Meligeni, 50 anos

Ao meio século de vida, Fininho reflete sobre vida e tênis e brinca: "queria dar festa para destruir o mundo"

Marcello De Vico Colaboração para o UOL, em Santos Fotojump

"Eu queria fazer uma baita festa"

"Eu tinha uma vontade absurda de fazer uma festa que eu ia destruir o mundo", brinca Fernando Meligeni. O motivo para tanto é nobre: hoje, dia 12 de abril de 2021, o ex-tenista brasileiro completa meio século de vida, cheio de histórias para contar e muito amor para compartilhar.

A pandemia, porém, impede que, ao menos por enquanto, Fininho festeje o aniversário da maneira que imaginava.

"Eu fiz festa de 40 com uma banda que amo, Frank Elvis e Los Sinatras. Eles foram no meu casamento, é um cara absurdo que canta umas músicas muito legais. Já estava tudo na minha cabeça: 'vou fazer uma festa de 50 anos, fechar um lugar, chamar meus amigos'. Queria fazer uma baita de uma festa, mas estou de boa. Segunda [hoje] estarei aqui, falando com a minha mãe pelo Zoom, e tudo certo".

O tamanho da vontade de dar uma festa de 50 anos é proporcional ao da consciência de Fininho em relação ao momento que Brasil e mundo atravessam.

"Eu vivi 50 anos da maneira que queria, posso viver um ano da maneira que não quero. E falo isso para a minha mãe, que tem 80."

"Eu me decepciono um pouco, porque escolhi o Brasil e vejo todo mundo: 'Ah, isso aqui não dá certo'. O que não dá certo somos nós, não é a bandeira. Quem tá errado, saindo na covid e fazendo festa, somos nós, não os governantes. E eu sou contra todos os governantes, todo mundo sabe que odeio política. Mas quem está matando somos nós, que saímos pra caramba."

A marca redonda de 50 anos acontece neste instante diferente do mundo, em modo de pausa e apreensão. É neste momento que, a convite do UOL, Fininho comenta como vê a vida após cinco décadas de estrada. E mais: analisa o esporte em que brilhou profissionalmente até 2003. Nesta data, o antigo top 25 do mundo reflete sobre a ganância prejudicando a competição, os perrengues da 'era Guga' e sobre quem foi o melhor da história nas quadras. Tudo no estilo Meligeni, no "papo reto".

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Agora a prioridade é de esposa e filhos

O coração que antes era deixado a cada ponto nas quadras de tênis agora tem um novo foco: a casa onde Meligeni mora com a esposa Carol Hubner e os filhos Gael e Alice. Hoje, Fininho vive um sonho que sempre idealizou — e virou realidade.

"Sempre tive muito claro que queria uma vida como a que tenho hoje com minha esposa e meus filhos, só não sabia quando era esse momento. Mas sempre tive tudo muito claro nesse sentido: 'Quando eu parar, não vou ser treinador, viajar 40 semanas. Quero ter a minha esposa, viver com meus filhos, levá-los na escola, viver a vida deles, vê-los crescer'."

Fininho hoje goza de tudo isso, e aproveita a vida do jeito que quer. "Eu gosto muito do lado cultural, minha esposa me levou para esse lado desde que a gente se casou. Acabei entrando muito mais na vida dela do que ela na minha, até porque ela ainda está na ativa e eu não. Gosto muito de música, de conviver com meus filhos. Ter tempo para eles é uma das coisas mais importantes, e eu faço minha vida tudo 'primeiro eles, depois minha profissão'."

"E gosto muito de viajar, de comer. Gosto de conhecer lugares legais, mais pé no chão, pé na areia, ou no barro até, melhor ainda. Restaurante bom é restaurante que te trata bem, não precisa entrar de terno e gravata. E viajar, ir pra uma Disney... Fomos quatro anos seguidos, enquanto o dólar estava baixo e tinha dinheiro, agora ficou mais complicado [risos]. É um dos lugares que mais gosto de estar com a minha família, porque vejo a alegria deles".

Além de desfrutar do sonho real de viver com e para a família, Fernando Meligeni continua bastante ativo no lado profissional. Agora, além das clínicas, palestras e curso online de tênis, Fininho voltará a comentar tênis na ESPN. Ele reestreia na telinha justamente hoje, dia de seu aniversário.

Isso sem contar no suporte aos sobrinhos Felipe e Carol, que assim como Meligeni buscam uma carreira de sucesso no tênis profissional. "Os dois têm treinador, os dois têm a vida deles, e minha participação é de apoio. Quando eles precisam, eles me têm, o tempo inteiro. Mas sempre vindo deles. Essa é minha postura a respeito deles. Não eu ser o cara que fica enchendo o saco. Amo tentar ajudar, mas também sei meu lugar".

Kevork Djansezian/Getty Images

Sampras maior que Federer e Nadal?

A foto acima reúne a realeza do tênis moderno, da esquerda para a direita: Rafael Nadal, Pete Sampras, André Agassi e Roger Federer. Na opinião de Fernando Meligeni, apesar da era atual de destruição de recordes, o americano Sampras ainda merece ser tratado como o número 1.

Federer e Nadal: 20 Grand Slams. Novak Djokovic: 18. Em números absolutos, os três em atividade hoje levam vantagem em relação a Sampras. Mas Fininho tem seus argumentos a favor do antigo "Rei de Wimbledon".

"Eu acho o circuito que o Sampras jogou, pra ser tudo que ele foi, mais difícil do que o que eles jogaram. Quando você vai pra 14 Grand Slams de um Sampras, para mim ele equivale a 20 de um Federer ou Nadal. Não que eu esteja os desmerecendo. Mas para você ganhar um Grand Slam, você tinha que ganhar de muito cara cascudo. Para vencer Roland Garros, tinha que ganhar de [Sergi] Bruguera, [Thomas] Muster, de todos os espanhóis, todos os argentinos, que jogavam muito tênis. 'Ah, então quer dizer que os caras de hoje em dia não jogam?'. Não. Mas é um nível abaixo", opina.

"Os caras que hoje são 25 do mundo são diferentes dos caras que eram 25 naquela época. Eu toquei o número 25, não me mantive, não tinha nível para ficar ali. Com todo respeito e toda humildade do mundo. Existe o tenista que é 25 e o tenista que tocou 25. Eu fui 25 do mundo, durante um tempo. Só que meu ranking era 50, 70. Problema nenhum nisso, porque para mim era outro nível de tênis", acrescenta.

Mas o alto nível apontado por Fininho não impediu que ele acumulasse feitos incríveis em sua vida profissional. Em 1999, ano em que alcançou a sua melhor colocação na carreira (nº 25 no ranking da ATP), por exemplo, ele chegou bem perto de uma decisão de Roland Garros - parou na semi - e ainda conseguiu uma vitória épica e incontestável justamente contra o ídolo, Pete Sampras.

Tio foi estrela de vitória sobre Sampras

Hoje, com essa molecada muito mais mimizenta, muito mais medrosa, infelizmente respeitam muito mais do que a gente respeitava. Eu entrava na quadra e 'caguei com quem vou jogar, ganha de mim'. Eu perder na véspera, não. Isso não existia

Fernando Meligeni, comparando o tênis atual com os tempos em que jogava profissionalmente

Darren England/ALLSPORT

"Acaba com a Davis"

Uma das maiores decepções de Fininho com o tênis atual é a Copa Davis. Ou o que fizeram dela. O torneio que misturava tênis e Copa do Mundo e transportava as torcidas quase para dentro de quadra mudou, e hoje, por exemplo, tem a fase final realizada em local único, sem mais o calor do público. Mas esse não é o único problema apontado por Meligeni.

"Eu sou muito crítico à Davis de hoje, para mim é um torneio de grana. A gente precisa dividir o que é circuito e o que é entretenimento. Vamos fazer o tênis virar entretenimento? Então vamos. Coloca o técnico na quadra, ok, a gente faz, muda a regra... Essa coisa do puxadinho no esporte de alto rendimento não serve, e é isso que estão tentando fazer com o tênis. A Davis, para mim, é uma das maiores decepções. 'Ah, mas não dá dinheiro, não dá público, os jogadores não querem jogar'. Então acaba, não joga mais. A Davis fica lá, que nem um troféu", diz.

"Não consigo entender o que o mundo novo está querendo fazer com a destruição do passado. Eu sou um brigão a respeito disso. Estamos vivendo de endeusar pessoas. Hoje a pessoa é mais importante que o esporte. Eu aprendi o contrário. Não importa teu tamanho. Não cheguei a um tamanho tão relevante pra ser comparado ao esporte, como Pelé, Michael Jordan, Tom Brady, seja quem for. Mas sempre aprendi que você tem um dever, uma obrigação de cuidar do seu esporte."

Hoje ninguém mais está cuidando do esporte, está todo mundo pensando em dinheiro, fama, like, quantidade de cliques, e se isso for destruir o seu esporte, 'tô nem aí, o importante é ganhar'

Fernando Meligeni, em reflexão sobre o momento atual do tênis

Eduardo Knapp/Folha Imagem

"Guga nunca ganhou nada a mais"

Para Fininho, o grande problema da Copa Davis e do tênis mundial é a divergência entre os tops - jogadores mais bem colocados do ranking da ATP. E ele usa o amigo e ex-companheiro de quadra, Gustavo Kuerten, o Guga, para explicar por que as coisas eram melhores antigamente.

"Tem uma história que a gente tem que falar a respeito do Guga. Tem coisas que eu possa, nesses quase 50 anos, não ter gostado que ele fez, ou que não pensamos parecido, só que tem coisas que são extremamente importantes e precisam ser ditas. Quais são os grandes problemas da Davis e do tênis no mundo? A divergência dos tops. Top que joga Copa Davis ou representa o país pede muita grana, e acha que tem que ganhar mais. Acontece, isso é normal no futebol também", diz.

"O Guga é um cara que jogou dez anos de Copa Davis com a gente e nunca ganhou um quarto a mais. Nunca chegou e disse 'quero 75 ingressos a mais'. Lógico, se a gente jogava em Floripa, sabia que ele era o cara que mais tinha amigos lá. Tem 500 ingressos para dar, dá mais para o Guga. E ele nunca falou: 'Não vou ficar no hotel', 'quero um quarto pra mim', nunca pediu nada", recorda.

"Acho que por isso que era tão legal. Cada um sabia o seu lugar, cada um sabia o seu tamanho, mas não tinha estrelismo. O Jaime ganhava todos os jogos de dupla e não era diferente. E o quarto cara da equipe, que foram vários, era tratado igual ao Guga. E por isso que a gente foi tão bom, dentro do nosso tamanho, da nossa limitação", afirma Meligeni.

Fininho, junto de Guga e Jaime Oncins, levou o Brasil à semifinal da Copa Davis em 2000, depois de uma épica vitória sobre a Eslováquia no Rio de Janeiro. A grande campanha parou na derrota para a Austrália de Lleyton Hewitt.

Guga cantava música do Red Hot Chilli Peppers para ele

Causos com Meligeni

Histórias inspiradas no livro "Aqui tem! Vitória e memórias de Fernando Meligeni, com André Kfouri"

Mike Hewitt/Getty Images

'Aposto que não faz um ace'

Uma hora, uma torcedora pega e fala "faz um ace", e ele [Andy Roddick] olhou, na brincadeira, porque ele também é brincalhão, e falou "for sure [com certeza, em inglês]", alguma merda dessa. E na hora que ele ia sacar, eu falei "para, para, deixa eu entender isso". E foi muito legal porque no começo ele ficou preocupado, achou que eu tava realmente puto; o árbitro tentou apaziguar os ânimos, e fui andando pra frente, com aquele inglês maravilhoso: "Você vai fazer um ace?". "Vou, faço". Aí ele se ligou que eu não estava bravo. E eu: "Aposto um dólar". Ele fez uma cara, de isso não existe... "Se você fizer, quando acabar o jogo eu entro no vestiário e te dou um dólar, se não fizer, você me dá". "Beleza". Aí continuou o jogo, eu perdi. Aí eu puto no vestiário, e de repente ele vem com um dólar e brinca comigo: "ganhei o jogo, mas perdi um dólar".

Getty Images

Da quadra pra final da Copa 98

Começa com a gente jogando simples, e o Guga, estrela do torneio, perde. O diretor do torneio olha a gente ganhando na dupla e fala: "Hmmm, esses caras vão entregar". Não entregar no sentido de entregar, mas entregar porque era Copa do Mundo (1998). É óbvio que a gente queria ir. E o diretor vira para o Guga e fala: "Se vocês ganharem a semi, boto um avião pra vocês chegarem em Paris". Aí vimos a programação e jogávamos depois da final de simples, era muito apertado. E lembro que a gente jogava a final contra o Daniel Orsanic, argentino, meu irmão, sabia toda história porque vivia com a gente. E ele brincava: "Ah, querem ver o jogo? Não vão poder". E ele demorava todo ponto, e acabava o game e a gente nem sentava. E nós com as malas prontas no clube. Ganhamos, teve a premiação, aí saímos correndo e acabamos chegando, totalmente em cima.

ESPORTE(ponto final)

"Devo ao Brasil muito mais do que o Brasil deve a mim"

"Fernando Meligeni, o argentino naturalizado brasileiro". Você já deve ter lido bastante essa frase... imagina então o próprio Fininho? Não é dos assuntos que ele mais gosta de abordar numa entrevista, apesar de falar numa boa.

Mas como o dia é de festa, vamos destacar apenas o lado bom de tudo isso. Fato é que Fernando Meligeni se tornou brasileiro, e quem agradece somos nós, que temos o prazer de chamá-lo de ídolo.

"Eu que agradeço, sinceramente. Eu brinquei que tive que provar muito. Acho que hoje ninguém tem dúvida: esposa brasileira, meus filhos brasileiros, joguei Olimpíadas, não voltei nunca pra Argentina, só pra passear. Mas o tratamento das pessoas é absurdo! Acho, sinceramente, que é muito maior do que eu podia imaginar ou que eu ache que mereço. É muito carinho que as pessoas têm por mim. Tenho pouco problema nessas mídias sociais duras que temos hoje. Quando vejo que é estresse, é de moleque, de querer dar uma aparecida. Eu devo ao Brasil muito mais do que o Brasil deve a mim."

Responsável por estender almoços de muitas famílias na épica medalha de ouro conquistada na final contra o chileno Marcelo Rios, no Pan-Americano 2003, Meligeni pôde ter uma ideia do tamanho que tem justamente depois desse jogo.

"Até hoje você vai digerindo, porque tem muitas histórias, pessoas diferentes falando a respeito, que viram, sentiram, comentaram, que estavam no jogo. Outro dia falei com a turma de handebol, que estava na quadra, marcou a vida deles, o Robert [Scheidt], Flávio Canto, e pessoas aleatórias. É uma história muito rica, muito interessante, e Dia dos Pais, pra mim ainda é marcante, perdi meu pai...", disse.

"Eu conto duas histórias. Entrei numa churrascaria dois dias depois, e as pessoas se levantaram e começaram a aplaudir. A primeira reação que tive foi olhar pra trás, ver quem eles estavam aplaudindo. E meu pai falou: 'é pra você'. E três dias depois entrei no avião para ir para Brasília e as pessoas também começaram a aplaudir no avião. 'Cara, que tamanho, que loucura'".

E hoje também é dia de aplausos. Parabéns, Fininho!

Antônio Gaudério/Folhapress Antônio Gaudério/Folhapress

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