Rei do mar

Medina supera polêmicas e frustrações para se consolidar como maior surfista brasileiro

Adriano Wilkson e Marcello de Vico Do UOL, em São Paulo e Santos Pat Nolan/World Surf League

Gabriel Medina tinha muito em jogo quando entrou no mar da Califórnia para disputar a final da liga mundial ontem. Fosse em outros tempos, quando o campeonato era por "pontos corridos", ele nem precisaria cair na água e já teria sido campeão do circuito por antecipação.

Mas 2021 não foi um ano tranquilo para Medina. Nem dentro, nem fora d'água. Fora, ele precisou desarmar uma sequência de crises de imagem, como o rompimento com sua família e com o técnico e padrasto Charles, a briga com o Comitê Olímpico Brasileiro por causa de sua esposa e os questionamentos sobre sua posição a respeito da vacinação contra a covid.

Dentro da água, Medina se frustrou em Tóquio, com a queda na semifinal em uma decisão controversa dos juízes. Em entrevistas, sempre dizia que nunca tinha surfado tão bem quanto em 2021. Mas agora, mesmo dominante durante as sete etapas anteriores, ainda precisava dar sua última prova.

O adversário na final era Filipe Toledo, o compatriota que tinha acabado de superar o campeão olímpico Italo Ferreira e buscava seu primeiro título mundial. Filipinho, como todos o conhecem, tinha ao menos uma vantagem: a praia de Trestles fica na cidade de San Clemente, onde ele e a família moram desde 2014. Nenhum surfista do circuito entende essas ondas melhor do que ele.

Mas nenhum surfista do circuito entende o surfe tanto quanto Gabriel Medina. E isso ele provou nos 60 minutos em que ficou no mar contra o amigo. Venceu as duas baterias com folga, a segunda depois de uma manobra aérea em que voou sobre a onda como se fosse senhor não apenas de cada movimento do seu corpo e de sua prancha, mas também das leis da gravidade e da hidrodinâmica.

Aos 27 anos, se tornou o primeiro brasileiro tricampeão mundial, o maior surfista da história do país. Um legado que fala por si.

Pat Nolan/World Surf League
Sean M. Haffey/Getty Images/AFP Sean M. Haffey/Getty Images/AFP
Sean M. Haffey/Getty Images/AFP

"Homem de verdade"

Não sou bom de falar, sou bom de surfe. Deixa o surfe falar. Vou contar sobre esse dia para os meus filhos. Esse ano foi um pouco diferente dos outros, eu saí da minha zona de conforto. Eu provei ser um homem de verdade."

Gabriel Medina, tricampeão mundial

Reprodução/Instagram

Medina dedica título a Yasmin Brunet

A modelo Yasmin Brunet esteve ao lado de marido em todas as etapas do campeonato. Estava lá na praia enquanto Medina surfava para o troféu. E foi a ela que o surfista dedicou sua vitória.

O brasileiro afirma que Yasmin tem um papel fundamental na melhora do seu surfe. Além de dar apoio emocional, ela também cuida da sua alimentação durante as competições. Para tê-la a seu lado nas Olimpíadas de Tóquio, Medina entrou em conflito com o Comitê Olímpico Brasileiro, que limitou o número de credenciais por causa da pandemia. Antes, ela já tinha sido a pivô do rompimento com a família, que esteve ao seu lado nos dois títulos anteriores.

Esses problemas pareceram distantes quando o brasileiro caminhava na praia da Califórnia para receber seu terceiro troféu.

Eu a amo. Ela esteve comigo o ano todo e faz eu me sentir o melhor cara do mundo. Quero dedicar a vitória a ela. Finalmente conseguir o troféu significa muito para mim, porque o ano foi diferente."

Tony Heff/World Surf League via Getty Imag

Tatiana Weston-Webb repete melhor resultado no feminino

O bom desempenho brasileiro também aconteceu no torneio feminino. A gaúcha Tatiana Weston-Webb, filha de uma bodyboarder brasileira e um surfista inglês que foi criada surfando no Havaí, deu ao Brasil seu quarto vice-campeonato mundial feminino da história — ela igualou Silvana Lima, segunda colocada do circuito em 2008 e 2009, e Jacqueline Silva, em 2002.

Tati chegou à praia de Trestles como a segunda colocada do ranking mundial e, por isso, entrou apenas nas semifinais. Ela precisou virar sobre a australiana Sally Fitzgibbons para se classificar, mas na final encarou a havaiana Carissa Moore. Quase imbatível, Moore perdeu a primeira bateria para a brasileira, mas não foi o suficiente.

A havaiana virou, venceu as duas baterias seguintes com muita autoridade e deixou o primeiro título mundial feminino brasileiro para o futuro.

Matt Dunbar/World Surf League via Getty Images

Brasileiros dominaram campeonato e etapa final

O título brasileiro na categoria masculina não foi surpresa. Os finalistas Gabriel Medina, Italo Ferreira e Filipe Toledo dominaram o surfe mundial durante todo o ano, e a superioridade nas finais comprovou que o Brasil está muito acima dos demais no esporte.

Das sete etapas da temporada, os brasileiros venceram cinco. Medina ganhou em Narrabeen e em Rottnest Search, na Austrália, e conseguiu três vice-campeonatos. Filipinho venceu outras duas competições, e Italo, uma. Os adversários dos brasileiros chegaram para as finais com apenas um segundo lugar cada na conta: o norte-americano Conner Coffin foi vice-campeão em Narrabeen e o australiano Morgan Cibilic, em Rottnest Search.

Vale ressaltar que Gabriel Medina teria levado o título antes mesmo das finais caso a Liga Mundial de Surfe não houvesse estreado nesta temporada um novo formato para definir o campeão, com uma etapa extra após a fase classificatória. Se ainda vigorasse o sistema de "pontos corridos", Medina teria sido campeão por antecipação.

Brasil repete domínio do Havaí nos anos 2000

A conquista de 2021 faz o Brasil igualar o Havaí, considerado o berço do surfe, na história do circuito mundial. O país verde e amarelo emplaca, pela primeira vez, um tricampeonato, algo que o arquipélago norte-americano conseguiu em 2004 com o terceiro título consecutivo do lendário Andy Irons, havaiano que perdeu a vida em 2010.

Gabriel Medina levou a taça em 2018, seu bicampeonato, enquanto Italo Ferreira sagrou-se campeão em 2019. Não houve disputa de título em 2020 por conta da pandemia. E Gabriel cravou o tri com a vitória em 2021.

Os cinco títulos mundiais brasileiros deixam os surfistas nacionais mais perto, no cômputo geral, do Havaí, que é considerado um país independente no circuito de surfe. O Brasil tem tudo para buscar o Havaí também em número de títulos. Os havaianos foram campeões sete vezes.

Kelly Cestari / WSL

John John Florence, a única pedra no sapato

Se há alguém que pode parar — ou ao menos interromper — a tempestade brasileira, ele se chama John John Florence. Campeão mundial em 2016 e 2017, o havaiano só não brigou no topo nos últimos anos por conta de uma sequência de lesões. Em 2019, ele liderava o ranking com duas vitórias e um terceiro lugar em quatro etapas até machucar o joelho direito na etapa do Brasil.

Em 2021, a história se repetiu. John John estreou no circuito com uma vitória no quintal de sua casa, em Pipeline, mas, em maio, rompeu o ligamento do joelho esquerdo em Margaret River e precisou passar por cirurgia. Competiu ainda em recuperação nas Olimpíadas, e foi eliminado nas quartas de final. Preferiu priorizar sua recuperação depois dos Jogos, abandonando a briga pelo título desta temporada.

Ainda tem muita coisa por vir, o surfe é um esporte muito novo no Brasil, se compararmos com Estados Unidos, Austrália e Havaí, mas está ficando forte muito rapidamente. Existe muito mais motivação neste país do que para muitas crianças onde eu cresci, por exemplo. É uma coisa cultural."

Kelly Slater, 11 vezes campeão mundial

As crianças na Austrália, nos EUA, muitas vezes têm as coisas mais fáceis, a vida não é tão dura, eles não precisam lutar contra tanta coisa. O brasileiro tem o espírito do surfe, das lutas, do futebol, de vários esportes, da Fórmula 1 também. O brasileiro tem esse foco, a necessidade dá isso a você."

Kelly Slater

AFP/Kent Nishimura, WSL e Sean M. Haffey/Getty Images/AFP AFP/Kent Nishimura, WSL e Sean M. Haffey/Getty Images/AFP

1º título de Medina confirmou "tempestade brasileira"

Em 2011, a imprensa americana cunhou a expressão "Brazilian Storm" para descrever os jovens surfistas brasileiros que despontavam no cenário internacional, sob a liderança técnica de Gabriel Medina.

Antes mesmo do primeiro título brasileiro, em 2014, o circuito mundial já falava português no intervalo das baterias. Adriano de Souza, Alejo Muniz, Miguel Pupo e Filipinho já eram nomes recorrentes no Mundial. Mas o melhor resultado do país havia sido o terceiro lugar de Victor Ribas, em 1999.

Em 2014, Medina se tornou o primeiro brasileiro campeão mundial e, quatro anos depois, o Brasil já tinha a maioria na elite do esporte, com 11 participantes — contra oito da Austrália e seis dos Estados Unidos, além de quatro do Havaí, considerado um país à parte no surfe.

Apesar da ausência de títulos mundiais, as gerações brasileiras anteriores à Brazilian Storm foram sólidas, bem trabalhadas e receberam o investimento necessário para que o sucesso chegasse um dia. Surfaram nessa época atletas como Victor Ribas, Fábio Gouveia, Flávio Padaratz e Pepê Lopes. Circuitos amadores de prestígio, patrocínios para surfistas de maior destaque e intercâmbio com países já dominantes ajudaram o Brasil a crescer no esporte.

WSL / Jackson Van Kerk
Filipe Toledo cumprimenta Gabriel Medina após o título em Trestles

Tempestade tem mais brasileiros a caminho

A tempestade brasileira, ao menos aparentemente, ainda está longe de acabar. O cenário atual indica que os brasileiros continuarão brigando no topo da tabela nas próximas temporadas do circuito mundial.

Além dos finalistas Medina, Italo e Filipinho, o Brasil já conta com outros quatro nomes garantidos na elite do surfe em 2022: Yago Dora, que conseguiu três quinto lugares em 2021, Deivid Silva, que foi vice-campeão na etapa do México, Jadson André e Miguel Pupo.

O time brasileiro ainda deve ser reforçado pelo Challenger Series, divisão de acesso intermediária criada pela WSL para surfistas que buscam uma vaga no circuito mundial de 2022, e que acontece entre setembro e dezembro deste ano. Samuel Pupo (irmão de Miguel) e João Chianca (irmão do ex-BBB Lucas Chumbo) são alguns dos nomes para ficar de olho.

Sean M. Haffey/Getty Images/AFP Sean M. Haffey/Getty Images/AFP

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