Glória roubada

A história dos brasileiros que demoraram 11 anos para serem reconhecidos como medalhistas olímpicos

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Christophe Moratal/COB

Até hoje, o Brasil ganhou três medalhas olímpicas por doping. Em 2004, Rodrigo Pessoa subiu ao pódio em segundo lugar, mas virou campeão olímpico de hipismo por sua participação nas Olimpíadas de Atenas apenas um ano depois, quando os testes de um cavalo rival tiveram o doping confirmado. Outros personagens dessa história demoraram mais. E sua glória olímpica não passou nem perto daquela de quem realmente subiu ao pódio.

Em 2017, as brasileiras do revezamento 4x100m passaram por algo parecido. Rosemar Coelho, Lucimar de Moura, Thaissa Presti e Rosângela Santos terminaram a final dos Jogos Olímpicos de 2008 em quarto lugar, atrás de Rússia, Bélgica e Nigéria. Oito anos depois, Yuliya Chermoshanskaya foi flagrada no doping e as brasileiras subiram ao pódio durante o Prêmio Brasil Olímpico do COB (Comitê Olímpico do Brasil), à frente de seus pares do movimento olímpico brasileiro.

Nessa reportagem, você vai ler o que aconteceu com os homens do 4x100 rasos do atletismo do Brasil nos mesmos Jogos de 2008, que só receberam a sua medalha de bronze em uma sala de um museu na Suíça 11 anos depois. Qual é a sensação de ganhar uma medalha olímpica, receber os cumprimentos e subir ao pódio? Com certeza é o grande momento da vida de um atleta, ainda mais para brasileiros, não muito acostumados a essa honraria do esporte mundial. Ganhar uma medalha com atraso, com o reconhecimento vindo apenas tempos depois, sem a emoção do momento, já de banho mais que tomado e com a derrota momentânea mais que assimilada, com os patrocinadores já distantes no tempo, no espaço e nas finanças, sem ninguém além da família esperando no aeroporto?

Você quer saber qual é a diferença entre receber uma medalha olímpica na hora ou depois de um tempo? Pois eu respondo: receber depois não representa nem 0,1% da emoção de subir ao pódio logo após a competição. São situações incomparáveis".
Vicente Lenílson, velocista

Christophe Moratal/COB
Christophe Moratal/COB

Tempo real x delay

O potiguar Vicente Lenilson sabe exatamente a diferença das duas conquistas. Ele abriu o revezamento de prata no Estádio Olímpico de Sydney, no ano 2000. Festejou como nunca o segundo lugar. E foi o veterano que consolou toda a equipe no portentoso Ninho de Pássaro, em Pequim, quando o revezamento 4x100 do Brasil cruzou a linha em quarto lugar, no ano de 2008. À frente dos brasileiros estavam as equipes da Jamaica, de Trinidad e Tobago e do Japão. Foram elas que receberam os aplausos de um público entusiasmado com as passadas inalcançáveis de Usain Bolt e seus companheiros.

Foi apenas 11 anos depois, no silêncio do Museu Olímpico de Lausanne, na Suíça, que Vicente Lenilson e seus companheiros receberam a medalha de bronze por aquela Olimpíada de Pequim, após a desclassificação imposta à equipe da Jamaica pelo doping de Nesta Carter. O detalhe é que a mesma situação se repetiu para o time do 4x100 feminino, na mesma edição dos Jogos.

Eu passei pelas duas situações. E digo que receber uma medalha 11 anos depois da prova foi algo estranho. Sinistro".

No ano 2000, nos Jogos Olímpicos de Sydney, os brasileiros cruzaram a linha de chegada em segundo lugar, logo após os norte-americanos. A prata veio nos metros finais, com o cubano Freddy Mayola ficando para trás nos últimos 20 metros graças a uma arrancada histórica de Claudinei Quirino. O tempo: 37s90.

"Foi uma emoção extraordinária", relembra Vicente Lenilson, que hoje mora em Cuiabá, onde é coordenador de Esportes de Alto Rendimento do governo de Mato Grosso. "A adrenalina do momento te leva às alturas. É uma vibração intensa. Os aplausos do público, tudo ali na hora, em um só momento".

"Se você pegar o vídeo da prova para rever, vai notar que eu sou o cara que começa a prova pela nossa equipe e dá para ver que um pouco antes, talvez uns 10 metros, antes de eu passar o bastão para o André Domingos, eu sinto um problema na perna. É visível. Eu me lesionei no músculo adutor da perna esquerda. Só que alguns segundos depois, quando vejo o Quirino chegando à frente do cubano e garantindo a medalha de prata, eu já não sinto mais dor nenhuma na perna. Como que por mágica a dor sumiu. Quando você ganha uma medalha olímpica, a mente do atleta vai para outro plano. Não doía mais nada, só existia a felicidade. O pódio é o sucesso de uma carreira."

AFP PHOTO/Gabriel BOUYS AFP PHOTO/Gabriel BOUYS
AP Photo/Luca Bruno

11 anos recordando o pior lugar

Até hoje, quando fala de sua façanha em Sydney, Vicente Lenilson transmite emoção em seu depoimento. De todos os velocistas das equipes, ele era o menorzinho. "Mas minha saída era forte, muito boa. Quando eu entrava na pista para abrir o revezamento, sempre pensava que o tamanho era só um detalhe. Ali o que contava era a velocidade e eu me transformava em um atleta do mesmo tamanho deles. Se o cara não corresse, eu iria pegá-lo, sempre fui assim, desde os tempos em que comecei na cidade de Currais Novos, no interior do Rio Grande do Norte".

Ali, Vicente trabalhava em uma oficina de conserto de motos e corria nas provas das cidades vizinhas. Quando não tinha dinheiro para a condução, apelava para um amigo humilde como ele: o Chico Coveiro, que trabalhava no cemitério da cidade e era fã do menino veloz. Foi graças a gente como Chico que Vicente Lenilson tornou-se um velocista histórico do esporte nacional. Em provas olímpicas individuais, foi o 20º nos Jogos de 2000, o 12º nos Jogos de Atenas e o 16º nos Jogos de Pequim. E seria em Pequim que ele ganharia sua segunda medalha olímpica.

"Nossa equipe era uma das melhores do mundo. E tínhamos chance de subir ao pódio. Foi o que eu disse a eles antes da prova. Eram jovens, mas o psicológico estava forte. O fato de estarmos na final mostrava isso. Conversei com o Bruno Lins, com o Codó e com o Sandro Vianna, e fomos para a pista". Mas o Brasil terminou em quarto lugar, atrás da imbatível Jamaica de Bolt e de Trinidad e Tobago e Japão.

"Quando a prova acabou, eu estava destruído. Como o atleta mais experiente do grupo, eu me senti na obrigação de reunir o grupo ainda na pista e dizer que seríamos lembrados pela participação na final. Mas na verdade eu estava frustrado. Todos nós saímos frustrados da pista". Para demonstrar esse sentimento, Vicente Lenilson usa uma frase muito comum entre os atletas.

O pior lugar que existe em uma competição de atletismo é o quarto lugar. É melhor ficar em último de uma vez. Agora, quando você chega em quarto, você perdeu por um detalhe a chance de subir ao pódio".

E foi essa frustração que perdurou por 11 anos. Na cabeça e nas vidas dos integrantes da equipe que disputou a prova em Pequim.

Tinha gente em nossa equipe que achava que deveriam entregar a medalha durante os Jogos de Tóquio, na pista, mas eu sei que jamais fariam isso. Eu estive em três Olimpíadas e sei que não iriam interromper uma premiação atual para fazer justiça a algo que ocorreu muitos anos antes

Vicente Lenílson, dono de duas medalhas olímpicas no revezamento 4x100m

Jeff Haynes/AFP Jeff Haynes/AFP
Washington Alves/COB

Vicente Lenílson perdeu prêmio de R$ 1 milhão

Quando finalmente veio a público o caso de doping envolvendo o jamaicano Nesta Carter, a equipe de Trinidad e Tobago ficou com o ouro, o Japão ficou com a prata e para o Brasil veio o bronze. "Nós fomos muito bem recebidos pelos dirigentes do Comitê Olímpico Internacional. Houve uma recepção espetacular. Mas veja bem: nós recebemos a medalha de bronze em uma sala. Uma sala não é o pódio. Eu que estive em 2000, vivi a emoção do pódio... como é que vou comparar com essa entrega de 2019? Como disse, estive dos dois lados, vivi as duas situações e é algo mesmo estranho".

Além de momentos emocionantes e histórias a serem recordadas e contadas, Vicente Lenilson contabilizou prejuízos com o fato da medalha de bronze ter chegado com um atraso tão grande. "O primeiro prejuízo financeiro veio da equipe Rede, pela qual eu competia. Havia uma promessa de um prêmio de um milhão de reais para quem fosse medalhista. Com o quarto lugar, não foi pago, é claro" — a Rede Atletismo, equipe baseada em Bragança Paulista, no interior de São Paulo, foi extinta em 2009, um ano depois dos Jogos Olímpicos e dez anos antes de a medalha ser entregue para Vicente.

"Depois, os patrocinadores individuais tinham também prometido prêmios. Eu era da Adidas ou da Mizuno, já nem lembro mais. E não recebi nada com o quarto lugar. E havia também a Oakley, que me patrocinava. Não eram prêmios tão altos, mas havia a renovação dos contratos. E um medalhista olímpico sempre fica de um a dois anos na mídia e com novos contratos e convites a todos os momentos. Na verdade, depois desses 11 anos, recebemos somente a premiação da Confederação Brasileira de Atletismo [CBAt], que atualizou os valores da época e nos pagou cerca de R$ 10 mil reais".

Apesar de tudo, Vicente Lenilson não se sente tão atingido pelo atraso e acha que tem sim o reconhecimento merecido pelo que fez dentro das pistas. "Só eu sei o que treinei para conseguir o que eu consegui".

Agora, trabalhando em Mato Grosso, ele transporta seus sonhos aos integrantes do Instituto Vicente Lenilson, que tem 100 jovens atletas. Ele comanda o projeto ao lado de sua esposa, Cida Barbosa, que também foi atleta olímpica do Brasil, no salto em distância. Do grupo, participam Pedro e Davi, dois filhos do casal.

Mas a cereja do bolo é uma menina de 17 anos chamada Lissandra Maísa que é atleta treinada por Cida Barbosa e hoje é a quinta melhor saltadora do ranking mundial juvenil, com a estupenda marca de 6,39 metros. "Com certeza fará índice para os Jogos de Tóquio no ano que vem", conclui Vicente Lenilson, sonhando com mais uma medalha olímpica em sua história. Agora, para ser recebida na emoção do estádio olímpico da capital japonesa.

Martin Rose/Bongarts/Getty Images

Para "Rei do Maranhão", medalha veio na hora certa

Os amigos mais chegados de José Carlos Gomes Moreira brincam que depois da entrega da medalha de bronze dos Jogos Olímpicos de Pequim ele se tornou o "Rei do Atletismo do Maranhão". Codó, como o velocista é mais conhecido, comenta que não é bem assim, embora tenha realizado neste ano um velho sonho de criança: levar o esporte de altíssimo nível para sua terra.

Isso só foi possível pela conjugação de alguns fatores, entre os quais o recebimento da medalha de Pequim em 2019. "Para mim, o bronze chegou na hora certa!"

Por que Codó afirma isso mesmo tanto depois da corrida?

Porque ele encerrou a carreira após os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, e a consagração veio exatamente no momento em que pensava em começar uma carreira no comando de uma equipe em seu Estado. "Apresentei o projeto do CT Maranhão-Pé de Asa ao governo. Com quatro polos de formação de atletas e uma equipe de alto rendimento. E tudo foi aprovado com um polo em São Luís, outro em Timon, mais um em Caxias e outro na minha cidade, lá em Codó, com 35 crianças, onde já despontam duas delas".

Com o prestígio da medalha de bronze, Codó é o padrinho e o coordenador técnico do projeto que tem atletas de ponta do atletismo nacional, como Eduardo de Deus, Rodrigo Nascimento, Bruno Lins, Alexsandro Melo, Vitor Hugo dos Santos e Flávio Barbosa. "Esses atletas continuarão treinando em seus lugares de origem, com seus técnicos, fora do Maranhão, mas darão visibilidade à nossa ideia, que é formar outros atletas olímpicos aqui em nosso estado. E eu sei que é possível, porque eu consegui. Lutei muito, sai daqui e estive competindo em 23 países, com o ponto alto sendo a participação dos Jogos de Pequim".

Codó se lembra de todos os detalhes de quando a prova do revezamento 4x100 acabou na pista do Ninho de Pássaro, em 2008, e todos viram que tinham ficado com a quarta posição. "Foi uma frustração terrível. E eu me recordo do Vicente Lenilson ainda na pista juntando a gente e dizendo para não baixar a cabeça, que tínhamos feito o melhor que podíamos fazer. Mas eu, no íntimo, tinha a intuição de que as coisas iriam mudar. Que o resultado iria mudar. Era só uma intuição".

Codó já tinha encerrado a carreira quando finalmente foi anunciado o resultado do doping positivo de um atleta jamaicano. Da prova até a entrega das medalhas se passaram 132 meses, duas olimpíadas, infindáveis provas. E até mesmo a carreira do maranhense tinha terminado. "Para mim, foi sublime, foi demais, até difícil de descrever como foi a ida ao Museu Olímpico na Suíça. As lágrimas rolaram. Receber a medalha lá dentro, naquele cenário... Claro que eu preferia ter recebido no Ninho de Pássaro, após a corrida. Mas o momento era para ser esse, como foi, no Museu Olímpico, em Lausanne e foi assim que entrou para a nossa história. O importante é que o momento foi esse. O momento foi nosso".

Ricardo Bufolin/LatinContent via Getty Images

"Sei que não sou um medalhista olímpico normal"

Outro integrante da equipe de Pequim, Sandro Vianna se emociona quando dá entrevistas com sua medalha de bronze nas mãos: "Eu sei que não sou um medalhista olímpico normal".

"Eu sei que eu tive a minha vida roubada por 11 anos, eu conheço a história do esporte no Brasil, sei quão difícil é conquistar uma medalha e eu não vejo problema nenhum em ser medalhista do jeito que fui. O importante é que eu consegui cumprir minha missão, o importante é que eu dei o máximo de mim, fui honesto, eu acho que para mim isso é o que mais pesa. Eu joguei limpo, respeitei as regras do esporte e por isso eu tenho essa medalha aqui nas minhas mãos hoje".

Com essa medalha e uma carreira de altíssimo nível, mesmo começando tarde no esporte, Sandro é hoje atleta-guia no Centro Paraolímpico e ajuda na preparação da equipe nacional: "Se antes eu fazia o treino para mim, agora faço para um companheiro e isso é maravilhoso", diz Sandro, que é um ídolo de todos os velocistas paraolímpicos, para quem serve de guia, olhos e inspiração. Para eles, o medalhista de bronze é um farol a iluminar a pista.

Antonio Gauderio/FolhaPress

"Parecíamos bandidos fazendo alguma coisa errada"

Os exames antidoping feitos anos depois das provas, quando o material colhido é submetido a testes mais modernos, já deram aos brasileiros do próprio revezamento outras duas medalhas. Uma delas, de ouro, foi nos Jogos Pan-americanos de 2003, em Santo Domingo. Poucos se lembram, mas dois integrantes da equipe não esquecem: Claudinei Quirino e Edson Luciano.

"Nós ficamos em segundo lugar, mas os norte-americanos tinham um atleta que foi pego no exame antidoping e a medalha de ouro ficou para nós", relembra Claudinei, hoje secretário de esportes da cidade de Presidente Prudente. A equipe era a mesma ganhadora da prata dos Jogos Olímpicos de Sydney. O atleta dopado dos Estados Unidos era Mickey Grimes (esse à frente de Claudinei na foto acima) e foi apanhado com efedrina.

Receber a medalha sem o ritual da pista, mesmo que seja de ouro, é frustrante. "Pelo menos eu penso assim", assegura Edson, que é um dos "Heróis Olímpicos" da Confederação de Atletismo e participa de palestras e eventos do esporte nacional. Vive hoje em Criciúma (SC) e organiza também corridas de rua. "Não tem muito sentido correr e não receber a medalha. Depois de alguns anos é feita a entrega sem o hino, sem a coroação, sem o estádio cheio, sem a aclamação do público, sem os aplausos ao atleta. Recebemos o ouro dois anos depois no Rio, mas pode acreditar que não é a mesma coisa".

Se neste caso do Pan de 2003 não houve grandes prejuízos financeiros para os integrantes da equipe, a outra medalha envolve um outro caso pouco divulgado que deixa até hoje Claudinei Quirino revoltado. No Campeonato Mundial de 1999, em Sevilha, ele teria saído da Espanha consagrado com duas medalhas no peito — um feito inédito em nosso esporte carente de façanhas.

"Fiquei com a prata nos 200 metros, com a marca de 20 segundos cravados. No revezamento 4x100, ficamos em quarto. Anos depois, o técnico Nélio Moura descobriu que a Nigéria tinha incluído um atleta irregularmente na equipe. Um atleta que estava suspenso por doping. E a medalha de bronze passou para nós. Recebemos tempos depois. A entrega foi aqui no Brasil, numa salinha escura, parecia que éramos bandidos fazendo alguma coisa errada. Não tinha nada a ver com receber o reconhecimento em um pódio, na pista, com toda a plateia aplaudindo. E eu teria sido o único brasileiro a receber duas medalhas em um mundial. Acho que ainda sou. Mas quem é que sabe disso?"

Christophe Moratal/COB Christophe Moratal/COB

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