Sampdoria (ITA), time com o qual Cerezo disputou uma final de Liga dos Campeões, perdendo o título para o Barcelona de Guardiola, Laudrup e Stoichkov. Foi então que a Sampdoria resolveu fazer uma reformulação no elenco e liberou Cerezo.

Longe do Brasil há quase dez anos, ele resolveu ligar para quem tinha mais contato naquele momento e poderia auxiliá-lo em seu retorno: o lendário técnico Telê Santana. O resultado foi óbvio e o volante se tornou jogador do São Paulo, clube dirigido por Telê na época, em poucos dias.

"Eu que liguei para o seu Telê pra saber dele, pelo conhecimento que ele tem, se ele soubesse de algum time, ou pudesse me indicar, que eu estaria interessado. Foi a primeira pessoa que eu fiz isso. E aí, quando eu acabei de falar, ele falou: 'pode pegar suas coisas e vem pra cá, você vem para o São Paulo'", contou Cerezo que desembarcou no atual campeão da Copa Libertadores.

O Barcelona podia ter tirado o título da Liga dos Campões do volante quando ele estava no futebol italiano, mas Cerezo deu o troco no Mundial Interclubes e ajudou o São Paulo a ser campeão mundial. Na temporada seguinte, sua última com a equipe paulista, foi titular nos dois bicampeonatos: tanto da Libertadores quanto do Mundial.

Agência Estado
Toninho Cerezo entra em campo pelo time do Atlético-MG em março de 1980

O que faltou ao Galo

Cerezo pode ter ficado marcado na seleção brasileira de 1982 e nos títulos mundiais pelo São Paulo, mas não é segredo que o clube de sua carreira foi o Atlético-MG. Revelado pelo Galo em 1972, o volante ficou em Minas Gerais até 1983 e retornou em 1996. No entanto, para coroar sua história no clube mineiro faltou um título.

O Galo chegou a duas finais do Campeonato Brasileiro, em 1977 e 1980, mas não conseguiu o título. Em 1977, não saiu do zero com o São Paulo e acabou perdendo nos pênaltis. Para Cerezo, um desfalque fez toda a diferença naquele jogo. "Se a gente tivesse com o Reinaldo a gente conseguiria. O Reinaldo era artilheiro do time, não tinha outro jogador com a capacidade técnica dele. O próprio Atlético não tinha. Eu acho que isso pesou bastante", disse ele.

De fato, três anos depois, o Galo chegou na final contra o Flamengo e Reinaldo marcou os três gols da equipe: 1 a 0 para o Atlético na ida e derrota por 3 a 2 na volta. O Flamengo de Zico se sagrou campeão pela melhor campanha.

Cruzeiro "só de raiva"

Foi um presidente filho da put* que tinha lá na época. Estava tudo acertado para eu voltar para o Atlético-MG, mas acontece que o passe era meu e esse presidente não ia ganhar nada comigo lá. Eu queria encerrar minha carreira no Atlético, era só isso. O Atlético não ia pagar nada, uma pessoa de fora iria bancar, mas..."

Foi assim que a maior reviravolta aconteceu na vida futebolística de Toninho Cerezo. No lugar do branco e preto do Galo, o volante vestiu o azul do maior rival: o Cruzeiro. Ele admite que acertou com a Raposa "só de raiva" pela forma como foi tratado pelo presidente.

"Eu tinha amigos cruzeirenses, claro. Um amigo me chamou para uma reunião porque queria tentar me levar para o Cruzeiro, mas ele não sabia que eu estava acertado com o Galo. Ele era meu amigo e eu fui conversar. Apresentaram proposta e eu recusei. Quando vejo, o presidente do Atlético sentado a duas mesas de mim. À noite, eu chego para assinar com o Galo e ele fala que eu traí o Atlético", contou Cerezo.

O volante argumentou que o cartola estaria enganado, mas não teve sucesso. Então, levantou-se, foi embora e acertou com o Cruzeiro. Estreou justamente contra o Galo: vitória por 3 a 1, três gols de Ronaldo, que se tornaria o "Fenômeno". "Eu fiz três lançamentos pra ele, um pênalti e um gol, nós ganhamos o jogo"

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